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intervenção política

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 124-142)

Entrevista concedida por Gilberto Velho a Maurício Fiore

A obra do antropólogo Gilberto Velho é referência no campo da antropologia urbana brasileira. Embora nunca tenha se restringido a um único campo de pesquisa, estabelecendo um percurso intelectual marcado pelo pioneirismo em diversos temas, tratou do fenômeno do consumo de substâncias psicoativas nas classes médias urbanas em sua pesquisa de doutoramento, trabalho que é, sem dúvida, um dos mais importantes de sua carreira. E a importância de Nobres e Anjos não se esgota nas perspectivas de um novo campo de pesquisa que abriu: um rico material de campo, sensivelmente coletado, articula-se a uma análise capaz de transitar por referências teóricas diversas, notadamente com o interacionismo simbólico norte-americano, naquele momento ainda pouco conhecido no Brasil. Essas qualidades fazem de Nobres e Anjos um marco da pesquisa sobre consumo de psicoativos nas Ciências Sociais. A pesquisa, que em 2005 completou trinta anos, teve, e continua tendo (só foi publicada em 1998) um impacto importante: o trabalho de Velho sentenciou de forma capital, no âmbito das Ciências Sociais, uma abordagem dos consumidores de substâncias psicoativas ilícitas a partir de uma generalização patologizante. Além disso, deve-se ressaltar a importância política das críticas à concepção proibicionista, mundialmente hegemônica, que, nesse e em outros trabalhos de Gilberto Velho, teve suas principais fundamentações teóricas questionadas.

Nessa entrevista, realizada em seu apartamento, no bairro de Copacabana, cidade do Rio de Janeiro, em outubro de 2005, Gilberto Velho discute a importância do consumo de psicoativos em sua trajetória intelectual, expõe suas principais idéias e aponta para a urgência de uma intervenção política.

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MAURÍCIO FIORE – Em 2005, a defesa da tese Nobres e Anjos1 completou trinta anos. Aproveitando essa efeméride, você poderia falar um pouco sobre o contexto de produção da tese, em meio à ditadura e num momento no qual a antropologia urbana ainda se consolidava em São Paulo e no Rio de Janeiro. Enfim, em poucas palavras: por que o tema?

GILBERTO VELHO – Na realidade são diversas variáveis. Num plano, o Nobres e Anjos (1998) é um desdobramento da minha dissertação de mestrado, A Utopia Urbana,2 uma pesquisa sobre um setor de camadas médias da Zona Sul do Rio de Janeiro, basicamente em cima do caso copacabanense. A pergunta básica da dissertação de mestrado era em torno da decisão de morar em Copacabana. Foi uma maneira que encontrei de entrar no universo sociológico e numa visão de mundo, colocando através dessa pergunta uma série de possibilidades para perceber alguma coisa de uma espécie de um ethos e, ao mesmo tempo, fazer uma etnografia do prédio em que eu morei durante um ano e meio, através de observação- participante com moradores de Copacabana. Eu acionei alguns alunos meus de graduação na época, que me ajudaram muito generosamente, aplicando questionários em outros prédios. Então, na realidade, a primeira entrada é o estudo sobre camadas médias, área não só praticamente inexplorada no Brasil até então, mas também em termos internacionais, já que havia muito pouca coisa. Na divisão intelectual do trabalho das Ciências Sociais, as camadas médias não eram bem a área da antropologia e eu, por diversas razões, considerei que não havia nenhum motivo para não ser. Inclusive por causa do regime militar, porque eu achava que uma das coisas que precisavam ser feitas para tentar compreender como é que nós tínhamos chegado ao golpe de 1964, e ao apoio que o golpe teve por parte de setores importantes, sobretudo das camadas médias, era aproximar-se delas com outro olhar. Não simplesmente dizer que camadas médias ficavam entre os trabalhadores, a classe operária e as oligarquias, as elites; era necessário entender mais as camadas médias em sua complexidade, em sua heterogeneidade, em seus variados estilos de vida. Então, A Utopia Urbana correspondeu a uma primeira etapa; Nobres e Anjos, em seguida, corresponderia a um outro segmento de camadas médias, um outro setor, outro conjunto. Aí sim, as camadas médias que chamaríamos hoje precisamente de altas, na fronteira das elites. As camadas médias, como estão descritas no livro, tanto em termos de status como em termos de renda, numa posição bastante superior em relação ao que eu tinha estudado em Copacabana antes.

Então havia, portanto, esse eixo que era o estudo de camadas médias. Mas entre a dissertação de mestrado e a tese de doutoramento, eu fui para os EUA. Fui em 1971 e passei um ano, tanto fazendo cursos na Universidade do Texas, em Austin, que era e ainda é um grande departamento de antropologia, como fazendo pesquisa, sobretudo na Nova Inglaterra, no verão, com portugueses, especialmente açorianos. Entre os cursos que fiz em Austin, um foi particularmente importante: um curso de um professor chamado Ira Buchler, que tinha o título de Etnografia dos hospitais psiquiátricos e prisões. Esse curso foi muito importante. Eu já conhecia alguma coisa do Goffman,3 mas a partir daí eu o li muito mais, além de uma série de outros autores que eu não conhecia, apenas tinha ouvido falar, entre os quais está o Howard Becker,4 que eu realmente não conhecia. Aqui no Brasil, esse autor não era lido (depois o Juarez Brandão Lopes, na defesa da minha tese, falou que o tinha conhecido). Eu

gostei muito do trabalho dele e já na minha dissertação de mestrado eu tinha lidado claramente com situações de estigma, de acusação e de desvio. Isso foi construindo um segundo eixo: o estudo da transgressão, do desvio, do comportamento desviante. Assim, eu cheguei à temática de Nobres e Anjos, que era um estudo de camadas médias e altas, elitizadas, de status social, de prestígio e, ao mesmo tempo, uma dimensão de vanguarda não só artística/intelectual, mas no sentido de que eram pessoas ligadas a uma série de interesses não só no Brasil, mas internacionais, que correspondiam aos seus modos de utilização de drogas. Ou seja, usavam maconha, muitos, mas nem todos, usavam o LSD e algumas variantes, depois a cocaína, mas, e isso era o mais interessante para mim no início, tentar entender esse tipo de uso: não é a droga em si, mas são os usos da droga que importam; o que tem significado sociológico, antropológico, é o uso da droga. Através desses grupos que eu estudei nessa fase fui, justamente, tentar perceber como poderiam se estabelecer vínculos entre os usos de drogas e os modos de vidas, visões de mundo, ethos. Nobres e Anjos correspondeu ao encontro desses dois eixos. De um lado uma preocupação com status, estratificação, com classe, com visão de mundo, com uma vertente marxista/weberiana, digamos assim e, de outro lado, uma vertente ligada à questão da transgressão e do desvio, mais simmeliana/interacionista.5 Hoje em dia isso está muito mais claro para mim, do que propriamente no início.

MAURÍCIO FIORE – A junção desses dois eixos, na época, não era comum. As Ciências Sociais eram muito mais pautadas pelos eixos de classe e status. A abordagem do desvio e da transgressão era bem recebida? Qual foi o impacto acadêmico desses seus trabalhos?

GILBERTO VELHO – Havia um plano original que, chegando nos EUA, todos os cursos que eu fizesse, os créditos, seriam utilizados para o doutorado no Museu Nacional, que estaria sendo criado. Acontece que houve uma crise institucional no Museu e esse doutorado não foi criado. Diante disso, por sugestão de Roberto Cardoso de Oliveira, meu amigo, que era o diretor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) inicial, eu cheguei à professora Ruth Cardoso, que foi esplêndida, que se interessou imediatamente pelo tema, com quem tive um diálogo extremamente fácil, feliz e fluente. Eu ia desenvolvendo minha pesquisa e de vez em quando nos encontrávamos, conversávamos... é até engraçado, na época em que ela estava exercendo o papel de primeira-dama,6 chegou, em mais de uma oportunidade, a fazer declarações a favor da descriminalização, e eu não pude deixar de me lembrar de nossas conversas nos anos 1970 sobre drogas. É claro que havia um sabor um pouco herético nessa investida, mas eu já tinha experiência com heresia no estudo de Copacabana. Eu tinha uma inclinação um pouco herética de usar a Antropologia para estudar Copacabana e depois então para trabalhar com a questão da droga. É claro que a questão da droga tinha uma outra vertente que era o fato de estarmos mais uma vez em um regime militar e havia um problema de ser uma atividade ilegal, quando não criminosa. Então isso exigia cautela, prudência, estratégias nem sempre muito simples. Aí vem uma questão, que é uma questão que acompanha meu

trabalho quase desde o início, que eu expressei num artigo meu chamado Observando o

familiar

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MAURÍCIO FIORE – Esse, aliás, era um tema que eu queria entrar, a questão do distanciamento e da familiaridade...

GILBERTO VELHO – Essa é uma das questões que sempre me interessou. Tive até um debate saudável com o Roberto Da Matta quando escrevi Observando o familiar, principalmente porque o meu ponto é que alguma coisa ser familiar não significa que ela seja conhecida e que, portanto, para você estudar o familiar, você tem que desenvolver uma estratégia própria de objetivação, de estranhamento, de distanciamento, nem que seja num movimento de ir e vir, mas que é fundamental. A Antropologia tinha esses instrumentos, os meios e a bibliografia, não porque estabelecia um compartimento estanque em relação à Sociologia, mas porque havia uma tradição antropológica que permitia, através da etnografia de certas temáticas (cosmologia, representações, família e parentesco, por exemplo), entrar e investigar esse próximo, esse tão-próximo assim. Havia esse sabor levemente herético, mas as coisas correram muito bem em geral. A Utopia Urbana, quando publicado, foi muito bem recebido, teve até um relativo sucesso mercadológico, o que na época era surpreendente. E o Nobres e Anjos... foi um bela banca, uma banca de alto nível, houve debate, houve discussão...

MAURÍCIO FIORE – Eunice Durham...

GILBERTO VELHO – Eunice, Juarez Brandão, além de Ruth Cardoso, Peter Fry e Mario Bick, que era um professor-visitante norte-americano e tinha um certo conhecimento dessa literatura. E, antes da defesa, eu já tinha sido convidado pelo Howard Becker – isso é um outro lado interessante – para ir aos EUA, porque eu tinha publicado uns dois ou três anos antes aquela coletânea Desvio e Divergência, um ano depois de A Utopia Urbana. E o Desvio e

Divergência foi um sucesso editorial maior ainda,8 porque era uma temática nova, uma coisa de política do cotidiano, tinha Becker, tinha Goffman, tinha Foucault, era realmente uma mudança de perspectiva, era o dia a dia, discutindo homossexualismo, drogas...

MAURÍCIO FIORE – Tanto do ponto de vista temático como do ponto de vista analítico, pois ele sofisticava um olhar ainda muito calcado em classe e Estado.

GILBERTO VELHO – Esse livro continua sendo reeditado e, na época, esse livro causou bastante impacto. Ampliou as relações da Antropologia com a área psi, eu e depois alguns alunos meus, que seguiram caminhos próprios, como o Luís Fernando Duarte, investiram nessa relação com a área dos estudos psíquicos (psicologia, psicanálise e psiquiatria) e o que ocorreu foi que um americano da Fundação Ford gostou muito do livro e por coincidência era amigo pessoal do Howard Becker. Mandou o livro para o Becker, que lia espanhol, fez um esforço, gostou e me convidou para ir para Northwestern, para ser visiting scholar naquela universidade. Defendi minha tese em dezembro de 1975 e em janeiro de 1976 eu já estava em Evanston, onde fica a Northwestern.

MAURÍCIO FIORE – Trabalhando com o Becker diretamente?

GILBERTO VELHO – Trabalhando diretamente com o Becker. Desde então, tornamo- nos associados, até hoje, obviamente numa relação de outra ordem, mas mantemos intercâmbio de estudantes, vindas dele aqui, idas minhas para lá e ele divulgou parte de nossa produção. No final dos anos 1970 eu publiquei dois artigos na revista Social Problems,9 muito importante para o a escola interacionista e em outras revistas também. É como se através dessas etapas nós estivéssemos ampliando e criando novas frentes de investigação para o que nós chamamos imprecisamente de Antropologia das Sociedades Complexas. Não é só Antropologia Urbana porque não é apenas a cidade que está em jogo, é uma Antropologia das Sociedades Complexas, uma Antropologia das Sociedades Contemporâneas...

MAURÍCIO FIORE – A cidade não só como lugar mas como espaço público....

GILBERTO VELHO – Exatamente. E a interação, os estudos de redes, aí também uma outra tradição sempre muito importante para mim foram os estudos britânicos de social

networks10, com Clyde Mitchell, Elizabeth Bott, Gluckman, Turner, todos foram muito importantes para mim. E também usei muito a produção da “Escola de Chicago”,11 acho que sou uma das pessoas que conhece razoavelmente bem a produção dessa Escola, mas isso não chegou a se constituir numa filiação.

MAURÍCIO FIORE – Na sua obra parece ter um esforço muito grande, ao mesmo tempo em que não se filia automaticamente, no sentido de que não comprar o “pacote”. Parece haver um esforço na utilização de diversos autores, por quê?

GILBERTO VELHO – É programático. É um estilo pessoal e eu acho que tem a ver com a minha noção do que seja o trabalho intelectual: ele deve procurar somar, juntar, compatibilizar na medida do possível. Evidentemente, existem algumas coisas que não são compatibilizáveis, algumas até são totalmente incompatíveis. No entanto, certamente eu não trilho o caminho de cultivar incompatibilidades, cultivar antagonismo entre escolas, entre correntes. Eu acho que existe muita complementaridade, muitas coincidências, muitas coisas que estavam sendo ditas pela Escola Sociológica Francesa ao mesmo tempo em que eram ditas por autores alemães, autores americanos. Autores americanos como William James, como o próprio William I. Thomas, os fundadores da Escola de Chicago; enquanto isso, mais ou menos simultaneamente você tem, na Alemanha, Weber e Simmel e, na França, Durkheim e, depois, Mauss...

MAURÍCIO FIORE – A complexidade dos objetos exige que você esteja aberto....

GILBERTO VELHO – E você acaba descobrindo que, se em muitos casos havia invenção independente, por outro lado havia relações que eram pouco conhecidas. Não é pouco conhecido, aliás, é bastante conhecido o fato de que o Durkheim e o Simmel se correspondiam. O Robert Park, um dos autores mais importantes da Escola de Chicago, foi aluno do Simmel. O Simmel foi muito traduzido nos EUA, o Weber viajou para os EUA. Existiam relações. Você não é a primeira pessoa que faz essa observação, há uma tentativa de juntar traduções, estilos, em

nome de objetos diversificados, numa temática que é muito ampla. E essa questão clássica indivíduo e sociedade... agora mesmo eu estava relendo esse último livro do Sahlins12 e é uma questão que permanece extremamente atual, não está resolvida. “Acabou essa problemática, o indivíduo está dissolvido na sociedade”, é mais complicado do que isso. É uma tensão constitutiva do campo.

MAURÍCIO FIORE – Você considera, então, problemática a idéia de filiação teórica? Porque, ao que parece, nós caminhamos para uma especialização das ciências humanas, comprando um pouco os modelos das ciências exatas e biológicas?

GILBERTO VELHO – Eu falei um pouco sobre isso no encontro da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) de 2004: você deve manter uma certa abertura, um reconhecimento de que certos temas são constantes, que se reapresentam de modos distintos, mas que são constitutivos da área; é preciso saber reconhecê-los. Há novidades, é claro. Mas existem certos temas que vão nos acompanhar sempre.

MAURÍCIO FIORE – Me parece haver uma certa estigmatização do pesquisador que se dedica ao tema do consumo de psicoativos nas Ciências Sociais. Mesmo que Nobres e Anjos não tenha sido um trabalho específico sobre drogas, na época você sentiu de alguma forma esse estigma, naquela linha do preconceito vinculado ao objeto: homossexualismo é estudado por homossexuais, relações raciais por negros, uso de drogas por “drogados”? Eu percebo um pouco esse estigma, ainda que se apresente na forma de piadas, de comentários...

GILBERTO VELHO – Eu, pessoalmente, não sofri diretamente, mas sei que isso existia em relação a outras pessoas que vieram a estudar. É claro sempre existe alguma reação ou um preconceito com relação a um tema novo. São inúmeros exemplos. Eu me lembro quando meu aluno Hermano Vianna veio me procurar para estudar funk, eu não tinha idéia da importância do funk, mas ele me explicou, eu acreditei, foi notável, foi um trabalho magnífico.13 Não só ele como aluno, mas eu como orientador, as pessoas olhavam com uma certa desconfiança, um tema “desimportante”, uma coisa grosseira, alienante, algo nessa linha. Nós estamos sempre sujeitos a isso. Claro que o tema das drogas sempre suscitou alguma ambigüidade, mas avançamos muito com relação a isso. Quer dizer, se você ainda sente esse tipo de coisa, pode ter certeza que muita coisa se fez e avançou-se com relação à abertura. Eu nunca me senti diretamente desqualificado, com piadinhas sobre uso de “drogas”.

MAURÍCIO FIORE – E no sentido de não conferir legitimidade ao tema, como se não fosse relevante?

GILBERTO VELHO – Não propriamente assim. Porque foi pela maneira como eu tratei o tema, eu não era um especialista em drogas, pura e simplesmente, isso sempre ficou muito claro. Quer dizer, eu estava estudando drogas como um meio, um instrumento para o estudo de questões mais amplas. Aliás, eu acho que para todos vocês que estão trabalhando com esse tema também, não deve haver uma obsessão com a droga em si. A droga é um assunto por si só

rico, importante, que merece ser estudado, pois se ele é bem estudado, te permite abrir para uma série de outras áreas. Então, estudar drogas é estudar a sociedade. O uso de drogas é um fenômeno universal, em todas as sociedades existe alteração do estado de consciência, toda sociedade lida com isso, pode lidar mais ou menos deliberadamente, pode lidar através de rituais explícitos, claros, ou talvez não necessariamente tão explícitos; mas em qualquer sociedade, através de música, através de festa, através de religião, há situações nítidas de alteração de estado de consciências sistemáticas, com passagens de um estado para o outro. Isso é um fenômeno universal e quando você vai estudar drogas na sociedade moderna e contemporânea, você vai estudar uma dimensão dessa problemática mais geral: como, na sociedade moderna e contemporânea, se utiliza a droga, que grupos utilizam, como utilizam, como vêem o uso da droga, como negociam o uso da droga com outros grupos, como se dá esse grande drama do conflito permanente ligado à questão do uso e consumo de drogas? Só isso, só o fato de haver esse conflito justifica plenamente qualquer nível teórico, sociológico ou antropológico, para investigação.

MAURÍCIO FIORE – O Nobres e Anjos é muito interessante porque revela, para além da questão do uso de drogas, dimensões importantes das visões de mundo, do ethos da classe média naquele momento.

GILBERTO VELHO – Esse tema não só levanta questões relevantes para as Ciências Sociais num sentido mais restrito, como levanta questões filosóficas e políticas. A problemática da liberdade, questões éticas, as questões dos projetos individuais, a questão do prazer. Por que as pessoas usam drogas? Obviamente que uma das razões das pessoas usarem drogas é porque elas são prazerosas, ou são definidas como sendo prazerosas. Os grupos que utilizam drogas definem, bem na linha do Howard Becker, de algum modo, que elas são boas, que elas são fonte de prazer, satisfação, realização. No grupo que eu estudei, sobretudo os “nobres”, naquela época, evidentemente, e podemos conversar sobre as diferenças de lá para cá, havia muito nitidamente uma idéia de auto-aperfeiçoamento, de autodescoberta. Com a maconha também, mas sobretudo com o ácido, a idéia de que a maconha pacificava, a maconha era uma coisa que ajudava a sociabilidade, que relaxava, isso tudo dentro de uma visão muito crítica da repressão, fosse do Estado autoritário fosse das famílias. Você tinha a possibilidade de, não só pela maconha, mas, sobretudo, pelo ácido, através das famosas “viagens”, descobrir- se; alguma coisa ligada, ou paralela, ou suplementar, à psicanálise.

No documento Drogas e cultura: novas perspectivas (páginas 124-142)