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BEAUVOIR: VIDA E OBRA

2.3 A DESCOBERTA DA HISTÓRIA E DA POLÍTICA

a qualquer esposa cujo marido tem numerosas aventuras. Ela teria, então, discordado, posto que tinha dentro do pacto com Sartre a mesma liberdade que ele, e que a usou (FRANCIS e GONTIER, 1986).

situação. Nesta época, ambos eram anarquistas, não simpatizando com a política do Partido Socialista (FRANCIS e GONTIER, 1986).

Em 1928, Beauvoir procurou a L’Europe Nouvelle, revista de esquerda que defendia a liberdade, o pacifismo, a igualdade dos povos e dos sexos, e foi recebida por Louise Weiss, editora da revista, que acabara de organizar uma Associação para a Igualdade dos Direitos Políticos dos Franceses e das Francesas, com o intuito de subsidiar as lutas da liga das sufragistas junto ao parlamento. Weiss questionou Beauvoir sobre quais eram suas idéias sobre política, direitos das mulheres e qual proposta estava trazendo, e a resposta de Beauvoir foi vaga, já que a política não a interessava, sendo o engajamento tão inútil como a religião. Naquela época, não lhe parecia essencial que as jovens mães que recebiam salários obtivessem o direito de trabalhar uma hora a menos para poder amamentar os seus filhos, ou que, na função pública, tivessem direito a dois meses de licença de gestante com vencimentos integrais. Beauvoir pensava que uma mulher que quer vencer, vence, já que ela e suas amigas tinham adquirido independência econômica e viviam como bem queriam. Louise Weiss era a principal liderança feminista na França daquela época e sua postura militante radical não agradou Beauvoir, que acabou não sendo aceita para trabalhar na revista (FRANCIS E GONTIER, 1986).

Na mesma direção, Appignanesi (1988) afirma que àquele tempo, tanto Sartre quanto Beauvoir se opunham a qualquer intrusão da política na literatura, o que seria uma ironia em vista do que fariam mais tarde. Qualquer forma de engajamento político ou social lhes parecia tão fútil quanto a religião.

Segundo a autora, ambos sabiam o que combatiam – as instituições sociais vigentes, a hipocrisia burguesa, a mentira da religião –, mas não tinham um programa claro e definido, nem se identificavam com qualquer dos grupos de esquerda com os quais simpatizavam em muitos pontos. Viam a literatura como terreno para a liberdade imaginativa e, certamente, não para a política sectária. Logo, seriam precisos outros dez anos e a experiência da II Guerra Mundial para que o radicalismo pessoal e a fé na literatura se convertessem em engajamento social e na idéia de uma literatura comprometida.

Nos anos que precederam a II Guerra Mundial, Beauvoir começou a reconhecer que sua negação da política era, também, uma atitude política.

Partilhava essa forma de agir com pessoas das quais desejava, de outra maneira, dissociar-se. Tais pessoas, assim como ela na busca por sua felicidade pessoal, fechavam os olhos aos sinais da guerra iminente (APPIGNANESI, 1988, p.68). Esta mudança começou quando começaram a chegar as notícias da existência de campos de concentração onde milhões de antifascistas e judeus eram internados. Beauvoir percebeu que a passividade política deixara de ser uma posição possível e, em 1939, pôs um ponto final no que ela mesma chamou de sua maneira de viver individualista e anti-humanista, começando a aprender então o valor da solidariedade. Em retrospecto, os anos anteriores da sua vida parecem marcados por um distanciamento total da realidade, por causa de um idealismo burguês e de abstrações universalistas que acabaram por cegá-la (APPIGNANESI, 1988).

Beauvoir descreve o impacto destas mudanças:

Então, de súbito, a História rebentou por cima de mim, e eu me vi dissolvida e fragmentada. Quando acordei, estava espalhada por todos os quatro cantos do mundo, e ligada por todos os nervos que tinha no corpo a cada um dos outros indivíduos. Todas as minhas idéias e valores estavam de cabeça para baixo, e até a busca da felicidade perdera a importância (BEAUVOIR apud APPIGNANESI, 1988, p.69)

Diante deste quadro, a autora sustenta que a Beauvoir que nasceu desta fragmentação é a mulher que, em geral, associamos ao seu nome, ou seja, uma intelectual ativa, que abraça sinceramente a responsabilidade e as causas justas.

Beauvoir, tendo em vista as aulas que ministrava, recebia críticas severas dos pais das alunas, bem como da direção dos Liceus, tanto pelo conteúdo das aulas, que incitava as alunas a exercer a capacidade crítica e a viverem livremente, como por sua forma de viver, totalmente contrária à moral burguesa, já que residia em hotéis, freqüentava cafés, reunia-se com suas alunas fora do horário das aulas, fumava, bebia e não era casada.Numa

ocasião em que Beauvoir lecionava no Liceu em Marselha, a Comissão Regional para a Proteção das Crianças distribuíra uma diretriz aos professores, determinando que se ensinasse às meninas que a maternidade era o seu destino correto e apropriado. Ela, como não poderia deixar de ser, rebelou-se e foi posta na “lista negra” da escola, o que a fez preparar uma defesa escrita apaixonada, acusando o Comitê Regional e os pais das alunas de terem simpatias nazistas (APPIGNANESI, 1988).

No que diz respeito à forma com que Sartre e Beauvoir compreendiam os indivíduos, ambos procuravam um método de explicação do comportamento humano, já que rejeitavam a classificação psicológica francesa, o behaviorismo, e davam pouco crédito à psicanálise freudiana, que começava a ganhar visibilidade. Das discussões que travaram entre os anos de 1932 e 1936, nasceu a noção da má fé, que analisava todos os fenômenos que os psicanalistas atribuem ao inconsciente. A procura de casos de má fé tornou-se um exercício permanente e Beauvoir descobriu o que passou a chamar de

“aparência”, que consistia na atitude das pessoas de demonstrar sentimentos ou convicções que na realidade não tinham. Para ampliar o campo de suas pesquisas, passaram a analisar as relações entre o indivíduo e a coletividade e constatavam que o sistema social gerava os próprios assassinos. Diante de tal constatação, Beauvoir pensava que para transformar essa sociedade alienante, era preciso derrubar a classe dirigente e, neste sentido, Sartre se perguntava se não deveria solidarizar-se com os marxistas que trabalhavam pela Revolução. Beauvoir, por seu turno replicou, afirmando que essa luta não era a deles, posto que eles não eram proletários, continuando a acreditar que pelos seus escritos eles dariam uma contribuição à transformação da sociedade.

Continuou o argumento, sustentando que deviam ficar livres, pois só a liberdade é uma fonte inesgotável de invenções, e aceitar as diretrizes do partido, seria engajar-se num sistema que os privaria de sua independência (FRANCIS e GONTIER, 1986).

Beauvoir dedicou-se à leitura de Hegel, cuja riqueza a deslumbrava.

Contudo, as reflexões de Hegel não resistiram ao que a vida cotidiana no período da guerra impunha a Beauvoir, que se viu angustiada, aproximando-se dos textos de Kierkegaard. Neste momento, Beauvoir cumpria um trajeto que a

levaria a constatar que estava ligada aos seus contemporâneos e não poderia mais considerar a sua própria vida com independência, eliminando-se em proveito do universal. Para Beauvoir, Heidegger convenceu-a de que cada ser cumpre e exprime a realidade humana, e é neste contexto que conclui estar pronta para engajar-se nas lutas sociais e políticas (FRANCIS e GONTIER, 1986).

Um dos principais problemas filosóficos que preocupou Beauvoir era o de como entrar em acordo com a consciência racional de outras pessoas, com uma personalidade alheia à nossa. Segundo Beauvoir, se o outro tem uma percepção completa, igual à nossa, então sua maneira de ver o mundo pode aniquilar a nossa, bem como a nossa própria existência. Mais tarde, Sartre desenvolverá esta idéia afirmando que o inferno são os outros (APPIGNANESI, 1988).

Escolher entre liberdade e coação é um dos dilemas básicos sobre os quais a filosofia do existencialismo de Sartre e Beauvoir repousa. Coação seria aquilo que as convenções nos impõem; liberdade, aquilo que nós criamos através da ação. Em termos de um relacionamento voluntário de amor, isso se traduz na postura de nunca limitar a liberdade da outra pessoa no casal, de nunca fazer reivindicações limitativas (APPIGNANESI, 1988).

Se de certo modo os romances escritos por Beauvoir dão forma humana concreta a uma hipótese filosófica, eles fornecem, também, testemunho da espécie de dificuldades, dos ciúmes que Beauvoir experimentou em sua relação com Sartre. Contudo, nem nos romances, nem em suas autobiografias, ela pôs em questão sua relação, optando por transferir os sentimentos de rancor e revide para a outra mulher. O tema do ciúme, em que a ira contra o macho é transferida para outra mulher, é predominante na obra de Beauvoir, que sempre nos faz solidarizar com os homens, em detrimento das mulheres traídas. Esta compreensão está presente n’O Segundo Sexo, em que Beauvoir afirma que o ciúme é a condição inevitável da mulher dependente apanhada na armadilha do amor, e dada essa compreensão do arquétipo da mulher apaixonada, Não é de admirar que Beauvoir tenha preferido racionalizar e

esconder seus ciúmes de Sartre. Todavia, o tema do amor persiste como o principal interesse da sua literatura de ficção (APPIGNANESI, 1988).

2.4 REFLEXÕES SOBRE SER MULHER E VINCULAÇÃO COM O