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MARXISMO

3.11 SIMONE DE BEAUVOIR

Segundo Lukács (1967), em Simone de Beauvoir, as contradições internas do existencialismo são ainda mais visíveis que no próprio Sartre. Ela propõe-se completar as bases ontológicas da doutrina existencialista pela junção de uma moral, em seu texto, Por uma moral da ambigüidade. No entanto, suas análises morais constituem igualmente discussões com o marxismo, com a existência da União Soviética, com as exigências que o Partido Comunista coloca a seus membros e às massas, e assim por diante.

Apenas cita os outros sistemas de moral, enquanto trava uma polêmica em regra com o marxismo, o qual, diz-se, não tem moral. Isto testemunha, de acordo com o autor, um robusto senso de realidade em Beauvoir, porque sente muito bem que essa camada de intelectuais cujo sentimento obscuro corresponde ao existencialismo, experimenta os problemas colocados pelo marxismo como uma tentação de se desviar do existencialismo.

Inversamente aos métodos empregados por Sartre, o debate não se reduz, diz o autor, desta vez, a um ataque demagógico. Beauvoir tenta, ao contrário, interpretar o marxismo como se fosse possível reconciliar as duas doutrinas, “melhorando” ou

“completando” o marxismo, pela junção de certos princípios existencialistas. É assim, por exemplo, que tenta subjetivar o marxismo: “Marx não considera que certas situações humanas sejam em si absolutamente preferíveis a outras; são as necessidades de um povo, as revoltas de uma classe que definem os meios e os fins;

é do seio de uma situação recusada e à luz dessa recusa, que um estado novo aparece como desejável”. Beauvoir acrescentará, de uma maneira completamente artificial, se for considerado o conjunto de seu ponto de vista, que essa vontade afunda suas raízes estranhamente na realidade histórica e econômica (LUKÁCS, 1967).

Segundo Lukács (1967), a tendência à abstração e à desfiguração inerente aos métodos da fenomenologia determina o caráter da questão central

que preocupa Beauvoir. Trata-se do problema da violência e da posição moral frente a ela. Beauvoir põe a questão com muita clareza. Para ela, toda violência é um escândalo, mas, por outro lado, reconhece que nenhuma ação política é possível sem violência. Ela própria reconhece, entretanto, que esta atitude conduz a uma contradição insolúvel.

De acordo com o autor, é característica de certas épocas nas quais a ordem social herdada do passado se desfaz entre manifestações mais ou menos explícitas, quando as condições objetivas e subjetivas da revolução não atingiram ainda sua plena maturidade. É fácil constatar a presença de certas correntes ideológicas da não-violência.

Segundo Lukács (1967), a condenação radical da violência, enquanto instrumento de libertação, foi sempre um sintoma de fraqueza social. Fraqueza, porque significa ao mesmo tempo o recuo ante os meios de realização e idealização utópica da ordem social sonhada. A violência da opressão constitui o fator mais diretamente perceptível da ordem social condenada e objetivamente cada vez menos sustentável. O período preparatório das revoluções e, mais particularmente, as etapas que seguem as revoluções esmagadas, obrigam as classes dominantes a transgredir os limites de sua própria legalidade e a recorrerem aos meios de coerção ilegais.

Segue-se que a oposição abstrata da não-violência a violência, e a idealização utópica de uma não-violência integral são perfeitamente compreensíveis entre todos aqueles que se assustam com a ação revolucionária; perfeitamente compreensíveis, mas também reveladoras no plano social.

Convém acrescentar que, desde que o despertar das classes oprimidas se manifeste por uma série de atos revolucionários e que a revolução triunfe em uma parte do mundo, os literatos assalariados ou voluntários das classes dirigentes desencadeiam uma campanha de propaganda intensa contra a violência. Esta propaganda silencia ou justifica todos os atos de violência dos opressores, lançando em descrédito moral todas as medidas de violência decretadas pela revolução.

Lukács (1967) pergunta, então, como pode o emprego da violência, em tais condições, constituir um problema moral ou, para recorrer à expressão de Beauvoir, ser um escândalo. As ideologias religiosas podem com todo direito ver nisto um escândalo, porque para elas, tudo é função de salvação eterna da alma humana. Pouco importa, no momento, se a condenação da violência exprime então as esperanças de revolta dos oprimidos ou se essas esperanças

lhes são simplesmente atiradas como pasto pelas classes dirigentes. Tanto num caso como no outro, diz o autor, a existência humana neste mundo constitui somente um prelúdio mais ou menos desprezível ante a vida eterna, e a condenação moral de todo recurso individual à violência nada mais faz do que sublinhar que o mundo terrestre carece de importância verdadeira e não deve mesmo ser julgado do ponto de vista da moral, qualquer que seja sua estrutura social.

Ainda segundo Lukács (1967), não são assim as ideologias que rejeitam a crença na continuação e no remate da vida humana no além. O único campo de atividade possível para estas ideologias é precisamente a vida terrestre, isto é, a vida concreta e real, tal como os homens a levam no interior de um sistema social concreto, que comporta classes diversas, e que dá lugar ao problema da legalidade do recurso à violência. A moral de tal ideologia deve então ater-se estritamente às condições de uma tal exigência terrestre.

É assim que, fatalmente, a questão seguinte é colocada por Lukács (1967): pode-se conceber uma ética inteligente e conseqüente, que considera um dos fatos mais freqüentes da existência social como um escândalo, sem se dispor, em primeiro lugar, a suprimir este escândalo? Destaca a palavra social:

é evidente, com efeito, continua o autor, que nenhuma ética pode propor-se à supressão dos elementos da natureza.

A atitude de Beauvoir e a dos outros existencialistas, nesta questão, revela o caráter inorgânico da gênese de sua doutrina, diz Lukács (1967).

Heidegger nada mais fez na realidade do que suprimir o Deus de Kierkegaard, tomando-lhe, sem nenhuma modificação profunda, o conjunto de suas categorias ao qual, no entanto, somente a referência a Deus pode dar um sentido imanente. Quanto a Sartre, apenas seguiu o exemplo de Heidegger.

Isso explica o fato de Jaspers ter construído, paralelamente às concepções heideggerianas, um existencialismo de traços protestantes e que existe na França, ao lado da escola de Sartre, um existencialismo católico. As antinomias e os dilemas entre os quais se debate Beauvoir são, em grande parte, o fruto dessa teologia existencialista sem Deus. A eliminação pura e simples de Deus leva, quando se trata de um sistema teológico conseqüente, à eliminação de toda a objetividade e só pode resultar, em última instância, num niilismo.

Mas Beauvoir recusa-se – e isto a honra – concluir por uma moral niilista. Empreende muitas tentativas para escapar ao inevitável. Lukács (1967) destaca, entretanto, que suas tentativas estão fadadas ao fracasso, por causa do formalismo de sua doutrina.

De acordo com Lukács (1967), toda moral digna desse nome deve pender para a reconciliação da liberdade e da necessidade. Beauvoir está, aliás, profundamente consciente desta obrigação. Seu senso da realidade permite-lhe ver que uma moral puramente individual, que elimina o caráter objetivo e a necessidade da história, não poderia operar essa reconciliação. A situação atual, assim como o papel que nela assume o marxismo, obriga Beauvoir a sair do individualismo limitado do existencialismo ortodoxo, levando-a levando-a levando-afirmlevando-ar que “A reconcililevando-ação dlevando-a morlevando-al e dlevando-a políticlevando-a, diz Belevando-auvoir, é levando-a reconciliação do homem com ele mesmo”.

Como vimos, continua o autor, também Beauvoir não pode ultrapassar o limite de certas antinomias, insolúveis para ela. Suas tentativas de solução levam a conjuntos ecléticos da moral da intenção e da moral do resultado.

Já Hegel, bem viu que se tratava aí de abstrações unilaterais, determinadas pelo caráter abstrato do ponto de partida do raciocínio. Diz ele, na sua Filosofia do Direito, de acordo com Lukács (1967, p.151): “O princípio que quer que se negligencie as conseqüências dos atos e o outro princípio, que quer que os atos sejam julgados segundo suas conseqüências e que se meça por eles o que é bom e conveniente fazer, dependem um e outro da razão abstrata”.

Portanto, não é possível sair da polaridade abstrata e exclusiva da intenção e da conseqüência, da subjetividade e da objetividade, da liberdade e da necessidade, a não ser após ter realizado a ruptura filosófica com o indivíduo erigido em valor absoluto. Contrariamente ao que afirma Sartre, esta ruptura não significa de forma alguma a destruição da personalidade humana ou da subjetividade. A solução resulta simplesmente da aplicação correta, a este problema, da relação dialética entre o absoluto e o relativo (LUKÁCS, 1967).

Limitar-nos-emos, portanto, aqui a sublinhar que esta aplicação correta necessita, primeiramente, de uma concepção do homem como um ser a priorie integralmente social, e que mesmo os problemas mais íntimos do indivíduo

mais solitário possuem igualmente seu aspecto social. Segundo Lukács (1967), o problema da liberdade humana é, ao mesmo tempo, um problema social e histórico. A liberdade não poderia ter um conteúdo concreto e uma relação dialética concreta com a necessidade, a não ser com a condição de ser compreendida, na sua gênese histórica e social, como a luta do homem contra a natureza, através da mediação das diversas formas da sociedade.

A gênese histórica e social da liberdade deve, portanto, ser explicada a partir da sujeição original do homem às forças da natureza, assim como às formas da sociedade, nascidas desta luta e que se tornam uma espécie de segunda natureza.

De acordo com Lukács (1967), as duas questões que acabamos de tratar surgem em Beauvoir no decorrer de sua análise da moral. Não é capaz, certamente, de fornecer uma resposta satisfatória, mas o fato não deixa de ser interessante. Beauvoir sabe, aliás, que a principal obra filosófica de Sartre não poderia fornecer uma base metodológica fértil, em vista da solução dos problemas que a preocupam.

O que nós encontramos em Beauvoir, segundo o autor, é antes a descrição paralela de dois estados opostos: a infância privada de liberdade e a existência em liberdade dos adultos. Mas isto se torna interessante só quando Beauvoir propõe-se estabelecer analogias entre as descrições fenomenológicas, e certos problemas concretos de ordem social, assim declarando: “É o caso, por exemplo, dos escravos que ainda não se elevaram à consciência de sua escravidão”. Estes viveriam então, de acordo com Beauvoir, em uma privação de liberdade análoga ao estado de infância.

Ter-se-ia aqui o direito de esperar, da parte de Beauvoir, um esboço dos elementos da passagem da consciência não-livre à consciência livre, a fim de melhor levar seus leitores a compreenderem o papel que o existencialismo atribui à sua noção de liberdade na evolução da humanidade, mas Beauvoir não se dedica a este empreendimento, conclui Lukács (1967).