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O necessário rompimento com o proibicionismo

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 118-122)

Essa rápida análise da nova lei especial brasileira em matéria de drogas já sinaliza que as reflexões suscitadas por sua edição não devem se esgotar no exame de suas novas ou repetidas regras. As reflexões devem avançar e colocar em pauta o repúdio à repressão e a afirmação da liberdade, revelando os riscos, os danos e os enganos globalmente produzidos pelo proibicionismo, questionando o discurso que oculta fatos, demoniza substâncias e pessoas, molda opiniões conformistas e imobilizadoras, censura e desinforma, entorpecendo a razão.

As sistemáticas violações a princípios e normas consagrados nas declarações universais de direitos e nas Constituições democráticas, que, presentes na nova lei brasileira, reproduzem as proibicionistas convenções internacionais e as demais legislações internas criminalizadoras da produção, da distribuição e do consumo das drogas qualificadas de ilícitas, já demonstram que os riscos e danos relacionados a tais substâncias não provêm delas mesmas. Os riscos e danos provêm sim do proibicionismo. Em matéria de drogas, o perigo não está em sua circulação, mas sim na proibição, que, expandindo o poder punitivo, superpovoando prisões e negando direitos fundamentais, acaba por aproximar democracias de Estados totalitários.

A própria expressão “guerra às drogas”, que dá a tônica do proibicionismo voltado contra as selecionadas substâncias psicoativas e matérias-primas para sua produção qualificadas de drogas ilícitas, já revela a incorporação ao controle social exercido através do sistema penal de estratégias e práticas que identificam o anunciado enfrentamento de condutas criminalizadas à guerra tornada preventiva ou ao combate a dissidentes políticos nos remanescentes Estados totalitários.

Nas atuais tendências expansionistas do poder punitivo, impulsionadas, em grande parte, por essa “guerra às drogas”, a figura do “inimigo” ou de quem tenha comportamentos vistos como diferentes, “anormais” ou estranhos à moral dominante, se confunde nos criados perfis do “criminoso”, do “terrorista” ou do “dissidente”.

Uma propagandeada situação de emergência, representada no que se refere ao sistema penal propriamente dito por um propagandeado aumento incontrolável da chamada “criminalidade de massa”, ou por uma suposta transnacionalidade criminosa, ou por uma indefinida e indefinível “criminalidade organizada”, vai dando lugar a uma sistemática produção

de autoritárias legislações, que, como a nova lei brasileira 11.343/06, desautorizadamente desprezam o imperativo primado dos princípios e normas garantidores de direitos fundamentais, consagrados nas declarações universais de direitos e nas Constituições democráticas.

Embora mantidas as estruturas formais do Estado de direito, vai se reforçando um Estado policial em seu interior, vão sendo afastadas a universalidade, a superioridade e a efetividade dos direitos fundamentais e de suas garantias, acabando por fazer com que, no campo do controle social exercido através do sistema penal, a diferença entre democracias e Estados totalitários vá se tornando sempre mais tênue.

Mas, além de ocultar os riscos e danos à democracia, o proibicionismo oculta também o fato de que a proteção da saúde pública, que estaria a formalmente fundamentar a criminalização das condutas relacionadas às drogas qualificadas de ilícitas, é afetada por esta mesma criminalização, que impede um controle de qualidade das substâncias entregues ao consumo, impõe obstáculos a seu uso medicinal, dificulta a informação e a assistência, cria a necessidade de aproveitamento de circunstâncias que permitam um consumo que não seja descoberto, incentivando o consumo descuidado ou anti-higiênico propagador de doenças como a aids e a hepatite.

Além de ocultar os riscos e danos à democracia, além de ocultar os riscos e danos à saúde pública, o proibicionismo oculta ainda o fato de que, com a intervenção do sistema penal sobre as condutas de produtores e distribuidores das substâncias e matérias-primas proibidas, o Estado cria e fomenta a violência. Não são as drogas que provocam violência. A violência só acompanha as atividades econômicas de produção e distribuição das drogas qualificadas de ilícitas porque o mercado é ilegal.

Já é hora de romper com o proibicionismo e promover uma mobilização global que conduza a uma ampla reformulação das convenções internacionais e das legislações internas dos Estados nacionais, para legalizar a produção, a distribuição e o consumo de todas as substâncias psicoativas e matérias-primas para sua produção, regulando-se tais atividades com a instituição de formas racionais de controle, verdadeiramente comprometidas com a saúde pública, respeitosas da democracia, respeitosas da dignidade e do bem-estar de todos os indivíduos, livres da danosa intervenção do sistema penal.

Notas

1 Este texto reproduz, em linhas gerais, palestra proferida na Mesa Redonda: “Alternativas para a Política de Drogas”, promovida pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP), em 21 de novembro de 2006, na Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP).

2 O proibicionismo, dirigido contra as drogas qualificadas de ilícitas, se expressa internacionalmente nas três convenções da Organização das Nações Unidas sobre a matéria, vigentes e complementares: a Convenção Única sobre entorpecentes de 1961, que revogou as convenções anteriores e foi revista através de um protocolo de 1972; o Convênio sobre substâncias psicotrópicas de 1971; e a Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas de 1988 (Convenção de Viena).

3 A Constituição Federal introduziu no inciso XLIII de seu artigo 5º regra dispondo que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos [...]”. Como as demais cláusulas expressas de penalização, deslocadamente incluídas entre os direitos e garantias fundamentais, nos incisos XLI (“a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais“), XLII (“a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei“) e XLIV (“constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático“), a regra do inciso XLIII resultou de acordo político, que, já na Constituinte de 1988, começava a erigir, à direita e à esquerda, o rigor penal em remédio para todos os males, como se as restrições impostas pudessem evitar a repetição de golpes e ditaduras militares, como a de que recém saía o Brasil, proscrever a tortura, superar entranhadas e ocultadas discriminações, controlar o mercado das drogas qualificadas de ilícitas, ou reduzir a ocorrência de outras condutas objeto de convencional criminalização.

4 Ao tempo em que foi pronunciada a palestra ora reproduzida nesse texto, estava em vigor a regra do artigo 594 do Código de Processo Penal, repetida na Lei 11.343/06, indevidamente exigindo que o réu que não fosse primário e de bons antecedentes se recolhesse à prisão para que seu recurso contra a sentença condenatória fosse admitido. A Lei 11.719/08, em vigor a partir de agosto de 2008, no entanto, finalmente revogou aquela regra do Código de Processo Penal, assim também implicitamente revogando o comentado dispositivo da Lei 11.343/06.

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No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 118-122)