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BEAUVOIR: VIDA E OBRA

2.8 O MEDO DA VELHICE E DA MORTE

pensadores que afetam diretamente a nossa maneira de ver o mundo, certamente constituem “sucesso” maior que a sua relação privada com Sartre, seja qual for o juízo que façamos do legado dele, filosófico e literário (APPIGNANESI, 1986).

capítulo da sua autobiografia e, ironicamente, o mais íntimo de todos.

Evocando os últimos dias da vida de sua mãe, a humilhação que aquela mulher orgulhosa sofreu às mãos de um sistema médico devotado à vida a todo custo, Beauvoir reavaliou um relacionamento crucial, ausente das páginas da sua autobiografia que tratam de sua vida adulta. Pela primeira vez na sua vida, Beauvoir trazia à baila uma identidade com a mãe que ela ao mesmo tempo amava e desprezava; sua infância inteira estava diante de seus olhos, como a sua própria morte. A violência de sua reação sugere que o próprio aspecto da experiência da mulher de quem ela fugiu se ergueu à sua frente; ela também é aquela mulher oprimida por uma condição que sempre conscientemente recusou assumir (APPIGNANESI, 1986).

Paradoxalmente, os últimos vinte anos de vida de Beauvoir foram os seus anos mais desafiadoramente radicais. Sua energia fenomenal permaneceu inalterada, e ela se lançou à atividade com seu característico destemor. Sua lucidez permaneceu intacta e estava preparada para admitir onde seu pensamento, sobretudo com relação ao feminismo, podia ter estado em erro no passado; sua crítica do capitalismo ocidental e seus efeitos desumanizantes, do imperialismo e racismo americanos ficou ainda mais apaixonada. Outrossim, também apaixonada era a sua condenação da União Soviética por sua violação dos direitos humanos. A despeito do crescente engajamento político dessa última fase da sua vida, sua recusa em curvar-se ao dogma e às mistificações de qualquer linha partidária era pronunciada. Sua primeira e principal responsabilidade continuava a ser com sua própria inteligência, fossem quais fossem as pressões de qualquer grupo político e, ao contrário da maioria das pessoas, ela ficou mais radical com a idade (APPIGNANESI, 1986).

Nesse sentido, seu livro, intitulado O Balanço Final, lançado em 1971, quando Beauvoir tinha então 73 anos, transmite uma sensação de serena atividade, com uma mulher já tranqüila consigo mesma e com a velhice, inclusive afirmando que, estava enganada quando, em 1962, pensou que nada mais de importante iria acontecer consigo, além de desgraças. Diz ter se enganado com o perfil que teria o seu futuro, cheio de desgostos. Neste livro, continua a autora, seu papel de primeira dama da esquerda européia dá cor às

páginas, uma vez que ela e Sartre participavam ativamente, de diversas reuniões internacionais de causas políticas (ASCHER, 1991).

No entanto, esses últimos anos de enérgico e vociferante radicalismo não deixam de ter sua melancolia latente. Beauvoir perdeu muitos amigos e a gerência da prolongada decadência física e mental de Sartre foi difícil e dolorosa. Além disto, Beauvoir já não via o ato de escrever como um modo privilegiado de comunicação, pois sentia que muitos dos jovens que ela gostaria de influenciar julgavam a leitura sem sentido. Isso exacerbava a contradição que ela e Sartre já haviam identificado no começo da década de 1960 entre as aspirações universais do intelectual e a prisão da sua experiência individual e limitada. Sua fé na cultura ocidental, na cultura em geral, estava abalada, não obstante, ela ainda desejava transmitir o que nessa cultura permanecia válido no intuito de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa (ASCHER, 1991).

Segundo Appignanesi (1988), a vida de Beauvoir sempre se ajustou ao seu trabalho, e a velhice não foi exceção. Assim como a experiência pessoal que a levara a questionar a própria feminilidade resultara na escrita d’O Segundo Sexo, também agora, ao fazer 60 anos, a experiência de envelhecer alimentou seu monumental estudo intitulado A velhice. Este livro, do ponto de vista da autora, é, em muitos aspectos, paralelo ao Segundo Sexo, e certamente, a reação dos críticos quando ele foi publicado em 1970 foi tão violenta quanto o fora em face do seu estudo pioneiro sobre a mulher.

Neste livro, Beauvoir afirma que a condição da velhice – como afirmou em relação à condição da mulher – é um fato cultural e não simplesmente biológico; também a velhice foi escondida da história e os mitos que a cercam entronizam o velho numa silenciosa impotência, maior, talvez ainda, que a da mulher. Valendo-se de todos os instrumentos da análise a seu dispor – médicos, antropológicos, históricos, literários e sociológicos – Beauvoir se pôs em campo para romper a conspiração de silêncio que fez da idade um segredo vergonhoso, escrevendo com uma veemência alimentada por um sentimento de insulto pessoal, rasgando os véus de uma condição à qual nos esquivamos,

mas que nos espera a todos. Aqui vale destacar a afirmação da própria Beauvoir:

A velhice escreve, é a condição humana na qual a alienação de nós mesmos é mais intensa. Dentro de mim, está a Outra – isto é, a pessoa que sou vista de fora – que é velha: essa Outra sou eu.

Improdutivos, numa época que dá valor apenas à produtividade, sem um futuro no qual seus projetos os poderiam definir, os velhos são impotentes, invisíveis como indivíduos separados da condição da idade. E, todavia, essa condição os apanhou desprevenidos.

Embora esteja lá à vista de qualquer um, a idade raramente dá sinais da sua chegada. Presos num corpo estranho, excluídos de um papel ativo na sociedade, os velhos sofrem, mas esse sofrimento desperta apenas impaciência dos jovens. (Beauvoir apud Appignanesi, 1988, p. 144)

Como fez n’O Segundo Sexo, Beauvoir explorou território tabu, examinando a sexualidade dos idosos, e afirmou que embora o corpo decaia, o desejo sexual muitas vezes persiste, mas a sociedade, no entanto, se recusa a admiti-lo. Em relação às propostas para superação desta condição da velhice, Beauvoir diz que os valores fundamentais e as estruturas sociais do mundo ocidental têm de ser radicalmente alteradas e no nível individual,e que os idosos devem continuar naquelas ocupações que dão sentido à existência (APPIGNANESI, 1988).

Na mesma direção, Francis e Gontier (1986) destacam que Beauvoir desejava uma sociedade bem integrada, onde as pessoas idosas trabalhassem de acordo com as suas capacidades e não fossem párias. Infelizmente, quando se vai aproximando dos 60 anos, um trabalhador está quase sempre desgastado, não dispondo dos recursos culturais de um intelectual, nada tendo mais a fazer senão aguardar a morte. Como Beauvoir confia na libertação das mulheres pelo trabalho e na sua integração completa no próprio contexto da sociedade, esperava também, do trabalho, a valorização da velhice e a libertação das pessoas idosas. As autoras continuam destacando que há muitos anos Beauvoir reivindicava o direito ao trabalho para todos, e a igualdade pelo trabalho, argumentando que estar fora do mundo do trabalho

produtivo, remunerado, era viver no limbo; o direito à felicidade, para ela, era inalienável e só poderia ser obtido pela atividade consentida, retribuída e respeitada.

Nos EUA, sua mensagem foi compreendida pelas pessoas idosas, que imediatamente puseram em prática o princípio beauvoiriano de agir, fundando uma associação chamada As panteras cinzentas, adotando como finalidade integrar as pessoas idosas na vida da comunidade. Esta associação adquiriu importância política e social e começaram uma luta eficiente em favor do bem-estar das pessoas da terceira idade, criaram empresas e conseguiram, em certas profissões, fazer recuar a idade da aposentadoria compulsória para 70 anos. Sendo assim, com este ensaio, Beauvoir contribuiu para o avanço nas leis e hábitos das sociedades ocidentais, constituindo uma nova defesa da liberdade, um novo ataque às “bastilhas” dos privilégios, das opressões, das iniqüidades (FRANCIS e GONTIER, 1986).

Neste livro Beauvoir demonstra que a posição dos idosos tem variado enormemente em diferentes sociedades e através da história. Onde a sabedoria, que somente a idade pode adquirir, é valorizada, velhos e mulheres têm prestígio e levam vidas relativamente confortáveis. Mas em nosso mundo moderno, os avanços são tão rápidos que se avaliam os conhecimentos dos idosos como sendo obsoletos. Demonstra também que a velhice é sempre mais penosa e degradante para o pobre do que para o rico, bem como mais difícil para os homens do que para as mulheres, já que, enquanto a aposentadoria dos homens cria uma mudança radical para a “inutilidade”, as mulheres continuam a achar meios de serem úteis em pequenas tarefas domésticas. Contudo, o excesso de objetividade de Beauvoir neste livro, demonstra sua falta de identificação com a velhice, da mesma forma que também não se identificou ao elaborar O Segundo Sexo (ASCHER, 1991).

Durante toda vida Beauvoir teve acessos de choro repentinos, causados por crises assustadoras e sufocantes de ansiedade e desespero, que atribuía ao medo da morte e do vazio metafísico. Contudo, preferia não se deter nas ansiedades tão palpáveis sob a superfície de sua escrita. Recusava-se a assumir seu medo da solidão, do abandono e da perda do amor, mas admitia

abertamente ser perseguida pela idéia que considerava o pior dos pesadelos: a morte de Sartre. Contudo, ele abusara temerariamente de seu corpo, e os efeitos desses abusos logo se fizeram sentir (ROWLEY, 2006).

Após a morte de Sartre em abril de 1980, Beauvoir, que sempre administrava os estados de confusão mental e desgosto escrevendo sobre eles, pôs-se a escrever A cerimônia do adeus, baseando-se em seus diários dos dez anos anteriores, em que retratou seu prolongado adeus ao homem a quem amara.

Enquanto a saúde de Beauvoir se manteve boa, permitindo-lhe trabalhar, a de Sartre teve uma grave piora em 1970, e na verdade, o testemunho de A cerimônia do adeus leva a autora a crer que era a velhice de Sartre que pesava sobre Beauvoir quase mais do que a sua. De 1970, quando publicou A velhice, e durante todo o período em que escreveu o último volume de suas memórias, publicado em 1972, até à morte de Sartre, em 1980, a vida de Beauvoir teve como centro o cuidado de um Sartre cada vez mais debilitado. Em relação ao livro A cerimônia do adeus, a autora o considera, juntamente com Uma morte muito suave, um dos livros mais comoventes de Beauvoir. Talvez seja, afirma Appignanesi (1988), por demais cru e devastador, doloroso no seu testemunho, excessivamente franco nos pormenores de uma humilhante senilidade, mas, afinal, Beauvoir perdera o companheiro de sua vida (APPIGNANESI, 1988). Vale destacar a assertiva da própria:

Este é o primeiro dos meus livros – o único, sem dúvida – que você não terá de ler antes de impresso. É totalmente, inteiramente, devotado a você. E você não será afetado por ele... Mesmo se eu for enterrada ao seu lado, não haverá comunicação entre as suas cinzas e as minhas. (Beauvoir apud Appignanesi, 1988, p. 158)

Em relação ao livro A cerimônia do adeus, um acordo feito de transparência, baseado na autenticidade, só poderia terminar por um testemunho sincero, sem idealizações ou mentiras. Beauvoir falou de Sartre com palavras através das quais se sente o desenrolar do tempo, a fuga das forças, palavras que contam simplesmente o decurso diário da velhice, da

doença, e o escândalo da morte. O livro, como tantos outros, foi recebido por alguns com hostilidade, posto que, ainda uma vez, derrubou tabus, rejeitou eufemismos, falou sem nada encobrir, sem idealização da condição humana.

Em suas memórias, Beauvoir escreveu uma brilhante biografia de Sartre e mostrou o poder do pensamento, o gênio abundante do filósofo e do escritor.

Escrevendo este livro do declínio, fazendo-nos assistir ao cair do crepúsculo sobre a sua vida, ela, como em Uma morte muito suave e em A velhice, exprimiu a sua revolta diante do fim de todas as coisas para um ser que viveu plenamente, que fez da sua vida uma grande realização (FRANCIS e GONTIER, 1986).

A influência de Beauvoir sobre as idéias e os costumes foi mais direta do que a de Sartre nos últimos anos de vida destes. Através de seus escritos e de sua ação, ela recusou o conformismo burguês, o colonialismo, o liberalismo político, opôs-se à tortura e às violências policiais, reafirmando a liberdade humana, e a emancipação da mulher parece ter sido um catalisador de seu pensamento. De todos os seres humanos, a mulher, seria o mais cerceado; os muros erigidos pela sociedade em torno dela a interiorizam e desenvolvem um complexo de inferioridade. Beauvoir não negou a diferença biológica, contudo, não via nela razão para se construir um sistema e uma moral que definisse um sexo dominante e outro inferior. Ela reivindicou, para todos, a igualdade das oportunidades e acreditava que a verdadeira emancipação situava-se no plano do trabalho e nas realizações econômicas e sociais, e cada um deveria poder escolher a sua própria vida (FRANCIS e GONTIER, 1986).

Ao publicar As Cartas ao Castor, Beauvoir destruiu o mito do casal que formava com Sartre, e que servia de referência a numerosos amantes decididos a viver o seu amor fora das regras. A relação do casal mais célebre da literatura do século XX era de notoriedade pública, e as cartas trouxeram a tona um casal inimitável em sua singularidade. Durante cinqüenta anos, a fraternidade indestrutível que os ligava estreitamente dispensou um lar comum;

se esse gênero de vida não era raro para os homens, era surpreendente para uma mulher, e único para um casal cujo acordo só foi rompido pela morte. As decisões de ambos eram tomadas em comum, e os pensamentos quase desenvolvidos em comum. Foi Beauvoir quem imprimiu ao casal o seu modo

de vida e a sua maneira de viajar; as teorias filosóficas vieram de Sartre, diz ela, mas discutidas, passadas no crivo, modificadas, retomadas, elas levaram, portanto, a marca de Beauvoir. Assim, o casal Beauvoir-Sartre é, antes de tudo, um casal de escritores, de intelectuais e de criadores e, na sua diferença, inventou e viveu a sua arte de amar (FRANCIS e GONTIER, 1986).

A despeito de sua formidável atividade nos seis anos seguintes, suas diversas viagens, entrevistas e tarefas editoriais, inclusive o preparo para a publicação das Cartas ao Castor de Sartre, Beauvoir não escreveu outros livros. A morte fora o seu assunto por muitos anos e nessa vida exemplar, era, apropriadamente, o último (APPIGNANESI, 1988).

Beauvoir morreu em 14 de abril de 1986, seis anos quase exatos após a morte de Sartre. Como ele, morreu de edema pulmonar; mais de cinco mil pessoas acompanharam seu sepultamento e suas cinzas foram depositadas ao lado das de Sartre. Sempre há ramos de flores frescas em seu túmulo no cemitério de Montparnasse; seus livros foram traduzidos para dezenas de línguas e uma vasta indústria cresceu em torno deles, com prateleiras de biografias, monografias, memórias, bem como artigos, conferências e cursos universitários sobre sua obra e sua vida.

Apresentamos, neste capítulo, uma síntese da vida e da obra de Simone de Beauvoir, com o intuito de facilitar a compreensão de suas idéias e de seus posicionamentos teóricos e políticos, principalmente no que diz respeito à questão da subordinação da mulher. Estamos certas de que sua história de vida e o contexto histórico em que viveu nos darão pistas a respeito da linha de raciocínio que seguiu para desenvolver O Segundo Sexo.

CAPÍTULO 2