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BEAUVOIR: VIDA E OBRA

2.5 O CONCEITO DE LIBERDADE E A RELAÇÃO COM O COMUNISMO

A opinião de que somos todos absolutamente livres encontra-se implícita e explícita nos primeiros trabalhos ficcionais de Beauvoir. É uma liberdade abstrata e potencial para aqueles que não a utilizam, mas mesmo assim, segundo Beauvoir, ela existe. Por outro lado, da mesma forma que cada um de nós, somos absolutamente livres, devemos respeitar a absoluta liberdade da

outra pessoa, porque nossas liberdades se sustentam entre si, continua Beauvoir. Sendo assim, uma pessoa que seja socialmente oprimida, ou que, em termos pessoais, seja masoquista, não pode refletir minha liberdade. É por não poder ser livre sozinho, enquanto os outros fogem da própria liberdade, ou são impedidos de alcançá-la, que nossa escolha pela liberdade nos envolve na luta pela libertação de todos os outros (ASCHER, 1991, p.106).

Beauvoir tentou desenvolver em Por uma moral da ambigüidade (que aparecera inicialmente de modo fragmentado em diversos números de Les temps modernes, sendo publicado em 1947) um argumento quanto à possibilidade de uma ética existencialista. Este ensaio reflete uma mudança de consciência social, particularmente sobre as questões da opressão e da tranformação social, e é neste trabalho que, pela primeira vez, Beauvoir descreve um ato de liberdade ou de transcendência que está condenado a recair inutilmente sobre si mesmo, pois está desvinculado de seus objetivos, o que significa para ela a opressão. Pela primeira vez, Beauvoir passa a não acreditar mais ser possível, para cada indivíduo, simplesmente escolher a liberdade por um ato de “conversão radical” (ASCHER, 1991).

Isso porque outros indivíduos com mais poder podem trabalhar ativamente para impedir essa liberdade, e quanto menos as circunstâncias econômicas e sociais permitirem ao indivíduo agir sobre o mundo, mais esse mundo irá lhe parecer como dado. Este seria o caso das mulheres, herdeiras de uma longa tradição de submissão, e daqueles que Beauvoir denomina de

“gente humilde”. Dito de outra forma, algo ocorre com as pessoas como resultado da opressão, algo que, de fato, bloqueia-lhes a capacidade de enxergar de que forma poderiam mudar a si mesmos e ao mundo, e, em alguns casos, como por exemplo, o dos escravos, o oprimido pode não ter consciência de sua própria servidão, sendo necessário trazer-lhe de fora a semente da libertação. Diante destas afirmações, a idéia de liberdade pessoal, tão essencial e onipresente nos primeiros trabalhos de Beauvoir, mostra-se em Por uma Moral da Ambigüidade, harmonizada com uma segunda categoria, de cunho social, a libertação, que exige a ação política e que, para milhões de pessoas, é um pré-requisito para a escolha da liberdade (ASCHER, 1991).

A interdependência da liberdade dos indivíduos entre si parece implicar uma visão pacifista, uma vez que a negação mais implacável e definitiva da liberdade alheia é o assassinato. No entanto, Beauvoir certamente não é uma pacifista, nem qualquer de suas obras “da fase moral” procura debater contra as guerras ou contra o sacrifício de vidas, per se. A razão da atitude ambígua de Beauvoir quanto à violência advém da distinção que faz entre liberdade e libertação, ou seja, se fosse apenas um problema de escolha individual da liberdade, a violência estaria fora de cogitação, mas há pessoas que têm de se libertar daqueles que, devido à própria má fé, se acham no direito de sugar a energia, os recursos e o trabalho dos outros. Vale destacar a própria Beauvoir em Por uma Moral da ambigüidade: “Uma liberdade que se preocupa em negar a liberdade é, em si mesma, algo de tão ultrajante, que o ultraje da violência que se pratica contra ela fica quase que neutralizado” (Beauvoir apud Ascher, 1991, p.108).

Sendo assim, Beauvoir deixa claro, por exemplo, que não considera da mesma forma, o linchamento de um negro nos Estados Unidos, e o assassinato de um militar francês por um argelino, sendo, em alguns casos, a violência considerada por ela, como uma amarga ironia da libertação.

Em 1950, Merleau-Ponty, um dos participantes do Les Temps Modernes, escreveu um artigo que condenava irrestritamente os campos de trabalho soviéticos e colocava em questão a experiência do regime, ao mesmo tempo em que insistia na necessidade de apoiar a liberdade de alguma outra forma que não fosse opondo-a aos comunistas. De acordo com a descrição que Beauvoir faz deste período, o desdobramento da Guerra Fria foi complicado e doloroso para ela e para Sartre, porque a idéia de liberdade individual por eles desenvolvida durante os anos de 1930 e 1940 pareceu-lhes necessitar de uma séria revisão. Beauvoir afirmou que após a libertação da França, em 1944, Sartre passou a considerar cada vez mais impraticável a posição de neutralidade entre os dois blocos. Esta, assim como outras experiências, o deixaram pessimista quanto à possibilidade de uma posição neutra, o que o levou a convencer-se de que o único caminho da esquerda era ainda encontrar o retorno à unidade de ação com o Partido Comunista (ASCHER, 1991).

Diante deste quadro, Sartre deu início à própria conversão política escrevendo Os Comunistas e a Paz, o livro mais pró-soviético de sua obra, dando por terminado o período de pós-guerra, argumentando que os intelectuais deveriam abrir mão do idealismo e parar de sonhar com um proletariado em conformidade com seus desejos, e com um comunismo livre do stalinismo. Em termos filosóficos, Sartre começava a buscar sintetizar a visão existencialista da liberdade individual com a análise marxista da luta de classes. Ou seja, da mesma forma que Beauvoir afastou-se do idealismo em Por uma Moral da Ambigüidade, Sartre não acreditava mais que, sob o regime capitalista, a liberdade pudesse ser um ato de conversão radical; ao invés disto, a revolução teria primeiramente de livrar a classe trabalhadora da opressão. Nesta revolução, acreditava Sartre, algumas pessoas seriam tratadas como instrumentos, e a liberdade seria também negada nesse processo de dar liberdade aos outros. Mas, como em sua opinião, o futuro da democracia estava nas mãos da classe operária, e o Partido Comunista era o partido da classe operária, a política do partido tinha de ser respeitada. Tal postura, contudo, não significou a filiação de Sartre ao Partido Comunista, o que acabou por levá-lo a indispor-se com o mesmo (ASCHER, 1991).

Em 1951, Beauvoir iniciou a escrita de Os Mandarins, em que tentou de modo ficcional evocar essa época. A história começa na época da libertação de Paris, e acompanha as novas esperanças de liberdade individual, de atuação política, e as subseqüentes complicações de um grupo de intelectuais parisienses de esquerda, à medida que as notícias sobre o regime stalinista e a ameaça da Guerra Fria passam a pressionar suas vidas. Os Mandarins é o mais intenso, mais complexo, e o mais belamente trabalhado dos romances de Beauvoir. Neste livro, está presente uma Beauvoir que parece concluir pela necessidade de aceitação da União Soviética. Não aceitá-la significava aceitar o imperialismo americano, embora ela e aqueles que a cercavam compreendessem que tinham de construir uma esquerda independente (ASCHER, 1991, p.115).