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Ritos e tabus

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 179-188)

Podemos seguir nesse experimento e especular sobre a caracterização das substâncias em tal meio estável. Por exemplo, se o tabaco é permitido, é porque, segundo essa visão naturalista, supõe-se que ele não alteraria significativamente a consciência – a despeito dos prejuízos na saúde. Mas muitos grupos tupi-guarani, outro exemplo, utilizaram e utilizam o tabaco para se comunicar com esferas não-humanas. Se os ansiolíticos são permitidos, eles porém o são sob tarja preta, ou seja, sob prescrição médica e uso controlado. Mas, de novo, a visão substancialista (estabilizadora, oficial) do naturalismo compreende que a ação desses psicoativos lícitos é previsível e seria por si só (como a despeito da rígida posologia que acompanha seu ritual de uso) capaz de estabilizar quadros psíquicos instáveis – o que significa, entendo, dessubjetivar, isto é, trazer o indivíduo, minimamente que seja, de volta à rede aceitável da sociabilidade. Ou ainda: trazê-lo de volta à expressão social de sua subjetividade.

Mas sabemos bem da subversão de usos terapêuticos e posologia de ansiolíticos e anti- depressivos, fazendo com que essas substâncias imediatamente se tornem, do ponto de vista do marcador terapêutico do estável, drogas promotoras do instável. Assim, por exemplo, se passa com o medicamento Artane®, concebido para atenuar o Mal de Parkinson. Como um anticolinérgico, ele bloqueia a ação de nervos parassimpáticos, mas em doses elevadas provoca alterações nas funções psíquicas não previstas pelo receituário médico. Semelhante uso

desviante se dá com o anorexígeno Inibex®, que é uma anfetamina lícita receitada para o

emagrecimento. Subvertidas em “bolinhas”, seu uso prolongado pode provocar alucinações e delírios, despertando sintomas denominados “psicose anfetamínica”.32 Ou seja, basta abandonar o rito médico e oficial (posologias, prescrições etc.) para que a substância se depare com outros enredamentos e dispare efeitos que então se tornam imprevisíveis ante o naturalismo médico-científico – o qual, por sua natureza, os condenara ao imprevisível, à não- domesticação, à destituição de sentidos e de dignidade cosmológica (isto é, uma ofensa a um só tempo à Natureza e à Sociedade). Uma mesma substância experimenta a passagem do psicotrópico lícito para a categoria “drogas”. E o caso do álcool? O álcool é permitido, sim, embora o uso excessivo leve a quadros alterados de consciência. Mas lembremos que o uso moralmente aceito, isto é, um uso equivalente ao da tarja preta, ao uso prescritivo portanto, é designado na conhecida e amplamente difundida expressão do “beber socialmente”. Quer dizer, bebe-se para o social, e não contra ele. Ultrapassar esses limites configura casos mórbidos

de vício, doença ou marginalidade, à exceção de certas ocasiões socialmente demarcadas e previamente estabelecidas, como é o caso do carnaval ou de ritos de “iniciação” de jovens norte-americanos.

Ora, se o uso de muitas dessas substâncias ilícitas causaria essa instabilidade na vida social, é evidente que elas seriam condenadas no terreno da saúde publica (já que o problema é público, social). Essa cosmovisão do estável funda a percepção de que alterar a consciência tende à dessocialização; seria como arriscar desatar os fios invisíveis que unem o indivíduo ao

social; eximir o indivíduo de suas responsabilidades contratuais com a sociedade. Aqui, o

indivíduo é um caso do social. Ele é concebido para o social, isto é, a sociedade, tal como a nomeamos e a conhecemos em sua face estatal, judicial, mercadológica, cultural. Mas, no oposto simétrico, a sociedade foi também criada para o indivíduo – base esta em que se assenta o liberalismo. Alterar a consciência seria uma grave ameaça de rompimento com essas redes amplas e contratuais que dão origem a esse constructo altamente valorizado do par indivíduo/ sociedade. Por isso o uso de psicoativos, nessa mesma sociedade, deve ser controlado (como as bebidas alcoólicas e como todas as outras substâncias indexadas). O esforço é por manter estável a subjetividade individual, isto é, a identidade física e consciente, civil e política da pessoa individual – ou desta noção individual de pessoa. Simetricamente, prevalece o desinteresse em se investigar e criar terapias a partir dessas substâncias, a despeito do comprovado sucesso, historicamente relatado, alcançado em pesquisas com psicodélicos, que se mostraram excelentes coadjuvantes para tratamentos psquiátricos e psicoterapêuticos. Ora, uma vez que passaram a merecer atenção científica e oficial, puderam se mostrar, por exemplo, altamente eficazes na recuperação de alcoólicos, na humanização da dor e na amenização da agonia de pacientes terminais, além de oferecer conhecidos efeitos afrodisíacos.33

Mas tal como o efeito placebo ou sugestão, as drogas de potência alteradora de consciência não mereceriam interesse e investimentos das instâncias oficiais e hegemônicas nessas sociedades identitárias do social. Isto porque essa cosmovisão do estável gera a percepção de que essas substâncias indexadas como drogas são, em si mesmas, agentes instáveis – seja em relação ao padrão mercadológico de farmácia,34 seja em relação ao padrão societário naturalizado. Social ou medicamente, tais agentes podem mesmo ser encarados como entrópicos, no seu sentido dado pela biologia, isto é, como causadores de variação ou desordem em um sistema – pois nesse sistema do social e do natural.

Aqui enfrentamos, por fim, a diferença entre o uso ritual e o uso não-ritual de substâncias psicoativas ou mais propícias à alteração de consciência. O uso ritual, modernamente associado a práticas de grupo e religiosidade, alcançaria uma maior tolerância social. Isso se explicaria seja porque, entre nós, o rito, como atributo social, ressalva o imperativo do grupo, sinônimo de social, tão valorizado em nossa sociedade, seja porque o estado de direito garante certa liberdade religiosa. Ademais, a esfera religiosa representa um possível reencontro com o social,

especialmente através dos rituais, e isso dá margem para se reivindicar junto ao Estado, e com sucesso muitas vezes, o seu direito de também ser social, uma vez que se proclama religioso. Nesse caso, o horror maior recairia sobre o uso sem controle social ou transcendente das drogas ilícitas. É quando não há princípio religioso ou ritualístico que, supõe-se, garanta a estabilidade dos comportamentos, o controle da subjetivação. Sobre estes desgarrados pesaria o maior jugo social, que os classifica como loucos, doentes, viciados ou marginais – esses entes que logo se emparelham na marginalidade por compartilharem o caráter de insocial dado por essa noção transcendente de social, que recusa internalizá-los. Com efeito, o fenômeno da marginalidade põe a nu essa incapacidade de interiorização do sistema social transcendente. Daí resulta que são eles, os fracos e impotentes, que se deixaram dominar pela agência substantiva, sempre forte e potente, das chamadas drogas. A acusação, tipicamente moderna, é de que estariam eles entregues a uma subjetividade à deriva, isto é, uma subjetividade que nem mesmo a eles (como seres socialmente conscientes) pertence, pois uma subjetividade dominada por ilusões fantasmáticas, delírios malsãos, seres invisíveis que tomam o lugar da pessoa, esta que se torna presa da droga e perde o governo próprio. Como tomado por tal agência substantiva, o drogado passa a oferecer risco de contaminação ao corpo social. Toda uma imagística de doença e contaminação é posta em marcha. Isolar e encerrar esses sujeitos em recintos fechados, seja em terríveis manicômios, seja em sofisticadas clínicas de desintoxicação, é o modo de tentar livrar o drogado das drogas, já devolvendo-o, como indivíduo pleno, à sociedade.

Como seja, é definitivamente proibido contrapor-se aos imperativos do social e do natural. As drogas ilícitas operariam nos antípodas desses imperativos – tal uma prescrição sagrada. Mas, ora, se a criação de uma cosmopolítica do estável implica a criação de fenômenos e regiões do instável, no que as drogas ilícitas participariam ativamente, o ato de tornar estável o consumo de alguma substância ilícita parece, com efeito, trazer de volta o ritual público à cena. Em clínicas do Canadá, por exemplo, o uso terapêutico da metadona só é possível mediante sua associação com ritos severamente seguidos. É como se pode compreender a pesquisa de Frenopoulo sobre o consumo terapêutico da metadona administrado a adictos em opiáceos ilegais. Ele pôde etnografar o “consumo de metadona como um ato médico”, dentro de um “setting clínico”, aí sob receita médica, e observar a “transformação do comportamento habitualmente privado e furtivo do consumo ilegal de drogas em uma prática pública e moralmente aceitável” (2005, p. X, tradução nossa). Ou seja, é público e aceitável desde que assumido como patológico – objeto de intervenção da saúde pública.35

De fato, diz Frenopoulo (2005), os ritos que têm lugar na clínica de metadona são “altamente formalizados e as interações extremamente definidas”, fazendo com que se “reduzam a possibilidade de contestação ou negociação de significados e comportamentos”. Daí que os “clientes” sejam convencidos a “pensar na metadona como uma ‘medicação’ e não

em ‘outra droga mais’. Por isso, “neste setting, os pontos de vista dos clientes sobre metadona tendem a ser silenciados”. Creio que tem razão o autor em compreender que “a intervenção estatal na terapia com metadona sugere que a terapia se dirige a resolver questões de cidadania, e não somente questões estritamente fisiológicas”. É pois como rito médico e público que essa administração clínica da metadona, financiada pelo Estado, aparece como moralmente aceitável – porque socialmente controlada. De novo, o suposto é que a regeneração do adicto é uma regeneração social, ou melhor, do social e para o social – desse social ritualmente estável. De fato, a passagem do privado para o público, do viciado para o adicto, do marginal para o medicinal, é entendida e praticada como um momento fundamental para a repatriação do desgarrado à sociedade – único lugar onde ele pode ser um indivíduo pleno.

Tudo se passa como se, fora da malha social, os agentes se tornassem marginais – assim se associam e são associados. É daí o interesse por interpretações como a de Gilberto Velho (1987), que identifica, entre nós, parentesco entre as categorias de doente mental (num plano mais geral, o das sociedades complexas) e drogado e subversivo (no plano local da sociedade brasileira). Utilizadas para explicar e exorcizar, ambas as categorias carregam práticas de controle social e poder, assim “delimitando fronteiras”.

Assim, a existência de uma ordem moral identificadora de determinada sociedade faz com que o desviante funcione como marco delimitador de fronteiras, símbolo diferenciador de identidade, permitindo que a sociedade se descubra, se perceba pelo que não é ou pelo que não quer ser (Velho, 1987, p. 57-59).

A categoria “subversivo, em qualquer contexto, ameaça a ordem estabelecida”. Pois qual expressão mais imediata e legítima de ordem do que a do social, como tal definido pela estabilidade? Já imerso num verdadeiro “complexo de demonologia”, diz Velho, o subversivo aparece como aquele que “traz coisas ‘de fora’, contamina a sua sociedade com o exógeno, desarruma e desorganiza uma ordem natural com idéias e comportamentos deslocados e

disruptivos. Portanto, ele é um traidor, que renega sua pátria” (1987, p. 59). Bem a propósito,

o autor refere-se ao “grande paradoxo” da “sociedade complexa moderna”, que “gerando a diferenciação, não consegue conviver com ela a não ser através de mecanismos discriminatórios. Daí a coerção normalizadora, a repressão institucional, a fabricação ininterrupta de desviantes” (1987, p. 63). Sim, notemos nós, assim como a purificação moderna está para a normalização da ordem, a proliferação está para a produção de desviantes. Natural e social, a ordem, para causar seus efeitos, não pode ser objeto de reflexão:

O drogado e o subversivo estão implícita ou explicitamente acusados de doença, pois, ao questionar os domínios e criticar os papéis, põem em dúvida uma ordem, uma concepção de mundo que devem ser vistas como naturais e indiscutíveis (1987, p. 64).

Mas, simetricamente à ordem, também as drogas ilícitas e os drogados assumem semelhante estatuto de indiscutível. Àqueles que consomem tais substâncias nega-se a oportunidade de ritos públicos e legais, nega-se a inserção no social porque a proscrição dessas

substâncias torna proscrito aquele que o consome. Sim, a substância, associada a esse contexto de isolamento e proscrição, faz a pessoa. Exilado da ordem e da vida social consciente, ao sujeito dito drogado resta entregar-se a uma subjetivação em meio instável. Isolado, ele não raro se torna refém de agências que então se tornam poderosas. Como viciado, dependente ou drogado, aquele que se recupera passa a ser um adicto – como hoje se costuma designar em clínicas de desintoxicação. Pois que é o adicto senão alguém para sempre afetado pela substância? Desprovido de rito e malfadado pelo mito, que resta às “drogas” senão a pecha lançada pela concepção e prática de uma natureza e uma sociedade estabelecidas pelo parâmetro do estável? Que resta senão estados instáveis? Que resta ao “drogado”, isolado e despatriado das redes, entregue a uma subjetividade marginal e indigna, senão a degeneração compulsiva ou, na melhor das hipóteses, o tratamento para regenerá-lo socialmente? Instalado em uma zona cinzenta e opaca, o tabu que recobre o tema das drogas apenas adia uma reflexão total e totalizante cada vez mais urgente e inadiável. Quando realmente teremos a coragem de nos desentorpecer desse tabu, recusando seus cinzas e opacos? Que salvaguarda esse tabu garante senão a de uma ordem mal estabelecida e refratária à reflexão?

Notas

1 Este texto é uma versão já bastante modificada da comunicação que apresentei no Grupo de Trabalho “Cenários sociais, significados culturais e históricos do uso de substâncias psicoativas” que integrou a VI Reunión de Antropología Del Mercosur, ocorrida em Montevidéo em novembro de 2005. Sou grato à acolhida dos coordenadores do Grupo, Edward MacRae e Sandra Lucia Goulart. Agradeço a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), cujos auspícios têm tornado possível a produção e a divulgação dessas reflexões, que por sua vez integram diretamente os interesses de meu doutorado em curso, também financiado pela Fapesp. Devo a Renato Sztutman o estímulo original que me incentivou a refletir sobre a relação entre drogas lícitas e ilícitas – tema da apresentação em Montevidéo – bem como suas posteriores leituras das versões subseqüentes. Sou muito grato a Bia Labate pelo convite para participar desta coletânea. Agradeço os pesquisadores do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP) pelo interesse e as edificantes leituras que puderam fazer das versões deste texto. 2 Ver, de Bruno Latour, Jamais fomos modernos (1994) e Reassembling the Social (2005).

3 Sobre esses estudos, ver, por exemplo, Isabelle Stengers (2002).

4 “Se se faz o estudo da molécula contra um placebo, é porque se pretende saber se a molécula prescrita pode curar por más razões, ou seja, por razões que não se devem à sua ação farmacológica-biológica própria” (Pignarre, 1999, p. 26). Más razões são aquelas “ligadas à natureza do arrombador biológico da molécula” (1999, p. 55).

5 Foi uma interpretação que eu mesmo lancei em artigo. Ver Marras (2002). Aproveito a oportunidade aqui para rever essa interpretação.

6 Híbridos são “mistos de natureza e cultura”, conforme escreve Latour (1994), são os seres que resultam dos mecanismos purificatórios do moderno, necessariamente ao mesmo tempo em que os promovem. ‘Mas como classificar o buraco de ozônio, o aquecimento global do planeta? Onde colocar estes híbridos? Eles são humanos? Sim, humanos pois são obra nossa. São naturais? Sim, naturais porque não foram feitos por nós. São locais ou globais? Os dois. (Latour 1994, p. 54). 7 Nos termos de Latour, vale adiantar, a purificação – e sua conseqüente antítese da proliferação de híbridos – é tarefa tipicamente moderna. Ver Latour (1994).

8’Trata-se do meio mais simples para julgar de maneira objetiva a eficácia de uma molécula candidata ao título de medicamento. Para ser reconhecida como medicamento, uma substância, seja qual for sua origem, deve ter um resultado positivo nessa prova’ (Pignarre, 1999, p. 17).

9 O mononaturalismo, termo utilizado por Latour em Políticas da natureza (2004), é base da versão cosmológica oficial do Ocidente moderno, segundo a qual todos os povos, bem como todos os indivíduos da espécie, compartilham de idêntica natureza, ao passo que a diferença entre os povos se situa na cultura. Aí a Natureza aparece como um cantão de realidade, exterior à Cultura, para o qual a Ciência se apresenta como tradutora por excelência, como detentora dos meios técnicos adequados para acessar este domínio objetivo, separando-o das ingerências humanas ou meramente políticas, das subjetividades ou paixões, dos influxos sempre variáveis da Cultura. Aqui, enfim, abre-se ensejo para uma antropologia da ciência, bem no seio da modernidade.

10 Moderno, como tenho utilizado aqui, no sentido propriamente antropológico conferido por Bruno Latour. Ver sobretudo seu livro-manifesto Jamais fomos modernos (1994).

11 Eu aproximo esse “elo intermediário” de Pignarre aos “híbridos” de que fala Latour – os mediadores, os intermediários, os quase-sujeitos, quase-objetos.

12 “O objeto medicamento transporta o efeito placebo assim como transporta moléculas, independentemente de tudo e de todos” (Pignarre, 1999, p. 46-47).

13 Utilizo aqui a noção de substancialismo em conformidade à sua rubrica filosófica, que se refere, de acordo com a acepção do Houaiss, a “qualquer doutrina que aceita a existência de uma ou múltiplas realidades permanentes e essenciais, as substâncias, que consistem no que há de eterno e fundamental no devir e contingência dos seres naturais”.

14 Ou, para Pignarre novamente, o efeito placebo é “o que menos dominamos, o que temos o hábito de considerar como a coisa mais evanescente, sobre a qual nenhum saber preciso é possível” (1999, p. 31).

15 Entrevista à Rádio Eldorado AM em 14/05/05, Programa Pesquisa Brasil. Parceria com a Fapesp. 16 Idem.

17 Mesmo assim, já existe há algum tempo, inclusive no Brasil, uma medicina genética preventiva, destinada a evitar a informação defeituosa. É o caso do aconselhamento genético, como é chamado no Centro de Estudos do Genoma, da Universidade de São Paulo (USP).

18 É o que recentemente se pôde ver, por exemplo, nos intensos debates, largamente cobertos pela mídia, a respeito da liberação, para a pesquisa científica, de células-tronco embrionárias junto ao Congresso brasileiro.

19 Assim como a noção de doença, também a de raça parece passar, com a nova genômica, por uma redefinição. Ver, por exemplo, Santos e Maio (2004).

20 Sobre a Actor-Networ-Theory (ANT), ver Latour (2005).

21 A expressão, bastante utilizada por Latour, foi emprestada de Isabelle Stengers. Ver, por exemplo, da autora, Cosmopolitiques I (2003). Conforme entendo, a cosmopolítica pretende juntar ação humana e não-humana numa mesma realidade, recusando assim a exterioridade transcendental das coisas (cosmo, mundo) em relação às pessoas e sua política. Numa formulação simples, uma política das coisas, quer me parecer, prevê tanto uma política dos homens em relação às coisas, quanto das coisas em relação aos homens.

22 “Homens-entre-eles” e “coisas-em-si” são expressões do próprio Latour. Ver Jamais fomos modernos (1994). 23 Latour imagina que o impacto dessa inversão na sociologia deve ser semelhante ao cálculo infinitesimal na matemática (2005, p. 6).

24 Ver Latour (2000).

25 Fatos se tornam autônomos (ou reais) porque são feitos e porque fazem. Um fato é “aquilo que é feito e não é feito”, diz- nos Latour em A esperança de Pandora (2001, p. 148). São produto de agência humana, é verdade, mas também de não- humana – todos sendo “actantes” em associação. Assim, é preciso reconhecer, sempre “no curso do evento”, como no exemplo de Pasteur, tanto a agência do cientista quanto a da levedura de cerveja. É preciso reconhecer, enfim, essa “ontologia mutável” dos agentes; as “transferências” entre eles, suas “transformações” nas “ocasiões de interação”. Antes da coisa (que na episteme naturalista clássica tende para o realismo) ou da pessoa (que na episteme sociológica clássica tende ao construtivismo), o que há é o agente, que apenas assume identidade (disposição, capacidade, competência) na interação das redes em que são processadas. É o ator-rede a fonte da ação (nível das causalidades), elemento central da Actor-Network Theory. Eis a proposta do que se poderia denominar, nas palavras do autor, um “realismo construtivista”. Tal corresponde a dizer que a ciência não é menos científica quanto mais distante estiver da sociedade, senão bem ao contrário.

26 A separação é o que Latour (1994) denomina como versão “oficial” da modernidade, enquanto a mistura permanece como “oficiosa”.

27 Apresentei essa comparação entre cura xâmanica (modelo indígena) e cura naturalista (modelo ocidental), a partir do texto de Lévi-Strauss (1970), em termos do uso de dispositivos de objetividade e subjetividade no artigo Corpo, cosmologia e subjetividade (Marras, 1999). Tenho aqui a oportunidade de reformular esses termos, não mais opondo o subjetivo ao objetivo, como fiz lá, mas tratando o problema como agência humana e agência não-humana. Sem dúvida que essa reformulação é tributária direta da auspiciosa etnografia das ciências, da qual, desde então, passei a tomar conhecimento. Entendo que, com a antropologia simétrica, não é mais possível operar com semelhantes dicotomias (objetivo/subjetivo, real/simbólico, fato/ fetiche etc.), todas derivadas da grande partição moderna entre Natureza e Sociedade.

28 Sobre a subjetivação indígena na comparação com a objetivação ocidental, ver, por exemplo, a esclarecedora entrevista que Eduardo Viveiros de Castro (1999) concedeu à Revista Sexta Feira.

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