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MARXISMO

3.14 A CONSTITUIÇÃO DO TERCEIRO CAMINHO

Mas, pergunta-se Garaudy (1965), qual seria então, para Sartre, o princípio de unidade que funda a existência e a legitimidade deste partido, já que o mesmo não admite, como o fazem Marx e Lênin, a fusão do movimento operário e do conhecimento científico, permitindo a passagem da classe em-si à classe para-si. Negando-se a reconhecer o valor de uma ciência do desenvolvimento histórico, Sartre, diz o autor, busca em sua ontologia esse princípio de unidade.

Contudo, em 1954, Sartre aprofunda sua análise da consciência operária, investigando as condições históricas do desenvolvimento do movimento operário na França, e tais investigações testemunham sua evolução filosófica: a especificidade do histórico e do social impôs-se a Sartre, sendo possível percebe-la a partir do sentido que o mesmo dá à negatividade, diferente daquele presente em O Ser e o Nada, como demonstra Garaudy (1965):

Rejeitar não é dizer não; é modificar pelo trabalho. Não há que crer que o revolucionário rejeite em bloco a sociedade capitalista: como poderia faze-lo, se se acha dentro dela? Muito ao contrário, aceita-a como um fato que justifica sua ação revolucionária. Transforma o mundo, diz Marx. Transforma a vida, diz Rimbaud. Em boa hora:

transforma-os se podes. Isso quer dizer que aceitarás muitas coisas para modificar algumas delas. No seio da ação, a rejeição reconhece sua verdadeira natureza: é o momento abstrato da negatividade (Sartre apud Garaudy, 1965, p.106).

Garaudy (1965) destaca que Beauvoir sublinhou em artigo escrito sobre as idéias de Sartre, que este, através do desenvolvimento de sua obra, insistiu cada vez mais no caráter comprometido da liberdade, na facticidade do mundo, na encarnação da consciência, na continuidade do tempo vivido. A filósofa também admitiu, contudo, que a conciliação da ontologia e da fenomenologia de Sartre suscita dificuldades.

necessidade de fazer diretamente apelo à História para evitar o escolho do niilismo. A realidade que fornecia à filosofia suas bases nada mais era do que o combate da sociedade burguesa em gestação, contra o feudalismo caduco. Em termos filosóficos, isto se chamava, então, de combate da razão contra o irracional e o caos (LUKÁCS, 1967).

Os pensadores mais evoluídos, anteriores à Revolução Francesa, se embalavam, com efeito, na ilusão de ver surgir, espontânea e inevitavelmente, uma sociedade baseada na razão e na harmonia, a partir da ação do indivíduo egoísta e isolado. Poder-se-ia quase dizer, continua o autor, sob uma forma um pouco paradoxal, que a concepção econômica de Adam Smith dava, enfim, fundamento aos grandes sistemas filosóficos anteriores à Revolução Francesa.

Essa base objetiva da filosofia devia, entretanto, sofrer uma metamorfose profunda, devida ao triunfo da Revolução Francesa e ao término da revolução industrial na Inglaterra. Antes de qualquer coisa, a historicidade do mundo e, em primeiro lugar a da humanidade, impôs-se ao pensamento.

Isto significa concretamente que o pensamento teve de reconhecer o “império da razão” – de que Engels havia dito tão espirituosamente que, uma vez realizado, mostrar-se-ia como o império da burguesia – como um estado passageiro da humanidade. Desta forma, diz Lukács (1967), toda filosofia que tende a esconder esse caráter historicamente transitório do capitalismo, condena-se a perder toda perspectiva. Só a resignação total, a aceitação da impotência da razão, pode aceitar o capitalismo como perspectiva da evolução da humanidade. No estágio do imperialismo, um niilismo desesperado ou cínico junta-se a esse niilismo resignado e a ausência de toda perspectiva lhes serve de base comum.

Mas, sustenta o autor, a evolução econômica e social, desde a metade do século XIX, não somente privou a filosofia de todo fundamento especulativo supra-histórico, como também tornou-lhe sensível a impossibilidade de tomar como ponto de partida o indivíduo isolado e seus estados de consciência. A evolução econômica real provou concretamente o erro das concepções de Smith e Ricardo, demonstrando que em lugar de fazer nascer uma harmonia social, a soma dos atos individuais só pode dar lugar a um caos feito de crises e de guerras, que tenderia cada vez mais para a instauração de uma barbárie universal. Assim, o indivíduo isolado, enquanto ponto de partida do

pensamento filosófico (gnosiológico, ontológico ou psicológico) terminou por perder sua base implícita, amparada ainda há pouco por uma ilusão historicamente justificada.

Diante deste quadro, de acordo com Lukács (1967), a evolução das ciências naturais e sociais do século XIX encurralou o idealismo filosófico em contradições sociais e políticas que dominam nosso tempo e que não poderiam passar sem uma ideologia idealista. Dessa forma, a crise tomou obrigatoriamente o aspecto de uma série ininterrupta de tentativas, com vistas a descobrir um “terceiro caminho”, que haveria de permitir à moderna teoria burguesa do conhecimento, ultrapassar o idealismo e o materialismo. Na realidade, trata-se apenas, sem dúvida, de tentativas de renovação do idealismo destinado a tornar-se uma arma no combate ideológico contra o materialismo.

Trata-se antes de tudo, de opor o materialismo ao idealismo, de uma maneira fundamental, excluindo toda possibilidade de mal-entendido. A fórmula de Engels, segundo a qual o materialismo afirma o primado da existência sobre a consciência, enquanto que o idealismo se define pela afirmação do contrário, nos convém perfeitamente.

Mas essa definição de base oferece duas perspectivas possíveis à ideologia idealista. Na primeira, a do idealismo subjetivo, a consciência identifica-se a todas as formas da consciência individual, da qual a existência é apenas o produto, enquanto sensação, ilusão, idéia, etc. É assim que é possível distinguir diversas orientações no interior do idealismo subjetivo, de que certos adeptos admitem, fora da consciência, uma existência objetiva, mas incognoscível por princípio, enquanto outros proclamam inexistente tudo o que ultrapassa as formas e os conteúdos da consciência. Essa última orientação atinge sua forma mais pura no solipsismo (LUKÁCS, 1967).

Quanto ao idealismo objetivo, a noção à qual confere o caráter exclusivo de realidade propriamente dita, é igualmente assimilável à consciência, que não é, entretanto, a consciência humana e individual. Trata-se, ao contrário, de uma consciência objetivamente existente, da qual a consciência humana seria apenas um derivado muito longínquo, uma emanação ou uma fase. Ora, é evidente que não existe nem na natureza, nem na sociedade, e em nenhuma parte, aliás, uma consciência objetiva desta ordem, que seja independente da consciência humana. O idealismo objetivo está, portanto, por sua própria natureza, constantemente submetido à

necessidade de criar mitos para demonstrar e ilustrar a existência dessa consciência objetiva e seu papel de criador universal. Os mais importantes desses mitos são as diversas concepções da divindade, mas existem naturalmente outros mitos ideológicos relativos ao idealismo objetivo (LUKÁCS, 1967).

Contudo, o progresso das ciências no século XIX reduziu a nada este clima espiritual indispensável ao desenvolvimento do idealismo objetivo. Por isso mesmo, tornou-se impossível considerar o mundo humano, o conjunto da natureza e da sociedade, como o produto de um ato criador único: a partir de então, a consciência humana está dada para a ciência como o produto histórico de uma evolução natural de vários milhões de anos e de uma evolução social muito longa, diz o autor (LUKÁCS, 1967).

Segundo Lukács (1967), essa crise do idealismo objetivo levou o conjunto do pensamento idealista a uma alternativa. De um lado, restava-lhe a possibilidade de ligar-se a um solipsismo sem reservas, que só reconhece como efetivamente reais os conteúdos da consciência individual. É evidente que o pensador conseqüente que adotar esta doutrina ver-se-á obrigado a colocar em dúvida até a existência de seus semelhantes. A outra solução consistiria na confissão da falência do idealismo filosófico e na obrigação de proceder à sua liquidação.

O autor continua afirmando que condições particulares, próprias ao estágio do imperialismo, não permitiram essa evolução realizar-se. No seu lugar, assistimos a inúmeras tentativas sem resultado, cuja finalidade é elaborar um “terceiro caminho” da filosofia, tentativas que só podem se realizar ao preço de um logro demagógico, ou antes, nos pensadores de boa-fé, por um engodo inconsciente. Tal é o segredo do

“terceiro caminho”, que passa por não ser nem idealista nem materialista, mas representante de um ponto de vista mais elevado, mais científico e mais moderno.

Diante deste quadro, Lukács (1967) sustenta que a concepção do

“terceiro caminho” implica a confissão secreta da falência do idealismo.

Contrariamente ao idealismo clássico, cujos representantes tinham orgulho de se declararem idealistas e de participarem de um combate aberto contra o materialismo, os adeptos modernos do “terceiro caminho” não ousam mais proclamar sua filiação ao idealismo, e vão mesmo aparentar que o combatem.

Esse caminho só pode conduzir, mesmo em pensadores de boa fé, a uma mistura eclética e arbitrária de elementos provenientes de sistemas diferentes.

A derrocada das bases científicas do idealismo objetivo levou necessariamente os adeptos do “terceiro caminho” ao idealismo subjetivo. Não aceitariam, no entanto, as conseqüências que decorriam dessa situação e, renunciando contradizer seu próprio ponto de partida, esforçaram-se para atingir certo objetivismo, salvaguardando as posições teóricas do idealismo subjetivo. Obviamente, não podem escapar da necessidade de criar mitos, necessidade que resulta da estrutura geral do idealismo objetivo (LUKÁCS, 1967).

A crítica teórica de Lênin se aplica aos sistemas análogos nascidos ulteriormente, durante a evolução do imperialismo. O essencial da crítica leninista consiste em afastar todas as especulações vazias, para voltar à questão sobre a qual deve repousar toda teoria do conhecimento, a saber: o primado da existência ou o primado da consciência. Partindo daí, confronta o ecletismo da teoria do conhecimento moderno com os resultados das ciências, e essa confrontação demonstra que os adeptos do “terceiro caminho” são, na realidade, idealistas subjetivos (LUKÁCS, 1967).

Sendo assim, a tendência dominante da filosofia do estágio do imperialismo permanece imutável: é a pesquisa do “terceiro caminho”. Nada prova isso melhor do que o exemplo do existencialismo proveniente da fenomenologia de Husserl. Aí também a filosofia pretende atingir a realidade objetiva, auxiliando-se das categorias da consciência pura. A fenomenologia de Husserl e a ontologia à qual deu nascimento procedem examinando os conteúdos, os estados e os atos da consciência, diz Lukács (1967).

No que diz respeito à relação entre a verdade absoluta e a verdade relativa, Lukács (1967) destaca a seguinte assertiva de Lênin sobre este princípio:

Para o materialismo moderno, isto é, para o marxismo, somente os limites da aproximação da verdade objetiva são historicamente determinados, enquanto que a existência dessa verdade mesma é absoluta, tanto quanto nosso progresso em direção a ela... O que é historicamente determinado é a data e as circunstâncias da conclusão de nosso conhecimento da essência das coisas... mas o fato de que toda descoberta de tal natureza é um progresso do “conhecimento absolutamente objetivo”, é ele mesmo absoluto (Lênin apud Lukács, 1967, p.225).

Lukács (1967) sustenta, em suma, que toda ideologia é historicamente determinada, mas é absoluto que a toda ideologia científica corresponda uma

verdade objetiva, isto é, um elemento da natureza absoluta. Objetar-me-ão, continua o autor, que essa distinção entre verdade relativa e verdade absoluta é vaga. Responderei a essa objeção dizendo que minha distinção é suficientemente vaga para impedir a transformação da ciência em dogma, isto é, em uma coisa morta, rígida, petrificada. Somente o materialismo dialético pode chegar a essa concepção, flexível e intransigente ao mesmo tempo, da relatividade enquanto momento do absoluto, conclui.

Se caminhando do fenômeno para a essência, o conhecimento apenas segue o movimento da própria existência, isto é, se tudo o que se convencionou chamar

“abstração”, “lei natural” etc., é apenas forma nova, se bem que inacessível, à percepção direta do próprio existente, se enfim, esse caminho do conhecimento não constitui uma atividade autônoma, pertencendo-lhe exclusivamente, mas simplesmente, o reflexo complexo e indireto do movimento e da transformação do ser na consciência humana, então a teoria do conhecimento materialista, segundo a qual a consciência humana reflete a realidade objetiva cuja existência é independente da sua, apresenta-se sob uma luz completamente nova. A realidade objetiva sendo ela mesma um processo feito do movimento dos fenômenos que evoluem para tornar-se seu contrário, a reflexão não poderia pretender reproduzi-la de uma maneira adequada, a não ser com a condição de ser ela mesma dialética (LUKÁCS, 1967).

Essa concepção suprime de vez as questões que pareceram insolúveis à teoria do conhecimento do idealismo. A oposição rígida entre fenômeno e essência, entre o imediato e a coisa-em-si não existe mais. A essência é objetivamente real e, do ponto de vista da teoria do conhecimento, “da mesma essência” do imediato: essa descoberta suprime o erro que consistia em rebaixar o fenômeno ao nível da aparência. A interpretação geral e abstrata da noção de objetividade atribui existência tanto ao fenômeno imediato quanto à essência. A diferença que os separa manifesta-se, através da sucessão ininterrupta das transições, pela diversidade dos graus de existência (LUKÁCS, 1967).

Sublinhemos, entretanto, diz Lukács (1967), que não se trata de uma hierarquia fria e rígida, mas de uma unidade dialética, isto é, contraditória, da relatividade do ser ou do não-ser. A essência está dotada de uma existência mais profunda que o fenômeno imediato, que é apenas um de seus elementos constitutivos; a essência é precisamente a síntese, a unidade desses

elementos. Segue-se necessariamente que jamais poderiam ser considerados separadamente um do outro. O conhecimento da correlação mútua dos fenômenos objetivos e imediatos indica o caminho para o conhecimento da coisa-em-si.

As considerações que precedem não poderiam, entretanto, pretender esgotar o problema das relações dialéticas do absoluto e do relativo. O conhecimento da essência só se torna verdadeiramente adequado quando a reflexão chega a descobrir suas leis imanentes. É assim que a investigação científica abstrata atinge a mais elevada forma à qual possa pretender. Lênin, assim como Marx e Engels, não deixa de insistir na importância dessa consideração, sobretudo nas suas polêmicas contra o empirismo vulgar, que se perde na enumeração, na descrição e no ordenamento mecânico dos fenômenos imediatos.

Lênin, de acordo com Lukács (1967), faz sua a proposição geral da dialética hegeliana, segundo a qual o mundo dos fenômenos imediatos, assim como o da coisa-em-si, constitui para o conhecimento apenas momentos, gradações, transições. E, no entanto, após ter-se aproximado, em tão larga medida, da posição de Hegel, acusa-o de não ver o mundo da coisa-em-si, afastando-se cada vez mais do mundo dos fenômenos imediatos.

Hegel especifica que o mundo das leis nada mais é do que o reflexo imóvel do mundo existente, isto é, do mundo dos fenômenos imediatos. Disto resulta que em relação ao mundo das leis, o mundo dos fenômenos representa o todo, a totalidade, porque contém a lei e, além disso, a própria forma que se move. Em outras palavras, isto significa que o conjunto da realidade é sempre mais rico que a lei mais adequada, e é precisamente esse fato que melhor ilustra o papel da relatividade enquanto momento, na evolução do conhecimento científico. O conhecimento cada vez mais avançado das leis reduz, certamente, essa margem, cada vez mais, mas a contradição dialética entre essência e fenômeno imediato não é menos eterna. A lei concreta não será jamais senão a aproximação da totalidade real, sempre móvel, incessantemente mutável, em todos os sentidos infinita, que o pensamento não poderá jamais esgotar de uma maneira perfeita.

É assim que, de acordo com Lukács (1967), a teoria do conhecimento do materialismo dialético fornece uma boa resposta à questão da relatividade do conhecimento. Nossos conhecimentos são apenas aproximações da

plenitude da realidade e, por isso mesmo, são sempre relativos. Na medida, entretanto, em que representam a aproximação efetiva da realidade objetiva, que existe independentemente de nossa consciência, são sempre absolutos. O caráter ao mesmo tempo absoluto e relativo da consciência forma uma unidade dialética indivisível.

O pensamento idealista moderno, por seu turno, diz o autor, separa rigidamente o absoluto do relativo, separa cirurgicamente as relações vivas e reais da realidade objetiva, para isolar um único elemento, o da relatividade, que erige em único princípio condutor do conhecimento científico.

Lukács (1967) com isto conclui, que a concepção leniniana do conhecimento científico reserva, portanto, um lugar de primeiro plano à noção de aproximação, e esse fato é de uma importância prática considerável do ponto de vista da metodologia das ciências naturais e da sociologia. As concepções mecanicistas do materialismo antigo só podiam levar a ideologias fatalistas. O fatalismo que se funda em tais erros não é só teoricamente indefensável, mas ainda exerce um efeito paralisador em toda atividade humana, principalmente naquela que visa à transformação radical da sociedade no sentido do progresso. Escamoteando as ciências sociais, a dialética do caráter absoluto e relativo do conhecimento, amputando o conhecimento de seu caráter de aproximação, suprime-se a “margem de liberdade” filosófica da atividade social.

Lênin definiu a atitude que deve ter o partidário do materialismo dialético face à realidade objetiva, que existe independentemente da consciência, e também face à sua própria atividade prática na sociedade. Essa atitude funda-se teoricamente na relação entre o conhecimento e a realidade objetiva (LUKÁCS, 1967).

Contrariamente ao pensamento burguês, que nega a existência objetiva do mundo real e dele se desvia ideologicamente, o materialismo dialético propõe a confiança e a fidelidade em relação ao mundo objetivo (LUKÁCS, 1967). O conhecimento certamente não atingiu ainda toda a realidade, mas, continua o autor, isto é apenas um encorajamento para o progresso e lembra que os objetos mais preciosos, mais elevados do nosso pensamento foram sempre o reflexo da realidade objetiva, e que nosso progresso humano é função do aprofundamento dessa interação. Quando, enfim, entra em jogo a realidade mais próxima do homem, a sociedade, o materialismo dialético destrói ainda mais radicalmente o pessimismo da filosofia burguesa moderna