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Invasão farmacêutica

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 52-56)

Ao longo de todo o século XX, a produção de drogas medicamentosas aumentou de maneira praticamente ininterrupta, sobretudo a partir da década de 1940, quando “se produziu um incremento espetacular do número de novos fármacos introduzidos na terapêutica”, num processo que Tognoni e Laporte (1989, p. 43) chamaram de “explosão terapêutica”, e que Dupuy e Karsent (1979) haviam chamado de “invasão farmacêutica”.

Essa explosão terapêutica detonada pela proliferação de fármacos foi decisiva para os desenvolvimentos contemporâneos da biotecnologia20. Como se sabe, a medicina experimental, professada por François Magendie e Claude Bernard e incrementada por Louis Pasteur, Robert Koch e Paul Ehrlich, é inseparável do desenvolvimento quer das sociedades científicas, quer das sociedades industriais (Canguilhem, 1975, p. 60-65). Mais amplamente, a invasão farmacêutica é parte constituinte de um processo mais amplo de medicalização dos corpos e da vida, processo esse contemporâneo ao desenvolvimento do capitalismo em fins do século XVIII e início do século XIX (Foucault, 1982a).

A introdução de uma impressionante variedade de fármacos tidos como puros e eficazes foi decisiva para fundamentar materialmente esse processo de medicalização geral dos corpos e da vida. No entanto, se ela contribuiu para garantir uma maior expectativa de vida para milhões de pessoas, tal introdução não se desenrolou sem produzir efeitos perversos, inclusive do ponto de vista dos ideais de saúde (e de vida) que ela procurou objetivar. Como notou Ackerknecht (1962, p. 397-398), “quanto mais potentes se tornam os remédios empregados pela medicina, mais numerosos se tornam os problemas de possíveis efeitos colaterais deletérios” decorrentes de seu emprego. Illich (1975, p. 33), por sua vez, lembra que “os medicamentos sempre foram venenos potenciais, mas seus efeitos secundários não desejados aumentaram com a sua eficácia e a extensão de seu uso.”

Embora efeitos inesperados ou danosos dos fármacos quimicamente produzidos tenham sido observados praticamente desde sua introdução no início do século XIX, a preocupação com a segurança dos medicamentos não tem uma longa história. Poderia arrolar uma série quase interminável de fármacos que, juntamente com (e, na maioria dos casos, justamente por) sua eficácia, provocaram efeitos nocivos em grande escala. Concentro-me aqui em alguns dos casos mais notórios.

Conhecido há milênios, o uso terapêutico do ópio ganhou força com a introdução da morfina no início do século XIX. O emprego desse alcalóide, por sua vez, foi incrementado pela introdução das seringas hipodérmicas em meados do século XIX; seu uso alcançou então dimensões epidêmicas, das quais os soldados desmobilizados após o término da Guerra Civil americana foram as primeiras vítimas.

A introdução dos anestésicos permitiu um considerável avanço nas práticas médicas ao enfim tornar possível contornar com relativa eficácia o problema da dor durante os procedimentos operatórios. Sua introdução resultou num verdadeiro boom nas intervenções cirúrgicas. No entanto, foi preciso pagar um preço considerável por esse avanço, sobretudo em seus primórdios: logo após a introdução dos gases anestésicos nas dependências hospitalares, sinistros (incêndios e explosões) nas salas operatórias e nos consultórios dentários tornaram- se corriqueiros (Chast, 1995, p. 90-91); também não se sabia ao certo quais eram as doses eficazes, os efeitos adversos, as formas adequadas de administração, de sorte que não raro os pacientes morriam na mesa de operação em virtude da ingestão de doses excessivas, dos efeitos nocivos dos anestésicos utilizados ou, pura e simplesmente, por falta de oxigênio (Chast; 1995, p. 82; Smith; Wollman, 1987, p. 172-173); tampouco se tinha conhecimento das práticas de assepsia e de anti-sepsia, que começaram a ser estabelecidas somente duas décadas depois, sendo um dos efeitos mais dramáticos da introdução dos anestésicos, e do boom de intervenções cirúrgicas que ela desencadeou, o número impressionante de mortes pós-operatórias.

Esse descompasso entre a percepção dos efeitos benéficos e dos efeitos adversos foi ainda maior no caso dos analgésicos. Embora não tenha decorrido muito tempo para que o uso de salicilato de sódio, o primeiro antipirético quimicamente produzido usado em biomedicina, tenha sido associado à produção de efeitos uricosúricos (Flower; Moncada; Vane, 1983, p. 443), foi necessário esperar quase quatro décadas desde a introdução do ácido acetilsalicílico (a aspirina) para “que se descobrisse que podia causar hemorragia gastrintestinal” (Capellà; Laporte, 1989, p. 115) e quase meio século “desde a introdução da amidopirina [comercializada, entre outros, com o nome de “novalgina”] na terapêutica, até que se descobrisse que podia produzir agranulocitose” (Capellà; Laporte, 1995, p. 115).

Já no caso dos antibióticos, a percepção da existência de efeitos indesejáveis associados ao seu emprego levou menos tempo para ser alcançada do que no caso da maioria dos analgésicos. No ano seguinte à introdução das sulfamidas, foi comercializada nos Estados Unidos uma solução de sulfalamida dissolvida em “dietilenoglicol, um excelente solvente, porém altamente tóxico” (Blaschke; Nies; Mamelok, 1987, p. 36). O uso dessa solução logo resultou numa epidemia de mortes: durante os dois primeiros meses de comercialização, nada menos de sessenta e sete mortes foram registradas em virtude da toxicidade do solvente para o fígado e os rins (Chast, 1995, p. 233). Uma gama variada de efeitos colaterais costuma ser associada ao uso de antibióticos, entre os quais se destacam efeitos tóxicos e reações de hipersensibilidade

(alergia medicamentosa). No entanto, devido às próprias características de ação “anti-bios” desses fármacos, logo após a introdução da penicilina percebeu-se que elas provocam sérias alterações na flora microbiana dos usuários (Sande; Mandell, 1987, p. 715), sendo o surgimento de microorganismos resistentes aos antibióticos o efeito mais peculiar e preocupante do emprego dessas drogas, situação que tem sido medicamente tratada mediante a contínua busca de novas drogas antimicrobianas (Sande; Mandell 1987; Chast, 1995). Em outros termos, “o tratamento anti-infeccioso [...] levou a uma diminuição geral do limiar de sensibilidade do organismo aos agentes de agressão” (Foucault, 1974b, p. 8). Não é a toa que as infecções nosocomiais tenham se tornado, paradoxalmente, uma das principais causas de mortalidade durante a hospitalização (Chast, 1995).

Poderia continuar indefinidamente arrolando fármacos que, juntamente com (e, na maioria dos casos, justamente por) sua eficácia, provocaram efeitos nocivos, mas continuar essa listagem seria uma tarefa extenuante, e o quadro pouco se alteraria. Chamo a atenção apenas para mais uma droga, a talidomida, já que os efeitos nocivos de seu consumo, quando detectados, foram decisivos para que se consolidasse publicamente, muitas décadas depois da introdução dos quimioterápicos, uma preocupação com o problema da segurança dos fármacos. A epidemia de focomelia e de outras malformações que, no início dos anos 1960, acometeu filhos de mães que, durante a gravidez, haviam tomado talidomida, um hipnótico então recém introduzido no mercado farmacêutico, teve impacto decisivo na alteração da legislação sobre medicamentos nos países ocidentais (Tognoni; Laporte, 1989; Capellà; Laporte, 1989; Blaschke; Nies; Mamelok, 1987).

O que esses casos evidenciam é que os efeitos nocivos das práticas médicas não resultam apenas do que se convencionou chamar de erro médico, pois, desde quando as práticas médicas se mostraram suficientemente eficazes para fazer alguém sair vivo de um hospital, começou-se a perceber que “a medicina poderia ser perigosa, não na medida em que é ignorante ou falsa, mas, na medida em que sabe, em que é uma ciência” (Foucault, 1982b, p. 7). Convencionou- se chamar iatrogênese os “efeitos medicamente nocivos que se devem, não a erros de diagnóstico ou à ingestão casual de medicamentos, mas à própria ação da intervenção médica no que ela tem de racionalmente fundada” (Foucault, 1982b, p. 8). Mais precisamente, iatrogênese é “o termo técnico que qualifica a nova epidemia de doenças provocadas pela medicina” (Illich, 1975, p. 32). Illich detectou inúmeros processos iatrogênicos, sendo a invasão farmacêutica apenas um deles. De todo modo, a invasão farmacêutica foi decisiva para a consolidação do seguinte paradoxo: “quanto melhor se sabe defender e proteger o organismo, mais ele fica exposto e desprotegido” (Foucault, 1982b, p. 8).

Criminalização

Medidas visando o controle ou a proibição pura e simples de algumas substâncias que hoje denominamos drogas não são procedimentos recentes. Não obstante, é bem mais recente a percepção de um “problema de drogas”, ou seja, a consideração como problemática de um conjunto específico de substâncias ou, mais precisamente, de certas modalidades de uso de um conjunto específico de substâncias. De fato, a restrição da categoria drogas a (modalidades de uso não médico de) um conjunto particular de substâncias, as substâncias psicoativas, não só é recente como também é contemporânea da partilha moral entre drogas de uso ilícito e drogas de uso livre, tolerado ou controlado.

Ao menos duas coisas chamam a atenção nas políticas atualmente em vigor a respeito das drogas. De um lado, é possível observar uma impressionante uniformidade nas políticas oficiais dos mais diversos países, ocidentais ou não, relativamente às drogas, a qual está relacionada com a paulatina imposição de um “controle internacional compulsório cooperativo” em torno das drogas (Scheerer, 1993, p. 170, 188). Embora seja possível encontrar exceções a essa regra, a tônica dessas políticas é marcada pela distinção entre drogas e fármacos e pela repressão a todas as formas de uso não médico de praticamente todas as drogas rotuladas como psicoativas, com as notórias, apesar de controversas, exceções do álcool etílico e do tabaco. Por outro lado, a ênfase repressiva dessas políticas contrasta nitidamente com a leniência das que vigoravam há cerca de um século relativamente às drogas, no sentido mais amplo do termo (Escohotado, 1994; Musto[197?]; Bonnie; Whitebread, 1970).

Há cerca de um século praticamente nenhuma droga, de uso medicamentoso ou não, era objeto de controle, quanto mais sujeita à criminalização.21 No entanto, ao longo do século XX, praticamente todos os países do mundo viriam a implementar políticas mais ou menos repressivas em torno do uso de certas drogas. Exceções à parte, tais políticas caracterizaram-se pela criminalização da produção, do tráfico e do uso de drogas com propósitos não terapêuticos e pela crescente ampliação de substâncias consideradas drogas de uso ilícito. Por outro lado, foram os saberes médico-farmacológicos os nominalmente acionados, na grande maioria dos casos, para fundamentarem cientificamente tais políticas de repressão. Não é à toa que a criminalização de certo conjunto (de usos) de substâncias se deu em conjunção com a invasão farmacêutica e com o crescimento da importância social das atividades biomédicas. Também não é à toa que a restrição do sentido do vocábulo drogas tenha sido contemporânea desses processos. Daí que, em todos esses casos, as políticas de repressão a partir de então tornadas hegemônicas em torno das drogas consideradas ilícitas tiveram, nominalmente, um duplo fundamento: médico e jurídico. É por conta desse duplo fundamento que, ainda e, sobretudo, hoje, quando as medidas de repressão pura e simples começam a ser mais intensamente criticadas, seja pela ineficácia em fazer reduzir a demanda por drogas, seja pelos efeitos perversos oriundos de sua implementação – como o crescimento inaudito do crime organizado em torno

da produção e do tráfico de drogas (máfias, cartéis, etc.) –, as alternativas oficiais atualmente em discussão tendem a tratar o problema nem tanto como sendo, apenas, da alçada jurídica, mas, também, da alçada da saúde pública: cadeia para produtores e traficantes, clínicas de tratamento para usuários.

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