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MARXISMO

3.10 A TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO ENTRE EXISTENCIALISMO E MARXISMO

Segundo Lukács (1967), quando a Resistência tornou-se Libertação, quando, em razão do papel por ele representado, o existencialismo manifestou a ambição de conquistar os intelectuais de esquerda e, em particular, os jovens, uma transformação se fez necessária. O conteúdo da noção de liberdade, o problema da orientação que devia tomar a Libertação, as questões de moral e de filosofia da história adquiriram então uma importância preponderante, e o existencialismo desenvolveu a batalha ideológica contra o marxismo, para manter os fiéis nas suas fileiras e para ampliar suas conquistas.

De acordo com o autor, a formidável agravação da luta de classes durante o período consecutivo à Primeira Guerra Mundial significou uma expansão ininterrupta da influência do marxismo. E naquele período (lembrando que o autor fala nos idos de 1940), toda ideologia que aspirasse a uma validez universal, a uma ampla influência social e que não se contentasse em ser apenas uma doutrina universitária, dever-se-ia medir abertamente com o marxismo.

Mas a situação do existencialismo francês é completamente diferente.

Este tem a ambição de tornar-se a filosofia dos intelectuais de esquerda, socialistas, amigos do progresso e da democracia. Não poderia, portanto, à maneira de Nietzsche, “liquidar” o socialismo, proferindo algumas invectivas a seu respeito, como não poderia, à maneira de Heidegger, ignorá-lo oficialmente, abrigando-se atrás do regime dos campos de concentração.

Segundo Lukács (1967), o existencialismo deveria, ao contrário, medir-se com ele, em combate aberto, provar sua superioridade nos terrenos da moral e da filosofia da História; provar que a doutrina do existencialismo é suscetível de fornecer a todas as questões que a História apresenta quanto ao comportamento do homem, respostas melhores, mais claras e mais concretas que o marxismo.

De acordo com Garaudy (1965), Sartre pretendeu ser, antes de tudo, uma testemunha atenta de sua época, exprimindo-lhe o caos, mas também a vontade de dele sair. Ecletismo, contradições internas, reviravoltas e retornos são apenas os aspectos de uma marcha mais profunda, de um movimento que conduz o existencialismo a passar adiante de si mesmo, seja no rumo de uma participação religiosa, seja no rumo de uma participação marxista. Para Sartre, diz o autor, a tarefa filosófica essencial de seu tempo parece ser a de reconciliar Marx e Kierkegaard.

Contudo, de acordo com Aron (s/d), em seus trabalhos iniciais, anteriores à especulação política, Sartre pertence à tradição de Kierkegaard e de Nietzsche, de revolta contra o hegelianismo, e o indivíduo e seu destino constituem o tema central de suas reflexões. Nesta primeira fase, ignora a totalidade e concebe a liberdade como capacidade do homem de autocriação, sem preocupar-se com o objetivo desta criação; cada qual deve, continua o autor, encontrar a resposta à situação, sem deduzi-la dos livros nem recebê-la dos outros. Autenticidade, ou seja, a coragem de assumir a si mesmo, à sua herança e aos seus, e reciprocidade, que quer dizer o reconhecimento do outro, e a preocupação de respeitá-lo e de ajudá-lo a realizar-se, parecem ser as virtudes fundamentais do homo existencialis. Os existencialistas descrevem a existência humana tal como ela é vivida, sem que esta descrição se relacione com uma particularidade histórica (ARON, s/d).

Ainda de acordo com Aron (s/d), ao colocarem o acento sobre a liberdade, a escolha, a invenção, e ao ordenarem aos seus discípulos que se assumam, os existencialistas excluem uma lei moral que dirigiria suas intenções; resolvidos a ignorar as virtudes ou o aperfeiçoamento interior, sugerem a cada um que encontre sua salvação de acordo com sua própria lei.

Lukács (1967) no mesmo sentido, afirma que, uma moral que considera apenas o ato individual do sujeito e para a qual a intenção que preside esse ato constitui o critério decisivo da moral, não pode ser senão uma moral da intenção. Aos olhos dessa moral, a ligação do ato com suas conseqüências só pode ter lugar numa esfera completamente diferente, sob o regime de leis essencialmente distintas. Assistimos assim a uma separação entre o plano da moral e o resto da realidade humana, “exterior”, separação impossível de

remediar por meio de categorias ou do método da moral da intenção, porque estas são produtos dessa separação.

Eis porque os radicais entre os adeptos da moral de intenção – e só estes são conseqüentes – recusam-se absolutamente a considerar as conseqüências do ato.

Nenhuma moral, entretanto, cujo conteúdo e intenção não equivalem a uma recusa total do mundo, a uma renúncia total à penetração da realidade social, poderia abandonar toda tentativa com vistas a restabelecer o laço entre o ato individual e suas conseqüências. Ora, no momento mesmo em que se empreende essa tentativa, percebe-se a necessidade de restabelecer, de um modo ou de outro, uma ponte entre a moral de um lado e a sociedade e a filosofia da história de outro. Pergunta-se somente como estabelecer essa ponte, diz o autor, quando a moral da intenção tinha tomado o cuidado de eliminar do comportamento moral original todo conteúdo social e histórico, a fim de salvaguardar o primado decisivo do ato subjetivo e da intenção individual.

Para Lukács (1967), o diálogo entre existencialistas e marxistas, ou, para falar mais precisamente, entre Sartre e os comunistas ocupou, desde a Libertação, o primeiro plano da cena político-literária da França. Estranho diálogo, no qual um dos interlocutores afirma sua amizade e não recebe, em troca, senão recusas. Os existencialistas multiplicaram os testemunhos de bons sentimentos e Sartre, numa entrevista, chegou a dizer que, entre os comunistas e ele, tratava-se apenas de uma querela de família. Os comunistas, por seu turno, responderam, decretando que o existencialismo, ideologia pequeno-burguesa, tornava-se progressivamente reacionária e até mesmo fascista. Aron (s/d) destaca o trecho de um artigo publicado em jornal comunista alemão, a respeito de Sartre:

A burguesia reacionária protege o Sr. Jean-Paul Sartre. Ela precisa dele em sua luta contra a democracia e o marxismo. A derrota do fascismo esvaziou o conteúdo daquela fortaleza ideológica na qual se abrigavam as 200 famílias. Devia-se encontrar algo novo e, por isso, está-se em vias de tentar difundir esse nevoeiro místico que é o existencialismo sobre a jovem e nova França que sai da rude escola da Resistência (ARON, s/d, p.106).

Segundo Aron (s/d), Sartre está de acordo com Garaudy na avaliação de que o marxismo forma, efetivamente, o único sistema de coordenadas, capaz de permitir situar e definir um pensamento, qualquer que seja o domínio, da

economia política à física, da história à moral; mas feita tal concessão, ele, segundo o autor, retorna a seu problema próprio, qual seja, dar vida ao marxismo, renová-lo, o que espera alcançar não através de uma interpretação original, mas buscando para o marxismo um fundamento filosófico que não seja o materialismo e sim o existencialismo. Sendo assim, o empreendimento sartreano pretende reintegrar o homem no saber marxista.

Aron (s/d) recorda que antes de 1940 Sartre parecia pertencer à posteridade de Kierkegaard ou de Nietzsche e não à de Hegel. Husserl o tinha ajudado a tomar consciência de si mesmo e de seu método e Heidegger lhe fornecera o aparato conceitual com cuja ajuda ele configurou sua visão de mundo. Nem suas obras literárias, nem as filosóficas anteriores a 1945 sugeriam uma reconciliação possível entre as consciências, cada uma objetivada pela outra e, conseqüentemente, votada a sentir a simples existência da outra como uma agressão. A partir da publicação de A Crítica da Razão Dialética, não se trata mais disso; Sartre passa a afirmar que não é verdade que cada consciência procure a morte da outra, nem tampouco sua vida. É o conjunto das circunstâncias materiais que decide.

Aron (s/d), contudo destaca quais foram as argumentações de Sartre para dar ao existencialismo o estatuto de filosofia da revolução, compatibilizando-o com o marxismo. A primeira argumentação, segundo o autor, é a concepção do homem ou do pensamento em situação, que, de acordo com Sartre, corresponde às necessidades da revolução. Isto porque o homem ou o pensamento em situação, quer dizer que, por um único e idêntico movimento, a consciência revela a realidade existente em torno de si e a transcende; o homem está em situação, mas sem que essa signifique um absoluto; ele “decola” do contexto no qual está inserido e chega a conquistar uma visão global do mesmo, precisamente na medida em que pretende transcendê-lo. Esse conhecimento da totalidade existente pelo homem em situação, diz Sartre, de acordo com Aron (s/d), é exatamente aquilo de que necessita o revolucionário, e que o materialismo pretendia oferecer-lhe. Com efeito, continua Sartre, o materialismo pretende dar ao revolucionário um pensamento que, ao mesmo tempo, conheça o mundo e queira transformá-lo;

mas o pensamento em situação, fórmula típica do existencialismo, pode,

segundo ele, fornecer de maneira mais eficaz esta dupla relação de conhecimento e de transcendência.

Um segundo argumento de Sartre, continua Aron (s/d), é o de que o materialismo tem como função ou como utilidade fornecer ao operário a consciência do determinismo, ou seja, o operário, no contato com a natureza, descobre o determinismo, a força dos laços que unem as coisas entre si; em contato com a natureza, escapa ao mundo burguês da polidez e reconhece a dura necessidade das coisas. Este determinismo real, que o operário aprende no trabalho, não é, todavia, total, muito pelo contrário. O determinismo, diz Sartre, corresponderá melhor às necessidades de uma doutrina revolucionária se for limitado: permitirá determinar o efeito de um ato determinado e deixará ao homem a possibilidade de transformar a realidade global; indicar-lhe-á a lei de sua função e as condições de eficácia, mas salvaguardará a consciência da liberdade, do poder de modificar a ordem das coisas existentes. Desta forma, continua Sartre de acordo com Aron (s/d), o existencialismo corretamente interpretado traz, mais e melhor que o materialismo dialético, um determinismo parcial, dominado e superado pela liberdade. Em suma, a doutrina sartreana poderia servir como fundamento a uma vontade revolucionária, já que coloca a liberdade como um dado metafísico, sem esvaziar de significação o projeto de libertação; a liberdade como tal, jamais é inteiramente eliminada, mas corre sempre o perigo de ser violada ou coagida.

Aron (s/d), contudo, sustenta que o existencialista, por mais que se afirme tão revolucionário quanto o comunista, não elimina uma diferença fundamental, qual seja, o seu tema fundamental é a relação do indivíduo solitário com Deus, ou com a ausência de Deus (no caso de Sartre, trata-se do diálogo do homem solitário com a ausência de Deus). Se este diálogo define a essência da condição humana, como apontam os existencialistas, então não pode deixar de se afastar daquilo que, aos olhos do marxista, é mais importante que tudo, ou seja, a revolução.

Diante deste quadro, Aron (s/d) sustenta que o existencialismo não pode jamais chegar até o marxismo, a não ser, evidentemente, deixando de ser existencialista; um descendente de Kierkegaard não pode, ao mesmo tempo, ser descendente de Marx. Para desenvolver tal posicionamento, o autor toma como ponto de partida os elementos que, de seu ponto de vista, são comuns ao existencialismo e ao marxismo. Esses elementos seriam pensamento em

situação, revelação e superação, consciência insatisfeita, historicidade dos valores, todos, que, não passam de resíduos, mais ou menos formalizados, de uma antropologia que deriva de Hegel. Contudo, continua o autor, para chegar a uma antropologia marxista, não basta dizer que o homem está em situação ou mesmo que o portador da história é o homem concreto; deve-se, inicialmente, afirmar que o trabalho é a essência do homem, ou ainda, que a relação do homem com a natureza, relação através da qual o homem aprende simultaneamente a dominar as forças naturais e a criar seu próprio ambiente de vida, constitui a relação decisiva, e a idéia do trabalho como essência do homem não desempenha, estritamente, nenhum papel no existencialismo de Sartre.

Outro ponto apresentado por Aron (s/d) é o de que, para passar do existencialismo ao marxismo, é preciso que a dialética do indivíduo solitário torne-se dialética propriamente histórica; é preciso que a história torne-se a história verdadeira da consciência humana; é preciso, conseqüentemente, que a história tenha um sentido, progressista e criador. O autor toma um romance de Beauvoir27para exemplificar que neste, a história se reduz a uma série de fracassos, destacando que nos textos existencialistas, o acento é colocado muito mais sobre o caráter essencial e inevitável dos fracassos em todas as empresas humanas, do que sobre a idéia de uma dialética criadora e sobre a possibilidade de reconciliação.

O autor volta a afirmar, então, que o que impedirá sempre um existencialista de ser um marxista propriamente dito é o fato de que a revolução não resolverá o seu problema filosófico, ou seja, o do diálogo do indivíduo com a ausência de Deus (no existencialismo ateu). Fora deste diálogo, pode-se chegar, por esta ou aquela razão, inclusive válida, ao partido revolucionário, mas jamais se atingirá o equivalente de uma filosofia marxista.

Dessa forma, diz Aron (s/d), parece compreensível que os marxistas, e os comunistas em particular, recusem o existencialismo. Os marxistas podem perfeitamente aceitar certas análises de Sartre, relativas à preocupação, à angústia, mas darão a elas um lugar inteiramente diverso. Já que a consciência

27 Aron não esclarece de que romance de Beauvoir se trata, contudo, diversas biógrafas da mesma destacam que, o acento nos dramas pessoais e nos fracassos individuais, sempre foi um ponto forte dos textos de Beauvoir.

se cria e se realiza na história, a descrição ou a dialética dos sentimentos fundamentais jamais poderá constituir o essencial da ontologia.

Mesmo supondo que se chegue a integrar no existencialismo a idéia de que as lutas dos homens têm um sentido, ainda assim, diz o autor, seria preciso, para se tornar marxista, que se atingisse uma solução final, que a história finalmente realizasse a filosofia, e cita a frase de Marx que diz: “não se pode superar a filosofia senão realizando-a”. Aron (s/d) afirma com isto que, só se deixará de ser prisioneiro da abstração filosófica quando se criar, na própria realidade social, uma situação conforme a idéia que a filosofia tem da vocação humana. A história deve trazer a solução do problema filosófico mediante a revolução. Contudo, o existencialismo, diz o autor, não tem filosofia a realizar, por isso, esforça-se para reconhecer o sentido válido da história a partir de uma experiência da opressão ou da situação operária na sociedade; solução estranhamente equívoca.

De acordo com Lukács (1967), Simone de Beauvoir e, principalmente, Merleau-Ponty, também não deixam de mostrar certa vontade de compreensão dos problemas da atualidade analisados pelo aparelho conceitual do marxismo. Esta vontade vai talvez a par com a esperança de poder provar, em última instância, a superioridade do existencialismo: parecem pressentir, às vezes, que há necessidade de certas correções. Sartre por seu turno consagra em sua revista Les Temps Moderns, dois importantes estudos ao debate contra o marxismo. O autor (1967) destaca que Sartre reprova ao materialismo, antes de tudo, o fato deste, segundo sua interpretação,

“eliminar a subjetividade” e “privar o homem de liberdade”; acusações que são familiares aos marxistas, porque fazem parte do arsenal de seus adversários.

Entretanto, continua o autor, por mais justificado que seja, tal elemento está longe de ser desconhecido pelos marxistas. Trata-se, com efeito, de sublinhar que são os próprios homens que fazem a história, tanto na sua vida privada como na existência pública. Segue-se que tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá no curso da história da humanidade compõe-se de ações humanas e essas resoluções são sempre tomadas nas situações concretas, precisas (a “situação”, cara aos existencialistas). Ora, consideradas no plano individual, essas resoluções podem sempre ser tomadas num sentido ou noutro.

Sendo assim, Lukács (1967) afirma que se o existencialismo se contentasse em esclarecer esse elemento de uma relação dialética frente aos marxistas vulgares, que consideram o determinismo econômico da consciência

humana como uma fatalidade mecânica, sua posição seria inteiramente justificada e muito útil. Mas não seria suficiente para permitir-lhe apresentar-se, face ao marxismo, como uma filosofia independente. Sartre isola e erige como absoluto esse momento mediador necessário da história, colocando-o no centro mesmo de sua doutrina, e vê-se obrigado a suprimir a objetividade da natureza e da história, pois, aos seus olhos, só a subjetividade interior pura é digna desse nome. A fim de salvá-la, é obrigado a abandonar a objetividade da natureza e da história. Esse procedimento certamente conservaria uma aparência lógica, enquanto, como em Heidegger, somente os problemas puramente interiores do intelecto estivessem em jogo; a subjetivação da história corresponderia então exatamente às ilusões mantidas pela classe de intelectuais quanto às suas relações com a realidade histórica e social. Mas essa opinião torna-se muito difícil de defender, quando se tem a ambição de defendê-la frente ao marxismo, enquanto verdadeira filosofia da história. Neste último caso, restam apenas ao existencialismo duas possibilidades: esboçar uma caricatura do marxismo e conseguir contra este uma vitória fácil (o que faz aqui Sartre), ou tentar incorporar, abusivamente, ao existencialismo, certos resultados do marxismo, escamoteando, no domínio da prática, o antagonismo que existe entre essas duas ideologias, salvando assim as bases filosóficas do existencialismo. Este foi o caminho escolhido por Simone de Beauvoir e, sobretudo, por Merleau-Ponty, diz Lukács.

Vejamos o que diz Engels a respeito da acusação de que o marxismo

“elimina a subjetividade”, sinaliza Lukács:

Fazemos nós mesmos nossa história, escreve, mas, antes de mais nada, com premissas e condições determinadas. Entre todas, são as condições econômicas as finalmente determinantes... Mas, em segundo lugar, a história faz-se de tal modo que o resultado final provém sempre dos conflitos de um grande número de vontades individuais das quais cada uma por sua vez é feita tal qual é por uma multidão de condições particulares da existência; há portanto aí inumeráveis forças que se contrapõem mutuamente, um grupo infinito de paralelogramos de força, donde se origina uma resultante – o acontecimento histórico – que pode ser considerado, por sua vez como o produto de uma força que age como um todo, de maneira inconsciente e cega. Pois, o que cada indivíduo quer é impedido por outro e o que daí resulta é qualquer coisa que ninguém quis... Mas, pelo fato de que as diversas vontades... não chegam a realizar sua vontade, mas se fundem em uma média geral, em uma resultante comum, não se tem o direito de concluir que sejam iguais a zero. Ao

contrário, cada uma contribui para a resultante e, por isso, está incluída nela (Engels apudLukács, 1967, p.106).

É evidente que quando o marxismo se apresenta sob seu verdadeiro aspecto e não sob o da caricatura concebida por Sartre, percebe-se imediatamente sua incompatibilidade fundamental com o existencialismo. Com efeito, enquanto este último limita-se, ao menos sob sua forma primeira, a esboçar a análise psicológica e fenomenológica de resoluções e de ações individuais isoladas, acrescentando, às vezes, comentários de ordem moral, ou os exagerando para fazer deles uma ontologia, a análise marxista da história começa precisamente no ponto em que o existencialismo abandona a partida.

O marxista começa por examinar como esse caos de atos individuais torna-se um processo objetivo, regido por leis cognoscíveis que denominamos História (LUKÁCS, 1967).

Para compreender a História, a análise marxista remonta aos fundamentos materiais da ação humana, à produção e à reprodução materiais da vida humana. Nela descobre as leis históricas objetivas, mas não nega, no entanto, o papel da subjetividade na História. Apenas determina o lugar exato que lhe cabe na totalidade objetiva da evolução da natureza e da sociedade. É assim quando examina o problema do trabalho, tomando de Marx a estreita ligação causa-efeito e meio-fim na sua definição do trabalho (LUKÁCS, 1967).

Mas todos esses ataques e todos esses contra-sensos tendem para um objetivo definido. Sartre tenta, com efeito, ligar sua aceitação ideológica da revolução à “situação” dos oprimidos e fazer disso, ao mesmo tempo, uma filosofia universal que não seja mais o bem exclusivo de uma classe. Quer mostrar como é possível chegar à revolução quando se pertence a uma classe não-proletária ou mesmo à burguesia, afirmando que “Um burguês opressor é oprimido por sua opressão”. Sartre pode assim metamorfosear, por meio de uma nova operação da ontologia fundamental, outra idéia marxista, em um lugar-comum abstrato e absurdo. Engels mostra, com efeito, como o burguês, e até mesmo o aposentado desocupado estão submetidos às leis da divisão capitalista do trabalho, e Marx descreve com muita clareza a unidade dos elementos comuns e antagonistas na existência e consciência sociais do burguês e do proletário, como destaca Lukács (1967):

A classe possuidora e a classe do proletariado, escreve, representam a mesma alienação humana, mas a primeira se sente à vontade nessa auto-alienação, que experimenta como sua própria afirmação, que sabe ser seu próprio poder e na qual possui a ilusão de uma existência humana. A segunda se sente aniquilada na alienação, que representa para ela sua própria impotência e a realidade de uma existência desumana (LUKÁCS, 1967, p. 127).

O autor continua destacando que o próprio Marx designa uma possibilidade para os não-operários de se tornarem revolucionários. Basta pensar nas indicações bem conhecidas do Manifesto Comunista. Mas Sartre quase não pode aceitar essa teoria e é precisamente aí que se manifesta o ponto mais fraco, a debilidade irracionalista da couraça existencialista. O existencialismo recusa-se atribuir um papel decisivo, na gênese das decisões dos homens, às opiniões e às idéias, em uma palavra, aos reflexos da realidade objetiva na consciência humana. Sartre recusa em admitir o conhecimento da realidade enquanto condição prévia da sua transformação.

Acrescenta mesmo que os marxistas bem sabem em que se ater a esse respeito, porque enviam seus funcionários entre as massas, a fim de

“radicalizá-las” e de despertar sua consciência de classe. Mas, pergunta-se Sartre triunfante: “esses próprios funcionários, onde adquirem sua compreensão da situação?” Diante desta assertiva, Lukács (1967) sustenta que, quando se nega que o conhecimento é o reflexo da realidade objetiva na consciência, quando se faz da ação revolucionária um fetiche independente, que não tem mais nenhuma relação com o conhecimento da realidade objetiva e com as leis igualmente objetivas que a regem, então o fato simples de haver graus na compreensão desses problemas e que uma compreensão mais completa estimula a ação pessoal e mesmo a dos outros se tornam um enigma.

Sendo assim, nenhum compromisso é possível entre essas duas concepções, marxismo e existencialismo: é necessário escolher. Nenhum compromisso é possível, também, entre a concepção existencialista de liberdade e a unidade dialética e histórica da liberdade e da necessidade, estabelecida pelo marxismo. Lukács (1967)

diz ser evidente que, a partir do momento em que se aprofundem os métodos do existencialismo, o bom existencialismo – isto é, um existencialismo não niilista – é simplesmente inconcebível.

Diante deste quadro, a relação dialética entre a compreensão correta da História e as conseqüências que dela decorrem para o indivíduo moral são de natureza muito complexa. Não é somente a compreensão concreta da situação histórica imediata que está em jogo, mas também a totalidade das relações históricas que formam o pano de fundo da situação concreta imediata.

Portanto, são, em grande parte, o conteúdo objetivo e a direção real da história que determinam o caráter heróico ou ignóbil, trágico ou cômico dos personagens que agem historicamente. O triunfo, assim como a derrota, resulta, sem dúvida, sempre de uma luta real, cujos episódios oferecem um largo campo aos jogos do acaso, como ao desenvolvimento da inteligência, da energia, da coragem, do sofrimento, etc., dos homens que nela se enfrentam. Mas as perspectivas reais dessa luta, as qualidades morais suscetíveis de nela se desenvolver, seu caráter e seu valor, são sempre determinadas – não de uma maneira fatalista e direta, mas somente em última análise – pela marcha objetiva da própria história (LUKÁCS, 1967).

O marxismo intervém aqui, colocando a dialética objetiva do acaso e da necessidade. Mas para compreender essa dialética, que rege efetivamente a História, e cuja penetração teórica incompleta conduziu Merleau-Ponty ao abandono da ortodoxia existencialista e ao ecletismo, é preciso de início abandonar a polarização exclusiva da liberdade e da necessidade: segundo a lei da dialética, a liberdade é necessidade reconhecida. A necessidade deve, portanto, perder seu caráter rígido e reificado, sem perder, no entanto, sua objetividade e seu caráter independente da consciência humana. Por outro lado, é preciso igualmente compreender a objetividade do acaso e sua interação concreta e dialética com a necessidade. É assim que se penetrará por fim na estrutura da História que quer que a necessidade não possa triunfar senão através de acasos, pela vitória a que conduzem, em última análise, as tendências históricas objetivas (LUKÁCS, 1967).

Lukács (1967) continua afirmando que sem “o momento da transcendência” é impossível chegar à compreensão dialética da interação.

Ora, “o momento da transcendência” é inconcebível se não se atribui o primado gnosiológico quer ao espírito, quer à matéria. E, porque Merleau-Ponty procura

o “terceiro caminho” do existencialismo, isto é, uma pretensa superação do idealismo e do materialismo, não pode haver, para ele, um “momento da transcendência” (que nada mais seria que o conteúdo objetivo da História), nem no sentido materialista como em Marx, nem no sentido idealista como em Hegel. Sua tentativa de penetração teórica das realidades dialéticas está fadada, portanto, ao ecletismo.

Só a explicação da interação dialética entre a existência social concreta, que determina a consciência humana, e o reflexo dessa realidade objetiva na consciência, pode fornecer-nos a solução efetiva desse problema. Quando reconhecermos que as opiniões dos sujeitos que agem historicamente são os reflexos de uma mesma realidade objetiva, quando compreendermos que o caráter, a quantidade, o volume, etc., desse reflexo, assim como a sua assimilação teórica, sentimental etc., pelo sujeito, são determinados por essa mesma interação, disporemos, enfim, do método que nos abrirá o acesso ao problema (LUKÁCS, 1967).

Merleau-Ponty exige com razão que o esclarecimento dessas correlações atinja o plano do indivíduo. Mas é precisamente o marxismo – e só o marxismo – de acordo com Lukács (1967), que é suscetível de satisfazer essa exigência. Uma teoria geral da consciência social não poderia ter por objeto senão a média e o típico. O marxismo não é, entretanto, uma sociologia que aceitaria essa definição como uma determinação absoluta, ou antes – como é freqüentemente o caso nos autores modernos – como uma tipologia abstrata, destinada somente a registrar. O que oferece, ao contrário, é a estrutura móvel dessas correlações, o espaço social real, que é a própria cena na qual se desenrola e se inscreve nessa tipologia, a consciência individual.

Sendo assim, segundo Lukács (1967), o pensamento agnóstico burguês assimilou mal a verdade de que é precisamente o reflexo da realidade objetiva na consciência humana que conduz a evolução individual, que não é fatal, à compreensão da situação de classe do indivíduo. Não acontece, continua o autor, mesmo em casos muito simples, que a tomada de consciência dos fatos da realidade objetiva trabalha em oposição às determinantes da existência social, que agem espontânea e diretamente na consciência individual? A eficácia dessa ação é diferente em cada caso individual, segundo a situação