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MARXISMO

3.7 O SURGIMENTO DO EXISTENCIALISMO

Deve-se entender por existencialismo qualquer filosofia que seja concebida e se exerça como análise da existência, desde que por existência se entenda o modo de ser do homem no mundo. Dessa forma, a análise da existência não será então o simples esclarecimento ou interpretação dos modos como o homem se relaciona com o mundo, nas suas possibilidades cognoscitivas, emotivas e práticas, mas, também, e simultaneamente, o esclarecimento e a interpretação dos modos como o mundo se manifesta ao homem e determina ou condiciona as suas possibilidades. A relação

homem-mundo constitui assim o tema único de toda a filosofia existencialista. Outra característica fundamental do existencialismo é a de usar a noção de possibilidade na análise da existência; a existência é essencialmente possibilidade, e os seus constituintes são os modos possíveis de relação do homem com o mundo, isto é, as possibilidades de fato, bem determinadas, de tal relação. Os precedentes históricos próximos do existencialismo são a fenomenologia de Husserl e a filosofia de Kierkegaard, e é deste último que ele aproveitou a categoria da possibilidade, entendida, sobretudo, no seu caráter paralisante e ameaçador, decorrente do fato de tornar problemática a relação do homem com o mundo e de excluir, de tal relação, a garantia de um sucesso infalível (ABBAGNANO, 1993).

O existencialismo é, de todas as correntes filosóficas contemporâneas, a única que se apresenta como a expressão de um clima cultural ou que contribuiu para formar tal clima, que o autor designa de crise do otimismo romântico. Este otimismo baseava-se no reconhecimento de um princípio infinito (Razão, Absoluto, Espírito, Idéia, Humanidade, etc.) que constitui a substância do mundo, e que por isso o rege e o domina assim como rege e domina o homem, garantindo-lhe os seus valores fundamentais e determinando o progresso infalível destes. O existencialismo, por seu turno, é levado a considerar o homem como um ente finito, isto é, limitado nas suas capacidades e nos seus poderes, lançado no mundo, isto é, abandonado ao determinismo desse mesmo mundo, que lhe pode anular todas as possibilidades, e obrigado a manter uma luta incessante, com situações que podem levá-lo ao fracasso.

Devido a estas características, o existencialismo ligou-se, desde o início, a certas manifestações literárias em que era mais vivo o sentido da problematicidade da vida humana, como a obra de Dostoievsky. Em tais obras, pode-se sentir sempre presente e operante o problema do homem, que continuamente escolhe as possibilidades que se abrem à sua vida, as realiza e as conduz ao seu termo, arcando com o peso e a responsabilidade de tal realização; e que, permanentemente, se encontra para além dela, de novo perante o mesmo enigma, isto é, perante outras possibilidades que é preciso escolher e realizar. O tema da insegurança fundamental da vida, contra a qual nada pode qualquer defesa ou refúgio; o do apelo incessante a uma realidade estável, segura, luminosa, que continuamente se promete e se anuncia ao

homem, mas que sempre o ilude e lhe foge; e o tema da queda na insignificância e na banalidade cotidiana que tira ao homem o seu próprio caráter humano, não são mais do que a expressão literária daquilo que o existencialismo procura esclarecer conceitualmente nas suas análises (ABBAGNANO, 1993).

Depois da Segunda Guerra Mundial, o existencialismo aparece como o reflexo mais fiel ou a expressão mais autêntica da situação de incerteza existente na sociedade européia, dominada ainda pelas destruições materiais e espirituais da guerra e preparando-se com hesitação para uma reconstrução difícil. A chamada literatura existencialista, e em primeiro lugar a obra literária de Sartre, constitui o elo de ligação entre a situação daquela época e as formas conceituais do existencialismo, que tinham sido, porém, elaboradas anteriormente. Com efeito, esta literatura dedicou-se, sobretudo, a descrever as situações humanas em que mais se notam os traços da problematicidade radical do homem, sublinhando assim as vicissitudes menos respeitáveis e mais tristes, e também a incerteza da ação humana, quer seja boa ou má, e a ambigüidade do próprio bem. Estes temas surgem ainda na obra de Simone de Beauvoir, que ilustrou o último deles não só na sua obra literária, mas, ainda, no ensaio intitulado Por uma moral da ambigüidade (ABBAGNANO, 1993).

Lukács (1967) por seu turno, afirma que o existencialismo revela certos sintomas de uma crise e isto não se deve ao acaso. A história do pensamento humano nos ensina, com efeito, que toda filosofia leva a marca profunda de sua época, na sua metodologia, em toda sua estrutura e até nas condições que lhe permitiram constituir-se, por conseguinte, as inflexões da História provocam, necessariamente, crises na filosofia. Assim, concepções que durante muito tempo pareciam indiscutivelmente evidentes, tornam-se de repente problemáticas. O pensamento então, entrega-se tumultuosamente, por toda parte, à procura de justificações novas, de possibilidades de modificação, de perspectivas inéditas. Pois, em realidade, enquanto não se está em presença de uma sociedade nova, com uma estrutura social e econômica essencialmente nova, enquanto as antigas classes e frações de classe dominante guardam seu poder e sua influência – ainda que sua posição no conjunto da sociedade tenha-se tornado um pouco vacilante – certos axiomas subentendidas, certas condições primeiras da filosofia conservam sua validez. As crises da filosofia manifestam-se, então, em primeiro lugar, como tentativas com vistas à concordância dos princípios tradicionais aos fatos e aos problemas novos de uma existência social

transformada e ao comportamento humano modificado. Dessa forma seria espantoso que o desmoronamento do fascismo e a luta pela democracia – pela democracia nova, antes de tudo – não tivessem provocado mudanças que exigissem todos os caracteres de uma crise.

Diante deste quadro, de acordo com avaliação feita por Lukács (1967) ainda na década de 1940, quando publicou a primeira edição de Existencialismo ou Marxismo, o existencialismo tornar-se-ia a corrente espiritual dominante dos intelectuais burgueses. A vanguarda espiritual via no existencialismo, de acordo com o autor, a promessa de um renascimento da filosofia e a expressão adequada da ideologia daquela época. Desde antes do fim da guerra, o existencialismo havia invadido o Ocidente; os existencialistas alemães mais evidentes, assim como o precursor de seu método, Husserl, fizeram grandes conquistas na França e na América.

Diante deste quadro, Lukács (1967) afirma que seria preciso medir o lugar que o objeto dessa filosofia nova pode e deve ocupar na vida do homem. Abarca a totalidade da existência humana, como seria o caso, nos limites específicos de sua época, para cada um dos grandes sistemas filosóficos, ou antes, oferece-nos apenas uma representação fragmentária e desfigurada do mundo.

De acordo com o mesmo, declarar que o existencialismo deriva da fenomenologia de Husserl não seria uma resposta satisfatória à questão que se coloca, pois Husserl não foi existencialista, mas o método fenomenológico influenciou profundamente o existencialismo.

Já Garaudy (1965) afirma que os temas centrais do existencialismo nascem da crise profunda de um mundo em confusão, de um mundo em impasse, de um mundo absurdo, mas também da revolta contra este absurdo, da afirmação do poder invencível do homem de livrar-se do caos, de dar-lhe um sentido, de ultrapassá-lo. O autor cita Sartre para descrever tal contexto:

Serão necessários dois séculos de crise – crise da fé, crise da ciência – para que o homem recupere esta liberdade criadora que Descartes colocou em Deus e para que se suspeite enfim esta verdade, base essencial do humanismo: o homem é o ser cuja aparição faz com que um mundo exista (Sartre apudGaraudy, 1965, p. 40).

Esta crise na história do pensamento como na história pura e simples, é universal. Ademais, o existencialismo francês tem antepassados e precursores

para além de Kierkegaard, Dostoievski e Nietzsche, que viveram e exprimiram os temas do existencialismo por ocasião das primeiras grandes crises do mundo atual. Entre as duas guerras mundiais, o existencialismo alemão de Heidegger e de Jaspers, foi a principal influência do existencialismo francês (GARAUDY, 1965).

Se quisermos compreender a profundidade das contradições do existencialismo no curso dessa evolução, é indispensável recordar a pesada hipoteca que lhe pesa sobre as origens. O existencialismo implantou-se na França de maneira curiosa, pois ele veio da Alemanha importado por emigrados russos. Desde a sua chegada a Paris, em 1924, Nicolau Berdiaev fez uma ativa propaganda do existencialismo, desenvolvendo-o ainda mais a partir de 1933, quando Gabriel Marcel formou um público filosófico no estudo de Heidegger e de Jaspers, e quando as obras de Kierkegaard, após os estudos de outro russo emigrado chamado Chestov, foram traduzidas e editadas na França. O existencialismo russo desempenhou esse papel de introdutor na França de alguns temas principais do existencialismo, porque a situação que iria ser a de todo o mundo burguês, fora primeiro a deles:

assistiram à derrocada de um regime e de um mundo. A transposição de sua experiência exprimia a angústia que, na França, por volta de 1933-1934, se apoderava dos homens que ouviam o desabar do velho mundo, que assistiam à ascensão da classe operária, que estavam dominados ao mesmo tempo, pela angústia da crise e pelo medo da revolução (GARAUDY, 1965).

A preocupação constante do existencialismo é a de reencontrar um sujeito existencial, o de nossa experiência pessoal vivida, e de restaurar o contato íntimo, na existência humana, entre a subjetividade e a transcendência, dois termos antitéticos, mas, indissoluvelmente ligados. A tensão entre esses dois termos define o sujeito existencial. A existência autêntica não se acha nem em alguma coisa que seria radicalmente exterior ao espírito, nem num espírito universal independente das coisas; acha-se nesse sujeito que não é nem essas coisas nem esse espírito, mas ao mesmo tempo subjetividade e transcendência. Esta repulsa da dupla alienação das coisas e do espírito, e esta orientação da reflexão sobre o conhecimento a partir do homem concreto, é uma reação útil contra o racionalismo idealista e abstrato (GARAUDY, 1965).

Os principais temas do existencialismo, no momento em que ele vai florescer na França, notadamente com Sartre, podem classificar-se em três grupos: temas negativos e pessimistas, temas ativos e temas propriamente técnicos da fenomenologia. Os temas negativos e pessimistas exprimem o desabamento do mundo objetivo das verdades e dos valores na crise geral, material e espiritual, do mundo capitalista. Ao otimismo da burguesia nascente, o da Enciclopédia e do Século das Luzes,à confiança no progresso, na razão, na harmonia dos interesses e das liberdades, sucede, um século depois, na hora da decadência, com suas convulsões, seus antagonismos, suas crises e suas guerras, uma consciência infeliz, que encontrará no existencialismo sua justificação ontológica (GARAUDY, 1965).

Essa crise põe em causa duma só vez a estrutura do ser e a condição do homem, o valor do conhecimento e a significação da história. O ser acha-se dilacerado e este é um dos temas fundamentais da filosofia de Jaspers. Para este, o homem (o eu) acha-se esmagado entre o mundo dos objetos, sobre o qual se apóia para existir, mas cuja influência deve temer, e a transcendência que o chama, que lhe dá sua realidade verdadeira e seu sentido, mas que o domina e o aniquila. O homem, cuja liberdade é ao mesmo tempo sustentada e ameaçada pelo mundo e pela transcendência, nasceu sem justificação, está aí, sem razão, sem finalidade, absurdo, e isto é o que Heidegger chama de sua facticidade(GARAUDY, 1965).

A angústia, por seu turno, é a experiência vivida fundamental, em que se resumem todos os aspectos da condição humana, dentro desta perspectiva: a solidão; a absurdez; a ameaça constante de perder-se nas coisas, de não ser mais que o prolongamento de nosso passado coagulado, ou de ser tragado por esse mundo objetivo acabado que nos cerca, e de converter-se numa engrenagem passiva do mesmo; a vertigem de uma liberdade absoluta com a qual nada nem ninguém pode nos ensinar o que fazer; a presença da morte em todos os finais possíveis; a ambigüidade de tudo o que me envolve e de tudo o que sou. Dessa forma, nesta perspectiva a história não pode nos prestar nenhuma ajuda, não é ela que nos carrega; pelo contrário, nós a carregamos em nós. Kierkegaard em sua hostilidade a Hegel, opôs a Existência à História (GARAUDY, 1965).

No que diz respeito aos temas ativos, Garaudy (1965) afirma que estes exprimem, em face da derrocada de um mundo, a presença ou a possibilidade de uma revolução que seria uma espécie de redenção. Diz empregar propositadamente essa expressão teológica de redenção, porque se, perante a crise do mundo da burguesia, a Revolução Russa de 1917 e a ascensão do movimento operário na França a partir de 1934 apresentaram problemas à meditação existencialista, esta presença de uma revolução ou de sua possibilidade sofreu uma transposição metafísica e esta será uma característica constante do existencialismo francês, em que a Revolução Socialista não é mais um fenômeno histórico e sim um acontecimento metafísico: a redenção do homem. Disso resulta uma tentação permanente, uma espécie de fascínio exercido por esta Revolução Socialista, pela classe operária, pelo comunismo, mas ao mesmo tempo uma rejeição e às vezes uma hostilidade em presença do movimento real, mesmo entre aqueles que se dizem, politicamente, da esquerda francesa. Dessa forma, os temas revolucionários são teologizados, tal como os temas burgueses (GARAUDY, 1965).

A existência, para o existencialismo, é antes de tudo o que jamais se converte em objeto, e na polêmica dos existencialistas contra o objeto em geral, encontra-se freqüentemente a transposição de sua polêmica contra a ordem estabelecida da burguesia, contra suas estruturas acabadas, sua história já escrita, suas verdades imutáveis e seus valores eternos. O homem, nesta perspectiva, sob pena de recair na cega inércia das coisas, deve a cada instante criar seu futuro e suas razões de viver; isto depende dele e só dele.

Este salto do homem, diz Garaudy (1965) a respeito das concepções de Heidegger e Jaspers, sempre à frente de si mesmo, define-lhe a liberdade; é transcendência e é ação.

Diante deste quadro, temas ativos e negativos, temas do desespero e temas da ação aparecem como dois pólos, dois limites, no interior do tema fenomenológico que lhes constitui a unidade. Os dois procedimentos característicos do existencialismo são solidários, complementares: um, para rejeitar o mundo, para tomar distância em relação a ele; o outro, para experimentar, em virtude mesmo desta separação, desta censura ou desta

fissura ontológica, nosso poder absoluto de escolha, nossa responsabilidade total (GARAUDY, 1965).

Desse ponto de vista, o momento supremo do homem, o da liberdade, não é plenitude e realização, mas, ao contrário, indica uma carência, uma ausência, um oco no ser; o nada se converte no personagem central do drama da existência e a realidade humana é uma privação de ser (GARAUDY, 1965).

Diante deste quadro, Lukács (1967) afirma que toda concepção e mesmo toda categoria ótica encerra – conscientemente ou não – uma certa visão da sociedade e de sua evolução e esta visão pode, sem dúvida, negar toda evolução.

Do ponto de vista do autor, a crise na qual se debate o existencialismo manifesta-se pelas divergências cada vez mais graves que separam os primeiros princípios desta corrente, provenientes, socialmente, da situação de certa classe de intelectuais do estágio do imperialismo, e que provêm, do ponto de vista teórico, de Kierkegaard, de Husserl e de Heidegger, de problemas e de concepções novas que lhe impôs a época histórica consecutiva à Libertação. É neste contexto, portanto, que Sartre, nos termos de Garaudy (1965), renovou, aprofundou e sistematizou o existencialismo na França.