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A meta fracassada

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 92-96)

É grande o leque de drogas psicoativas proibidas nesse início de século. Há uma caudalosa relação de psicoativos presente em normas domésticas e internacionais que procuram estabelecer os critérios para seu controle ou erradicação. Um conjunto de regras sistematizadas em encontros patrocinados pela Organização das Nações Unidas passou a ser construído, a partir dos anos 1960, com o intuito de padronizar o tratamento aos psicoativos, dando parâmetros e estipulando exigências aos Estados que se comprometeram a observar tais acordos (McAllister, 2000). O resultado mais visível desse esforço é a atual coerência e identidade das leis sobre drogas no mundo que, apesar das particularidades locais possíveis de serem encontradas, trabalham em uníssono a partir de uma fórmula comum: o proibicionismo. Antes de ser uma doutrina legal para tratar a “questão das drogas” o proibicionismo é uma prática moral e política que defende que o Estado deve, por meio de leis próprias, proibir determinadas substâncias e reprimir seu consumo e comercialização (Escohotado, 1996). É importante ter em mente que demandas antidrogas, organizadas por grupos militantes ou difusas na sociedade, precederam à elaboração das primeiras leis sobre psicoativos e, mais que isso, foram o substrato sobre o qual governos nos quatro continentes erigiram estatutos legais repressores. Essa pressão moralista contra as drogas remonta a finais do século XIX e princípios do século XX, e assumiu formas particulares nas Américas, Europa e Ásia. Se hoje o proibicionismo está cristalizado em normas internacionais, há cerca de um século havia um vazio jurídico que deixava ainda intocado, do ponto de vista da regulamentação legal, um mercado de drogas psicoativas bastante vigoroso e mobilizador de importantes interesses econômicos.

O trânsito que levou o mercado de drogas da legalidade à ilegalidade foi relativamente rápido e violento, como exemplifica o movimento que vai das Guerras do Ópio, no século XIX, à Lei Seca, de 1919. A resistência do governo imperial chinês ao livre mercado de ópio em seu território levou, entre 1839-42 e 1856-60, a confrontos com forças inglesas que, apoiadas por outras potências coloniais européias, exigiam a reabertura dos portos e do mercado chinês à droga produzida por companhias ocidentais. A decisão da China de fechar seu grande mercado consumidor ao psicoativo contrariava interesses vultosamente lucrativos e, em certo sentido, simbolizava um movimento mais amplo de afronta aos Estados europeus e suas estratégias

político-comerciais para com o país. Assim, após a derrota definitiva em 1860, os tratados impostos a Pequim abriram

portos à Inglaterra, garantiram o acesso às águas dos rios do interior, a aquisição de propriedades por estrangeiros, a legalização da importação do ópio, a isenção de taxas na circulação de mercadorias e [...] envio de missões diplomáticas a Pequim (Passetti, 1991, p. 32).

Cinco décadas depois, as potências européias voltaram à China para tratar do tema do ópio, mas num contexto em franca transformação. A Conferência de Xangai, de 1909, o primeiro grande encontro internacional para discutir limitações ao comércio de ópio e seus derivados, foi organizado, para regozijo do governo chinês, por um novo aliado, afinado também à causa do livre mercado, mas com uma postura marcadamente restritiva no que dizia respeito às drogas: os Estados Unidos.

Nova figura no restrito clube das nações industrializadas e com interesses globais, os Estados Unidos emergiram como potência num ambiente no qual grande parte do mundo encontrava-se dividida entre Estados europeus. Na Ásia, em particular, os projetos de abertura comercial deveriam enfrentar problemas como um Japão que se abria ao comércio mundial com pretensões de pujança econômico-militar e de uma China independente, mas submetida

Anti-Saloon League of America, Sixteenth Annual Convention, Atlantic City, New Jersey, July 6-9, 1915. [Liga Anti- Saloon da América, Décima Sexta Convenção Anual, Atlantic City, Nova Jersey, 6 a 9 de julho de 1915]

Thomas Sparrow [gelatin silver; 10 x 48 in]. Library of Congress Prints and Photographs Division Washington. Disponível online em URL: http://memory.loc.gov/ammem/today/oct28.html.

de longa data ao expansionismo europeu. A vitória sobre a Espanha, no confronto de 1898, transferiu aos Estados Unidos territórios no Caribe (Cuba, Porto Rico) e na Ásia (Guam, Filipinas), fato que os lançaram nos jogos de poder das potências no extremo oriente. Segundo Brouet, os estadunidenses, ao assumirem a administração das Filipinas e alarmados com o consumo local de ópio, decidiram reverter a livre venda da droga nas ilhas, por meio de uma lei “adotada em 1905, [que] interditava toda importação e venda de ópio com fins não medicinais até que expirasse um período transitório de três anos” (Brouet, 1991, p. 96). É interessante notar que essa lei, válida para a possessão filipina, era mais rígida e restritiva que qualquer lei em vigor sobre o tema em território norte-americano. Naquele momento, nos EUA, havia apenas sido promulgada uma lei em 1906, intitulada Food and Drug Act, que regulamentava normas

sanitárias e de rotulagem de alimentos e drogas psicoativas ou não, mas sequer chegava a restringir, muito menos a proibir, o mercado de psicoativos. A atitude dos estadunidenses nas Filipinas estusiasmou as autoridades chinesas de modo a iniciar as conversações que redundaram no encontro de Xangai.

Ainda que o encontro de 1909 não tenha sido impositivo, ficando apenas no campo das recomendações genéricas à necessidade de reduzir o mercado de opiáceos, o texto final trazia a marca da experiência estadunidense nas Filipinas e que seria uma das características centrais do início do proibicionismo: a defesa do uso legal sob estrito controle para uso médico, e a ilegalidade para qualquer outra forma de uso (recreativos, hedonistas, etc.).

A assinatura de acordos internacionais como o de Xangai, ou o mais abrangente e restritivo celebrado em Haia, Holanda, em 1912, serviu de base ao governo estadunidense para propugnar a urgência em adequar as leis domésticas dos EUA aos seus compromissos externos em matéria de controle de drogas (Rodrigues, 2004a). As discussões, no entanto, não eram originárias nem restritas ao ambiente diplomático ou legislativo. Ao contrário, elas reverberavam posturas provenientes de grupos sociais mais ou menos organizados em ligas ou redes que se espraiavam pelos Estados Unidos, brandindo palavras de ordem contra a ameaça que a “imoralidade” e os “vícios” traziam para a sociedade. Agremiações como a Liga Anti-Saloon, fundada em 1893, defendiam a moralização do país por meio de medidas legais que pusessem em marcha políticas de repressão às práticas tidas como imorais ou corruptoras das virtudes puritanas (comedimento, castidade, sobriedade, religiosidade). A Liga reclamava, por exemplo, o fechamento dos bares, os saloons, que eram, para seus membros, espaços que concentravam os “males” do jogo, da prostituição e do consumo de álcool. O álcool era, em particular, um dos principais alvos das cruzadas puritanas e, se não foi a única, talvez tenha sido a mais atacada droga psicoativa nesses momentos de construção do proibicionismo. Assim, é possível compreender porque, apesar da aprovação do Harrison Act, em 1914, lei que trazia para os EUA determinações de controle médico já proclamadas internacionalmente, a norma que merece a posição de primeira lei proibicionista contemporânea é o Volstead Act, de 1919, conhecida como Lei Seca. Anos de debates acalorados tomaram a mídia, o Congresso e a Suprema Corte dos Estados Unidos, até que, por meio de uma emenda à Constituição, fosse editada uma norma que visava proibir a produção, circulação, armazenagem, venda, importação, exportação e consumo de álcool em todo território estadunidense. O objetivo do proibicionismo fica, desse modo, plasmado em uma lei que tenciona abolir uma droga e todos os hábitos a ela relacionados. Essa fórmula, a máxima proibicionista, logo atingiria outros psicoativos até então pouco ou nada regulamentados (e, certamente, ainda não proibidos).

A aprovação da Lei Seca significava a vitória das práticas puritano-moralistas, de um lado, e das estratégias de enrijecimento do controle social por parte do governo estadunidense, em marcha desde a Conferência de Xangai e que tinham se esforçado em enquadrar juridicamente

um rol de práticas sociais que envolviam usos de drogas (médicos, recreativos, religiosos), expondo-as à vigilância e repressão estatais. A meta da Lei Seca era sufocar práticas e eliminar uma droga como se ela jamais houvesse existido e sido consumida e desejada. O resultado imediato dessa proibição é bastante conhecido e comentado: o efeito automático da Lei Seca não foi a supressão do álcool e dos hábitos a ele associados, mas a criação de um mercado ilícito de negociantes dispostos a oferecê-lo a uma clientela que permanecia inalterada. Inalterada em gostos, mas agora diferente, pois ilegal, criminosa. Produziu-se um campo de ilegalidades novo e pujante; inventou-se um crime e novos criminosos; e o álcool, talvez para angústia dos proibicionistas mais dedicados, não deixou de ser consumido. Assim, se ele permanecia procurado e vendido era preciso, então, aplicar a lei.

O governo dos Estados Unidos passou a construir um grande e especializado aparato repressivo que justificou a criação, já nos anos 1920, de uma agência federal específica – o

Federal Bureau of Narcotics (FBN) – para o combate às drogas proibidas ou controladas. No

ritmo em que cresciam as máfias dedicadas ao tráfico de psicoativos ilícitos, desenvolvia-se uma potente estrutura repressiva com milhares de agentes e generosas verbas estatais (McAllister, 2000). Com o avançar dos anos, a listagem de drogas proibidas ou de uso bastante restrito, aos “usos médicos”, foi alargada, incluindo substâncias como a cocaína e a maconha. No final dos anos 1930, o álcool já retornara à legalidade,1 mas as estruturas de combate às drogas ilícitas potencializadas pelo seu combate, permaneceram dedicando tempo e esforços à erradicação de drogas novas ou há muito utilizadas, mas todas reduzidas ao denominador comum da proibição.

O que acontecera com respeito à permanência de um mercado para o álcool pode ser estendido para as outras drogas proibidas: mais criminosos a circular justificando a existência de dispendiosos aparatos repressivos. O dito “controle para uso médico” não desaparecia sob as camadas do discurso criminal, deixando antever que o tema das drogas ilícitas era entendido como um “problema sanitário” agravado pelo mercado ilegal, esse sim, a ser coibido pela ação policial e da justiça criminal. A meta explícita do proibicionismo, entretanto, parecia estar cada vez mais distante: as leis prescreviam o fim de drogas e seus mercados, mas acabavam por potencializá-los. Drogas antes consumidas com certa liberdade ou restrições frouxas passaram a ser de uso restrito ou totalmente vedado; a conseqüência direta não foi a redução ou eliminação dos mercados, mas seu incremento. O proibicionismo estabelece um novo crime e um novo mercado; as normas proibicionistas, antes de banir as drogas visadas, acabam por inventar o narcotráfico.

Para os fins dessa breve reflexão, deve-se destacar como sobrevém ao aparente fracasso do Proibicionismo uma estratégia plena de potencialidades em termos de controle social e criminalização de parcelas da população que já deveriam ser (e eram) controladas pelo “bem comum” e em nome “da paz civil”. Em outras palavras, o Proibicionismo, desde seus momentos

iniciais entre as décadas de 1910 e 1930, foi um “fracasso” se levarmos em conta seus objetivos declarados, mas nem por isso deixou de ser expandido; não apenas nos Estados Unidos, como também em outros Estados, tomando espaço nos foros internacionais do entre-guerras (McAllister, 2000; Rodrigues, 2003). Hoje, menos de cem anos depois das primeiras iniciativas de controle de drogas psicoativas, o padrão mundial para lidar com tais substâncias é, salvo pequenas e não propriamente anti-proibicionistas exceções2, o da perseguição e criminalização ampliadas que sequer chegaram perto do objetivo inicial de erradicar hábitos, mercados e drogas. De forma aparentemente paradoxal, a “ineficácia” do proibicionismo gera demandas por sua reforma, ora clamando por medidas alternativas – mais brandas para usuários, mais severas para traficantes –, ora exigindo maior dureza, mais fiscalização, mais punição para todos. Num caso como em outro, o estatuto da Proibição não é arranhado. Qual o sentido, então, em manter uma “guerra perdida”?

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 92-96)