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MARXISMO

3.12 LIBERDADE EM SARTRE

mais solitário possuem igualmente seu aspecto social. Segundo Lukács (1967), o problema da liberdade humana é, ao mesmo tempo, um problema social e histórico. A liberdade não poderia ter um conteúdo concreto e uma relação dialética concreta com a necessidade, a não ser com a condição de ser compreendida, na sua gênese histórica e social, como a luta do homem contra a natureza, através da mediação das diversas formas da sociedade.

A gênese histórica e social da liberdade deve, portanto, ser explicada a partir da sujeição original do homem às forças da natureza, assim como às formas da sociedade, nascidas desta luta e que se tornam uma espécie de segunda natureza.

De acordo com Lukács (1967), as duas questões que acabamos de tratar surgem em Beauvoir no decorrer de sua análise da moral. Não é capaz, certamente, de fornecer uma resposta satisfatória, mas o fato não deixa de ser interessante. Beauvoir sabe, aliás, que a principal obra filosófica de Sartre não poderia fornecer uma base metodológica fértil, em vista da solução dos problemas que a preocupam.

O que nós encontramos em Beauvoir, segundo o autor, é antes a descrição paralela de dois estados opostos: a infância privada de liberdade e a existência em liberdade dos adultos. Mas isto se torna interessante só quando Beauvoir propõe-se estabelecer analogias entre as descrições fenomenológicas, e certos problemas concretos de ordem social, assim declarando: “É o caso, por exemplo, dos escravos que ainda não se elevaram à consciência de sua escravidão”. Estes viveriam então, de acordo com Beauvoir, em uma privação de liberdade análoga ao estado de infância.

Ter-se-ia aqui o direito de esperar, da parte de Beauvoir, um esboço dos elementos da passagem da consciência não-livre à consciência livre, a fim de melhor levar seus leitores a compreenderem o papel que o existencialismo atribui à sua noção de liberdade na evolução da humanidade, mas Beauvoir não se dedica a este empreendimento, conclui Lukács (1967).

Estamos, diz ele ainda, lançados na liberdade. Sendo assim, o autor afirma que Sartre aplica aqui à liberdade uma noção criada por Heidegger, a derrelição. A liberdade seria então, de alguma maneira, a fatalidade da existência humana.

Esse caráter fatal da liberdade atravessa, segundo Sartre, toda a existência humana, diz o autor. O homem não poderia escapar à liberdade de escolha; não escolher é ainda escolher, e a renúncia à ação é ainda uma ação livremente escolhida. Desde os fatos da vida cotidiana até às questões últimas da metafísica, Sartre sublinha sempre esse papel essencial da liberdade.

Dessa forma, Lukács (1967) afirma que a noção sartreana da liberdade é muito vasta, sendo, inclusive, o que explica seu caráter um pouco flutuante, que torna toda definição exata impossível. Essa impossibilidade é ainda acentuada pelo fato de que Sartre rejeita por princípio, todo critério objetivo que possa servir para a definição de liberdade. A essência da liberdade, que é a escolha, reside para Sartre no fato de que o homem escolhe-se a si mesmo como ainda não existente e incognoscível por princípio. Essa atitude está exposta a um perigo permanente que é o de se tornar outro daquilo que se é.

Ora, aqui não existe mais em Sartre nenhuma marca moral. A covardia, por exemplo, resulta de uma escolha livre tanto quanto a coragem, nos termos de Sartre. O filósofo rejeita também toda correlação entre a escolha livre e o passado do ser humano, isto é, o princípio da continuidade do ser humano.

É verdade que Sartre parece ter recuado, pelas conseqüências possíveis de sua atitude. Em O Existencialismo é um Humanismo, o filósofo declara, com efeito, que “nada pode ser bom para nós, sem ser para todos, e mais adiante continua: sou obrigado a querer, ao mesmo tempo que minha liberdade, a liberdade dos outros; não posso tomar minha liberdade por fim, se não tomar igualmente a dos outros por fim”. Isto nada mais é para Sartre do que um compromisso eclético com os princípios da moral kantiana que precedentemente rejeitou (LUKÁCS, 1967).

Para evitar o niilismo, vizinho da loucura, Sartre foi obrigado a violar a lógica, diz Lukács (1967). Assim foi possível aportar num mundo que existe efetivamente, e que não poderia dispensar. O instrumento desse “passe de mágica” foi a lógica formal, a generalização rígida de uma idéia. O procedimento é comum a todas as escolas do irracionalismo moderno; é ele que permite a Sartre construir sua concepção fatalista da liberdade.

Heidegger reconhecia que não se pode falar de um ato livre, a não ser que reconheçamos que existe igualmente atos que não são livres. A nivelação sartreana de todas as manifestações da existência humana assemelha-se à concepção determinista, salvo que, para o determinismo, essas manifestações, se inscrevem em sistemas racionalmente construídos, enquanto, em Sartre, são, a priori, privados de todo sentido. Assim, a hipótese sartreana da noção de liberdade esvazia todo sentido da própria liberdade.

Lukács (1967) sustenta que, o elemento da verdade em Sartre, consiste na acentuação da importância da decisão individual, que o determinismo burguês e o marxismo vulgar subestimam habitualmente. Toda atividade social compõe-se de atos individuais, e a influência que as condições materiais exercem, por mais importante que ela seja, não se realiza, como disse Engels, senão em “última instância”. Isso significa que no momento de tomar uma decisão, o indivíduo encontra sempre diante dele certa margem de liberdade, no interior da qual a necessidade histórica determina, cedo ou tarde, a decisão a tomar.

A necessidade histórica faz-se sempre valer através de uma multidão de acasos interiores e exteriores. Reconhecer a importância de tais acasos, analisar sua função, constituiria uma tarefa científica muito séria, mas Sartre não se dedicou a essa tarefa. É evidente, diz Lukács (1967), porque nega a necessidade da evolução, assim como a própria evolução, tanto no plano social como no indivíduo, sendo dado que a escolha é independente, para ele, de todo o passado. Nega as relações reais que unem o indivíduo à sociedade; faz um mundo à parte das relações objetivas que envolvem o homem, e as relações humanas que enriquecem a existência são para ele apenas relações entre indivíduos isolados. A noção de liberdade fatalista e mecânica, construída nessa base, só pode aniquilar-se a si mesma.

O autor sustenta, no entanto, que Sartre se dá conta daquilo que sua noção de liberdade pode ter de problemática. Recusa, entretanto, abandonar seu método e escolhe, antes, uma solução que consiste em salvaguardar o equilíbrio do seu sistema, opondo à sua concepção sobrecarregada e absurda da liberdade, outra concepção da mesma natureza: a de responsabilidade. A noção de responsabilidade é, contudo, tão absoluta e ilimitada em Sartre quanto a de liberdade (LUKÁCS, 1967).

Lukács (1967) com isto acredita ser útil insistir na falência filosófica da noção de liberdade em Sartre, porque vê aí o segredo do sucesso do existencialismo em certos meios. O desprezo das considerações sociais e da vida pública, a interpretação abstrata, irracional e absurda das noções de liberdade e de responsabilidade na defesa da integridade ontológica do indivíduo, eis em que se constitui toda a atração do mito do Nada: um extremismo completamente verbal dos princípios, com o niilismo absoluto da moral.

A concepção sartreana da liberdade fornece, além disso, uma excelente base ideológica aos intelectuais sempre presos a um individualismo extremo, para motivar sua recusa em participar na obra de construção e de consolidação da democracia. Todos os que aceitam a liberdade absoluta, todos os que defendem a liberdade metafísica, mesmo quando é praticamente a dos inimigos da liberdade, saudarão com alegria o existencialismo, sustenta Lukács (1967).

Numa passagem de Sartre, encontramos uma fórmula mais radical e, ao mesmo tempo, ainda menos nítida sobre a liberdade: “o que escolhemos é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos” (LUKÁCS,1967, p.115).

Para quem conhece a filosofia de Kant, é evidente que a posição de Sartre é próxima deste filósofo; o postulado que formula parece decorrer diretamente do imperativo categórico, segundo o qual tudo, no mundo, pode ser tratado como meio, “só o homem é um fim em si mesmo”. Veremos como essa concepção está destinada a desempenhar um papel decisivo na gênese da moral existencialista.

Com isto, Lukács (1967) afirma que Sartre opera um alargamento de sua concepção original da liberdade, e indaga se essa moral inspirada em Kant faz parte orgânica do existencialismo. Para o autor, tal compreensão é fundamental já que Sartre e seus discípulos afirmam que sua filosofia, de que já identificamos a base heideggeriana com seu caráter niilista e reacionário, representa uma ideologia progressista e democrática. O autor com isto indica uma contradição entre os fundamentos filosóficos e os postulados éticos dessa doutrina; segue-se daí a obrigação de abandonar, para todos aqueles que levam a sério a filosofia e a moral, tanto os fundamentos heideggerianos, como o edifício progressista e liberal construído sobre estes.

A inconseqüência de Sartre e o ecletismo de suas novas posições manifestam-se, antes de tudo, pelo fato de que seu novo conceito de liberdade

está muito longe de coincidir com aquele formulado na sua obra principal.

Nesta, o autor seguiu os fundamentos elaborados por Kierkegaard e por Heidegger. Assim, a liberdade significa o ato subjetivo de decidir e de agir, sem levar em conta o conteúdo ou a direção do ato. Quer o torturado fale ou guarde silêncio, quer o mobilizado tome das armas ou deserte, trata-se, apenas e sempre, da liberdade tal como surgiu do ato individual (LUKÁCS, 1967).

O postulado moral, formulado pela brochura de popularização de Sartre, qual seja, O Existencialismo é um Humanismo, não perde, entretanto, seu sentido. De acordo com Lukács (1967), tal obra está, ao contrário, carregada de um sentido completamente claro, ainda que incompatível com as considerações fundamentais de sua obra principal, O Ser e o Nada.

Incompatível, não somente por razões lógicas, mas porque a liberdade que é tratada nessa brochura não é somente a do ato individual, mas, ao contrário, é a liberdade no sentido social da palavra. Quando postulo minha própria liberdade assim compreendida, segundo a tradição da moral antiga, minha vontade torna-se desprovida de sentido, se não postular, ao mesmo tempo, a liberdade dos outros. Neste caso, com efeito, liberdade significa ser cidadão livre em um Estado livre e a liberdade dos meus concidadãos constitui uma condição sine qua nonda minha. Este raciocínio é perfeitamente claro e segue-se também claramente que essa liberdade não tem mais nada a ver – não só logicamente, mas também quanto ao seu conteúdo – com o conceito de liberdade anterior, onde surge exclusivamente do ato subjetivo. Isto leva Lukács (1967) a concluir que, na sua obra de vulgarização, Sartre opera com dois conceitos de liberdade, que nada tem a ver juntos e que são mesmo totalmente incompatíveis. Existencialismo é um Humanismo traz, com efeito, um exemplo bem descrito, que mostra claramente que seu novo conceito de liberdade é apenas, para o autor, uma concessão às exigências do momento, mas que, no fundo permanece sempre ligado à moral que lhe foi legada por Kierkeggard e por Heidegger. Lukács (1967) cita o exemplo dado por Sartre, do caso de um jovem colocado diante do seguinte dilema: abandonar sua mãe ou abandonar a luta pela libertação. Ora, se Sartre levasse a sério seu novo conceito de liberdade, esforçar-se-ia por deduzir dessa definição geral (ligação de minha liberdade à de todos) uma linha de conduta moral, suscetível de inspirar uma decisão a esse jovem. Mas não pensa assim. Demonstra, ao

contrário, que a concepção kantiana, segundo a qual nenhum homem deve ser tratado como meio, concepção tão próxima da sua própria, coloca esse jovem diante de um dilema insolúvel. Deve considerar tanto sua mãe como seus companheiros de armas como meio. Partindo da concepção moral de O Ser e O Nada, Sartre, continua o autor, recusa-se a dar um conselho. Diz a esse jovem: “você é livre, escolha... Nenhuma moral geral pode indicar-lhe o que fazer...”. Mas, Lukács (1967) pergunta: a nova moral sartreana, que liga minha liberdade à de todos, não é também uma “moral geral”, isto é, segundo Sartre, uma moral que não poderia e não deveria – segundo a antiga concepção sartreana da liberdade – inspirar nenhuma decisão ao sujeito que age? Mas se assim for, qual é o valor dessa moral quando se tratar de construir um sistema geral? Se o ato de decidir é o único critério decisivo, se a concordância interior da decisão, com a personalidade que se constitui de novo por esse ato, permanece a única realização possível de minha liberdade, então o existencialismo não oferece nenhuma possibilidade para uma generalização moral, até mesmo histórico-social. Neste caso, a moral, tal qual foi formulada nessa obra de popularização, nada mais é do que uma construção eclética, cheia de contradições, acrescentada de forma completamente exterior ao existencialismo propriamente dito, conclui o autor.

Garaudy (1965) destaca a afirmação de Sartre em O Existencialismo é um Humanismo,a respeito do que há de fundamental na liberdade: “O homem é tal como ele próprio se quer e como projetou ser no futuro. Não é outra coisa senão o que faz de si próprio. Tal é o primeiro dos princípios do existencialismo”. Dessa forma, a ação do homem não pode explicar-se, remontando de causa em causa em seu passado; a liberdade é, antes de tudo, escolha autônoma e negação.

Segundo Sartre, a negação e a escolha são inseparáveis; a liberdade é, antes de mais nada, o poder de se desprender de sua existência entre as coisas, o poder incondicionado de dizer não. A vida do homem, diz Sartre, não é nem o simples prolongamento de seu passado nem o produto de seu meio; a liberdade é o poder de dizer não ao ser constituído por nossa história pessoal e pelo mundo que nos envolve, sendo o contrário da suficiência e da satisfação.

Esta contestação, esta ambigüidade, este dilaceramento, esta contradição são,

de acordo com Sartre, ao mesmo tempo nossa existência e nossa liberdade (GARAUDY, 1965).

Mas, para Sartre, a liberdade só tem sentido na medida em que torna possível um verdadeiro compromisso, e este é o terceiro momento da liberdade sartreana. O primeiro momento é: o homem é o que ele próprio faz; o segundo:

seu ato é negação e escolha, autonomia; e o terceiro: o ato, para não ser apenas um fato da natureza, um movimento, deve ser antes de tudo uma intenção. É neste momento que começa o estudo do projeto para Sartre, no qual se exprime ao mesmo tempo o poder de negação e a vontade de engajamento (GARAUDY, 1965).

Sartre tem razão ao ressaltar que uma decisão nunca nasce unicamente das condições de vida de um homem ou de um grupo de homens. Contra esta concepção da espontaneidade, Lênin já polemizara em Que Fazer? afirmando que nada pode dispensar o homem de uma iniciativa autêntica, da elaboração de um projeto que esclarecerá a situação presente e, segundo a expressão de Marx, tornará a miséria mais insuportável pela consciência da miséria. As condições da vida presente se aclaram pela consciência da possibilidade de outra vida. Nesse sentido, as utopias socialistas da primeira metade do século XIX desempenharam um grande papel no despertar da consciência de classe do proletariado e formaram os primeiros quadros revolucionários. Sartre analisa isso quando exalta o papel do projeto que comanda a negação e a escolha (GARAUDY, 1965).

A dificuldade começa quando se trata de determinar a origem desse projeto. Trata-se de um projeto que tem a liberdade por fundamento e por objetivo? ele se pergunta. A escolha seria, então vazia de todo conteúdo; mas Sartre esclarece que a negação não é abstrata, que é negação de um conjunto de condições concretas: o para-si só é livre, segundo ele, em situação, isto é, na relação de sua liberdade com sua condição (GARAUDY, 1965).

Dessa forma, Garaudy (1965) afirma que se as premissas de sua ontologia dualista do Ser e do Nada não o impedissem, Sartre poderia fazer duas constatações capitais:

 Não existe apenas a negação decorrente de minha rejeição pessoal, mas já uma anterior contradição interna no mundo.

 Se minha própria negação, por livre que seja, é assim conduzida por uma contradição objetiva, minha escolha não é inteiramente obra minha, acha-se pré-delineada pela situação. Cabe-me – e Sartre tem razão ao sublinhá-lo, diz o autor – assumir essa escolha. Sou, pela parte que me toca, responsável pela putrefação da história de que falava Lênin, caso não tome esta iniciativa, mas a situação estava “grávida” desse futuro, e minha ação só é eficaz na medida em que tomei consciência dessas contradições objetivas e em que inventei, nessas condições muito estritas, o meio de superá-las.

A história tem um sentido, independentemente de minha escolha. Sartre, por seu turno, diz que cada um de meus atos é inteiramente livre, mas que isto não significa que possa ser qualquer um nem mesmo que seja imprevisível.

Mas isso supõe uma correção profunda de sua ontologia, que não pode, sem consentir numa miscelânea eclética, dar conta das leis da história (GARAUDY, 1965).

Já numa outra passagem do texto em questão, Sartre afirma que não apreendemos nunca senão como escolha a fazer-se; mas a liberdade é, segundo ele, simplesmente o fato de que essa escolha é sempre incondicionada; semelhante escolha, feita sem ponto de apoio, e que dita a si mesma seus motivos, pode parecer absurda, e, conclui Sartre, de fato o é.

Com efeito, Garaudy (1965) sustenta que esta concepção da liberdade é metafísica, no pleno sentido da palavra, ou seja, exterior à história, e Sartre o reconhece sem protesto, afirmando:

O êxito não importa absolutamente à liberdade. A discussão que opõe o senso comum aos filósofos procede de um mal-entendido: o conceito empírico e popular de liberdade, produto de circunstâncias históricas, políticas e morais, equivale à faculdade de obter os fins escolhidos. O conceito técnico e filosófico de liberdade, o único que consideramos aqui, significa apenas isto: autonomia da escolha (Sartre apud Garaudy, 1965, p.92).

Sendo assim, Sartre aceita que o filósofo se separe do senso comum e, desta maneira, o impeça de entrosar-se na história real dos homens; corta o vínculo entre o ato individual e suas condições, assim como entre o ato individual e suas conseqüências. Não existe mais ligação entre a moral e a história; eis-nos limitados a intenções inofensivas para a ordem estabelecida.

Mas desde que a filosofia não mais se contente em ser especulação, para tornar-se um momento da transformação do mundo, será preciso aderir ao conceito popular de liberdade, o do senso comum. Isto seria impossibilitado pela ontologia sartreana, que não permite à minha liberdade, à minha negação, articular-se com um mundo estranho e refratário a toda contradição interna.

Conservar esta ontologia é condenar-se a um perpétuo mal-entendido, qual seja, empregar a palavra revolução para designar um acontecimento metafísico, ou mais exatamente, místico, aparentado com a salvação do homem, e não para designar um processo histórico concreto de transformação das relações de classe e do regime de propriedade (GARAUDY, 1967).

Diante deste quadro, Garaudy (1965) sustenta que nos resta manter a tensão existente entre compreender as exigências da situação, e guardar intacta nossa liberdade. Sartre esforça-se por manter esse caminho difícil, por segurar a todo custo as duas extremidades da corrente, arriscando-se a viver esquartejado. O existencialismo, por seu turno, vive desta tensão e morre também em virtude dela. Entre os existencialistas, uns acabaram por deixar-se atrair pela transcendência, em direção ao misticismo; outros, pela história, em direção ao marxismo. Para evitar esse duplo desvio, seria preciso, diz o autor, que o existencialismo rompesse sua solidão e reencontrasse os outros: então descobriria uma forma de transcendência que não fosse mistificada e uma concepção da história que não mutilasse nenhuma das dimensões do homem.

No texto em questão, O Existencialismo é um Humanismo, Sartre parecia ter rompido com a solidão do existencialismo ao afirmar que, ao querermos a liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa, e que desde que haja engajamento, sou obrigado a querer, ao mesmo tempo a minha liberdade e a liberdade dos outros; não posso tomar minha liberdade por fim, se não tomo igualmente a dos outros por fim. Sartre extraiu da experiência vivida da Resistência e da Libertação esta verdade incontestável, contudo, continua o autor, esse encontro com a liberdade dos Outros não pode explicar-se a partir das teexplicar-ses fundamentais preexplicar-sentes em O Ser e o Nada (GARAUDY, 1965).

Em primeiro lugar, não se trata mais da mesma liberdade; quando se fala aqui da liberdade dos Outros, da liberdade no sentido popular da palavra,

como dizia Sartre em O Ser e o Nada, trata-se do poder de cumprir tal ou qual ato social e de atingir tal ou qual objetivo histórico, e não mais de autonomia da escolha, visto que a liberdade neste último sentido não depende das circunstâncias e que, por conseguinte, não posso ajudar os outros em nada para adquiri-la ou perdê-la. Garaudy (1965) cita o próprio Sartre no texto referido, para demonstrar sua concepção de liberdade:

O respeito à liberdade de outrem é uma palavra vã: ainda que possamos projetar respeitar esta liberdade, cada atitude que tomássemos em face do outro seria uma violação desta liberdade que pretendíamos respeitar... Realizar a tolerância em torno de outrem é fazer com que outrem seja lançado à força num mundo tolerante.É tirar-lhe por princípio suas livres possibilidades de resistência corajosa, de perseverança, de afirmação de si que teria tido a ocasião de desenvolver num mundo de intolerância (Sartre apud Garaudy, 1965, p. 95).

Sartre faz com esta afirmação, da realidade histórica da sociedade individualista na qual vivemos, uma realidade ontológica, sendo inconcebível a especificidade do social e do histórico. As relações sociais, por seu turno, reduzem-se a uma multiplicação de relações pessoais, e não têm um caráter histórico, mas metafísico (GARAUDY, 1965).