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Prazer e “drogas”: entre a ilusão e a artificialidade

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 145-148)

Embora a idéia de degradação e sofrimento seja a mais comumente associada às “drogas”, a relação entre seu consumo e sensações prazerosas é praticamente consensual no campo dos saberes médicos. Ou seja, não há debate ou controvérsia quanto a um efeito entendido pelos consumidores de “drogas” como prazeroso.5 No entanto, a análise mais atenta dos discursos médicos que relacionam o consumo de “drogas” ao prazer revela que a complexidade com que se definem os termos e a maneira como eles são valorados se estabelece muito mais como uma controvérsia do que propriamente um consenso.

Do ponto de vista farmacológico, cada substância psicoativa é capaz de produzir reações específicas no SNC. Ainda que essas reações causem efeitos bioquímicos diversos, cujo resultado final é agrupado didaticamente pelos manuais médicos como estimulante, alterador ou depressor, esses efeitos seriam percebidos pelos consumidores, de um modo geral, como prazerosos. Tais sensações são explicadas pelos saberes médicos como interferências no processo de captação e recepção de neurotransmissores relacionados às sensações de bem-estar, como a dopamina e a serotonina, por exemplo. Ao mesmo tempo, no entanto, há uma percepção geral, pelo menos por parte dos saberes médicos aqui classificados como tradicionais, de que o consumo dessas substâncias não é um hábito saudável ou recomendável; pelo contrário, encadearia riscos e danos para os seres humanos (a idéia de risco será discutida na próxima seção). Como, então, a medicina pode conciliar o pressuposto de negatividade atribuído ao consumo de “drogas” com um aparente consenso a respeito da relação direta entre essa prática e prazeres por ela desencadeados? É nesse momento que se começa a desenhar a controvérsia.

Ocorre uma operação discursiva que desconecta o consumo de “drogas” do prazer, pelo menos daquele sentido mais comum que se atribui a esse termo. Dessa maneira, tal relação não é negada; pelo contrário, ela é reafirmada, mas a partir de um outro sentido, conferindo ao uso de “drogas” uma especificidade. Consumir “drogas” pode proporcionar um tipo de prazer, mas ele é portador de negatividades intrínsecas. Essa negatividade parece assumir diferentes formas, agrupadas, com objetivos analíticos, em dois tipos de analogia mais comuns: ilusão e artificialidade. Quer se atentar aqui menos para o sentido semântico desses prazeres, que obviamente não se excluem, mas para regimes discursivos diferenciados que tais analogias podem revelar.

O prazer proporcionado pelo consumo de “drogas” é capaz de esconder o perigo de um efeito temporal funesto. Esse seria o principal sentido ilusório do prazer causado pelas “drogas”, pelo menos na forma assumida por esse termo nos discursos médicos preponderantes. Ele esconde uma espécie de armadilha, cujas poucas saídas possíveis são dolorosas, o que se contrapõe, dessa maneira, a sua face inicial, quando se tratava de uma espécie de “prazer- isca” capaz de atrair o indivíduo desavisado ou imprudente. Por um período de tempo variável, mas finito, o consumidor obtém através do consumo da “droga” uma sensação prazerosa, mas que pode, ao longo de um determinado período de tempo, torná-lo perigosamente ligado a ela. Caso não interrompa ou regule essa relação, estará condenado a buscar no consumo da “droga” a simples evitação dos sofrimentos impostos pela sua falta. Esse estágio seria, enfim, o que caracteriza um quadro de dependência, no qual o indivíduo não estaria nos domínios dos prazeres, mas, sim, próximo do alívio. Se essa sensação de alívio pode ou não ser considerada prazerosa importa pouco, já que emerge desse discurso uma forma de progressão cronológica entre o prazer e o seu nefasto duplo: primeiramente, a busca por novas sensações, experiências, tidas como positivas; depois, a evitação da falta, da abstinência, um prazer eminentemente “negativo”.6

Simplificadamente, pode-se representar a noção de prazer ilusório através de uma espécie de escatologia de autodestruição, mas, no entanto, nele também está inscrito, de alguma maneira, um potencial de manutenção dos prazeres: a moderação, o controle ou a natureza da substância consumida podem ser variáveis determinantes para a manutenção de um prazer regrado que impede a instauração de um quadro de dependência. Essa ambigüidade dos saberes médicos é bem exemplificada no caso do álcool, cujo consumo regulado, socialmente legitimado e circunscrito a alguns momentos específicos de interrupção da vida cotidiana continua proporcionando a ilusão do prazer sem que, necessariamente, esse se torne apenas um alívio da evitação de sofrimentos. Assim, o pressuposto de que o consumo de “drogas” é negativo porque, entre outras coisas, esconde uma armadilha, traz consigo um potencial de que dela se pode escapar desde que se possa interromper uma cronologia traçada entre o

primeiro uso e a dependência. Essa ambigüidade é muito mais explícita em algumas substâncias, notadamente as legais, como o álcool, por exemplo.

A idéia ambígua de ilusão pode ficar mais clara se contraposta a uma segunda analogia, aquela que vincula o prazer proporcionado pelo uso de “drogas” ao domínio da artificialidade Trata-se, antes de tudo, de uma concepção muito mais farmacológica de prazer e, portanto, não pode ser apartada, analiticamente, do desenvolvimento dos saberes médicos acerca do funcionamento bioquímico do cérebro humano. O prazer é, dessa forma, uma função fisiológica: determinadas “drogas” agem sob o SNC e causam sensações diversas que são sentidas pelas pessoas como prazerosas.7 Dessa vez, para além da idéia de ilusão, a negatividade estaria relacionada às maneiras específicas como certas substâncias são capazes de acionar determinadas funções fisiológicas causando, entre outras sensações, o prazer. De maneira bastante sintética, essas substâncias seriam capazes de interferir em sistemas neurais específicos, atributos universais da espécie humana, cuja função evolutiva é proporcionar sensações prazerosas quando uma ação ou um evento “benéfico” para o organismo ou para a sua reprodução ocorre: alimentação, hidratação, procriação, etc. Ou seja, o prazer tem um papel a cumprir no corpo humano, mas, no entanto, sua natureza fisiológica não é diferente de outros prazeres – afastando-se, assim, de uma especificidade dos prazeres acionados pelas “drogas” ao qual parecia se limitar quando estavam relacionados apenas a idéia de ilusão. A especificidade é explicada, agora, através do acionamento proposital de mecanismos de prazeres fisiológicos sem que nenhum “evento” positivo ou primordial para a sobrevivência tenha ocorrido e, portanto, uma forma de acionamento artificial dos mecanismo de prazer. As “drogas”, mais do que uma sensação efêmera de prazer (ilusão), são capazes de proporcionar prazeres reais que, no entanto, são meros resultados de desajustes artificiais no funcionamento “normal” do corpo humano: “E as drogas dão uma espécie de curto-circuito, dão ao corpo uma espécie de prazer sem que ele exista. Dão uma ilusão química do prazer”.8

A fala do especialista9 exprime mais claramente a analogia entre artificialidade e prazer proporcionado pelo consumo de “drogas” que se busca discutir aqui. De alguma maneira, a ilusão não foi substituída, ela está incorporada na noção de artificialidade. Ou, talvez, a construção argumentativa de artificialidade se adapte a uma nova fase, a um novo regime de verdade, no qual os saberes médicos se aprofundam no estudo do comportamento humano através do recorte detalhado do funcionamento neurológico. Deve-se considerar que a maior parte das substâncias psicoativas foi identificada pela medicina sem que houvesse explicação plausível do seu mecanismo de ação no cérebro. Conhecendo os mecanismos de ação das diversas “drogas” no cérebro, os saberes médicos podem, então, simultaneamente percorrer, no nível dos discursos, entre os domínios do prazer a sua correspondente artificialidade para que, sob um patamar muito mais eficaz, se mantenha não só a idéia de ilusão, mas também de anormalidade: as “drogas” podem dar prazer porque são capazes de acionar uma ilusão

química artificial. Esse processo, por se configurar numa anomalia, cobra preços altíssimos do consumidor de “drogas”, estabelecidos muito além da dependência. De acordo com o psiquiatra Ronaldo Laranjeira:

O cérebro dela (a pessoa que usa cocaína) às vezes fica incapacitado de sentir prazer. É quase como se fosse uma vingança divina contra uma pessoa que busca o prazer artificial, é como se ela fosse punida pelo próprio cérebro, fica quase que incapacitado de experimentar as outras fontes de prazer (Informação verbal).10

A classificação do prazer encerra sempre uma hierarquização. Os saberes médicos perpetuam uma de suas características principais que é a normatização dos comportamentos humanos, através da qual se estabelece uma linha divisória, nem sempre clara, entre a normalidade e a patologia. No entanto, numa temática complexa como a do consumo de “drogas”, amparados em um sofisticado conhecimento sobre o funcionamento do sistema neurológico, os saberes médicos recolocam dilemas relacionados a um prazer concebido como normal e outro, tido com ilusório ou artificial, a partir de uma nova economia discursiva. Ainda não estão muito claros os efeitos desse processo; o que pode ser dito, com alguma certeza, é que permanece em operação uma lente ambígua através da qual os saberes médicos tematizam e explicam a insistente e perigosa busca dos seres humanos pelas sensações que eles denominaram como prazer.

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 145-148)