• Nenhum resultado encontrado

MARXISMO

3.1 QUADRO GERAL DA POLÊMICA ENTRE EXISTENCIALISMO E MARXISMO

Bruni (1967) iniciou a apresentação do livro que traduziu de Georg Lukács, Existencialismo ou Marxismo, publicado pela primeira vez em 1948, questionando até onde realmente pode o existencialismo filiar-se ao marxismo. Essa pergunta, de acordo com o autor, permite dois níveis de resposta. Do ponto de vista prático, as posições do existencialismo francês, enquanto atitudes políticas concretas, eram inegavelmente progressistas e democráticas, mas do ponto de vista teórico seria possível a sua, para não dizer integração, aproximação ao marxismo? Sartre é dos que defendia que sim, Lukács um dos primeiros a sustentar que não.

19Não é nossa pretensão no presente trabalho, apresentar toda a complexidade do debate existencialista, portanto, optamos por priorizar dois autores marxistas que do nosso ponto de vista, ocuparam um lugar de destaque no debate entre existencialismo e marxismo, quais sejam, Lukács e Garaudy. Em relação a Lukács, utilizamo-nos do debate deste entre os anos de 1940 e 1960, mesmo sabendo que o autor avançou em seus posicionamentos n’A Ontologia do Ser Social. Quanto a Garaudy, o mesmo foi priorizado por ter sido um dos maiores interlocutores de Sartre, bem como o ideólogo oficial do Partido Comunista Francês no período em tela.

Em seu livro, Crítica da Razão Dialética, Sartre acusa o marxismo daquele contexto, bem como seus representantes franceses – nomeando também Lukács –, de estar esclerosado; de ser incapaz de apreender o particular; de esquemático, fácil, em suma, de “idealismo”. Contudo, sua análise baseia-se em esquemas preconcebidos (“idéias”) gerais e abstratos, ao invés de proceder, pela síntese de todas as mediações, à representação, como o faz Marx, do homem na sua vida concreta, do movimento de sua totalização (BRUNI, 1967).

Para Lukács, por seu turno, o existencialismo francês está20 definitivamente comprometido com certa camada social, e mesmo aparentando ser uma ideologia democrática e progressista, não pode conciliar-se, sob hipótese alguma, com o marxismo (BRUNI, 1967).

Ora, Questão de Método, escrito por Sartre, e Existencialismo ou Marxismo escrito por Lukács são, antes de tudo, escritos essencialmente polêmicos, e, portanto, não podemos esperar de seus autores a necessária imparcialidade, obrigatória numa análise rigorosamente científica. Assim, as discussões e os ataques muitas vezes situam-se em níveis diferentes e até opostos. Sartre, ao exigir dos marxistas instrumentos para a análise de situações particulares concretas e ao propor para tal procedimento seu próprio método, que seria diretamente fundado em Marx, aponta deficiências de natureza metodológicas. Lukács, ao querer apreender a significação do existencialismo como um todo, na sua generalidade, e não de cada existencialista em particular, refere-se ao conteúdo ideológico, próprio a certa camada social, num determinado momento da evolução da sociedade. Daí a rudeza das acusações mútuas e a mesma certeza de falar em nome de Marx (BRUNI, 1967).

Contudo, na história das relações entre as duas filosofias, Lukács tem-se mantido mais constante que Sartre. Aliás, o próprio Sartre reconhece que sua primeira posição continha contradições que o levaram continuamente a reformular suas idéias e se aproximar cada vez mais do marxismo (BRUNI, 1967).

Lukács assinala a diferença profunda que existe entre os dois existencialismos, o alemão, representado por Nietzsche, Heidegger, Jaspers, e Husserl, e o francês, representado principalmente por Sartre. O primeiro é, antes de qualquer coisa, a

20Importante esclarecer que em determinados momentos utilizaremos o verbo no tempo presente, já que estaremos reproduzindo o debate entre os autores, ocorrido na mesma época, qual seja, de meados da década de 1940 até a década de 1960.

filosofia da pura subjetividade, do isolamento, da distância de qualquer compromisso com a história e a sociedade, ideologia irracionalista típica dos intelectuais pequeno-burgueses do período entre-guerras. O existencialismo francês, por seu turno, demonstrou logo uma preocupação pelos problemas sociais e políticos, relacionando-se, de imediato, com o marxismo. Assim, quando se fala na polêmica existencialismo-marxismo, é antes ao existencialismo francês que se refere (BRUNI, 1967).

De acordo com Bruni (1967), Lukács indica a que preço pode haver essa aproximação e aparente compatibilidade entre existencialismo francês e marxismo: à custa da coerência do sistema. Vai demonstrar que a noção sartreana de liberdade sofre uma substancial modificação para servir de ponte para a ação política concreta e admite que Sartre e Merleau-Ponty mudaram suas posições políticas e filosóficas, no lapso de tempo que vai de 1938 a 1956, e que uma polêmica, localizada na década de 1960 levaria, sob vários aspectos, a resultados diferentes.

Sendo assim, Lukács (1967) afirma que o objeto do debate apresentado em seu texto é um problema ideológico próprio do estágio do imperialismo, portanto, como todos os problemas desta ordem, ele também remonta, quanto às suas origens, ao período consecutivo à Revolução Francesa. Num sentido mais geral, continua o autor, trata-se do choque de duas orientações do pensamento: de um lado, daquela que vai de Hegel a Marx, e de outro lado, daquela que liga Schelling (a partir de 1804) a Kierkegaard. Pôr em paralelo Marx e Kierkegaard era, certamente, um processo muito em voga na época em questão e filosoficamente indefensável, mas que se justificava por um pano de fundo muito real: a derrota do idealismo objetivo. Sua herança constitui o ponto de partida do debate entre a esquerda, isto é, a dialética materialista, e a direita, representada pelo existencialismo.

Segundo o autor, a derrota da revolução de 1848 foi seguida por um longo período de “segurança” econômica e política, graças ao empenho da burguesia. No plano da filosofia, esse período podia, portanto, satisfazer-se com um agnosticismo oscilante entre o “materialismo envergonhado” e o solipsismo.

Sendo assim, uma mudança dever-se-ia produzir somente no início do estágio do imperialismo. Uma oportunidade de salvar o idealismo filosófico aparecia, então, sob o aspecto desse “terceiro caminho”, que vai de Nietzsche até o existencialismo, e que consiste em se proclamar neutro também frente ao materialismo e ao idealismo, que se pretende ultrapassar, do ponto de vista da teoria do conhecimento.

É desta maneira que se constitui essa tensão particular que caracteriza a situação do pensamento nos anos de 1960: o idealismo objetivo, após sua derrota definitiva, sobrevive apenas sob o aspecto de mitos reacionários; o idealismo subjetivo, que perdeu suas perspectivas, encontra-se em plena retirada para o pessimismo; o materialismo antigo está ultrapassado. O grande combate da filosofia desenrola-se essencialmente entre o “terceiro caminho”, do qual o existencialismo representa a forma mais up to date, e o materialismo dialético (LUKÁCS, 1967).

Três principais grupos de problemas resultam desta situação histórica. No domínio da teoria do conhecimento, é a pesquisa da objetividade que domina; no plano da moral, tenta-se salvar a liberdade e a personalidade; do ponto de vista da filosofia da história, enfim, a necessidade de perspectivas novas se faz sentir no combate contra o niilismo. Entre esses três grupos de problemas, a ligação é muito estreita; filosoficamente, devemos resolvê-los juntos (LUKÁCS, 1967).

Diante deste quadro, o pensador sustenta que o problema dialético da relação entre o relativo e o absoluto não pode ser colocado corretamente e resolvido senão mais tarde, quando a consciência tivesse realizado o caráter histórico do conjunto da realidade e, antes de tudo, o caráter transitório do presente capitalista.

Criada por Hegel e colocada sobre fundamentos justos por Marx, somente a concepção da interpenetração mútua e da inseparabilidade do absoluto e do relativo pode trazer a solução dos três grupos de problemas. O problema da objetividade do conhecimento só é resolvido pela teoria dialética da consciência humana, que reflete um mundo exterior a existir independentemente do sujeito. É essa doutrina que responde ao problema colocado na teoria do conhecimento pela função da subjetividade (papel ativo do sujeito do conhecimento, em razão da unidade inseparável da teoria e da prática, e da situação histórica subjetiva no conhecimento da realidade) e o caráter absoluto de seu conhecimento, sem suprimir a objetividade do mundo exterior. A posição concreta, materialista-dialética da questão, ressalta, além disso, a função da subjetividade na História, enquanto função da atividade humana concreta, na evolução e auto-criação da humanidade. É assim que o problema da personalidade aparece como um elemento de uma sociologia histórica geral. Esta demonstra até nos seus detalhes mais sutis, os riscos, a

ameaça de aniquilamento que o capitalismo estende à personalidade humana, desde sua existência econômica até seus aspectos ideológicos mais matizados. Oferece, igualmente, em ligação íntima com essa descrição, soluções concretas (problemas da vida pública, crítica do particularismo individualista, enquanto sufocamento e mutilação da personalidade etc.). A liberdade humana aparece, então, em união dialética com a necessidade e não mais como o antípoda abstrato de uma necessidade inumana, fatalista e desprovida de vida (LUKÁCS, 1967).

Sendo assim, Lukács (1967) sustenta que o socialismo somente é possível sobre a base do materialismo dialético. A ligação desta filosofia com o socialismo reveste-se, portanto, de um caráter de necessidade essencial.

Ocorre o mesmo no campo oposto do pensamento: a resistência à epistemologia materialista e à dialética materialista está em ligação íntima com a resistência da ideologia burguesa ao socialismo. A contribuição nova consiste somente no fato de que a aprovação do socialismo em geral equivale a um aspecto preciso da oposição intelectual à perspectiva concreta e real do socialismo. Quanto mais essa aprovação se faz sob uma forma “elevada”, mais isso ocorre. E eis porque essa aprovação – se bem que ao preço de ecletismos e de contradições – pode revestir as formas atuais do idealismo filosófico (LUKÁCS, 1967).

É assim que o existencialismo aparece como a última variante – e também a mais evoluída – dessa oposição. Sua ontologia, baseada na fenomenologia, representa o cume e o aspecto mais extremo do “terceiro caminho” filosófico, próprio do estágio do imperialismo, conclui o autor.

No que concerne ao problema da personalidade e da liberdade, a burguesia tem um interesse vital em não considerar as ameaças que a estrutura da sociedade faz pesar sobre a personalidade, como um fenômeno próprio do capitalismo. Ao contrário, concorda em ver no socialismo o perigo principal. A burguesia considera instintivamente seu poder de exploração como fazendo organicamente parte de sua concepção da personalidade a da liberdade. A inteligência burguesa está, aliás, profundamente imbuída desse sentimento geral, que considera como a forma original da liberdade essa liberdade aparente, própria ao capitalismo, que concorda muito bem com a opressão total, inclusive com a prostituição da personalidade. É assim que se constitui uma concepção puramente formal e subjetiva da liberdade, em oposição com a noção de liberdade concreta e objetiva que nos legaram os antigos, assim como

Hegel e Marx. Nesse domínio, o existencialismo igualmente representa o cume da evolução burguesa, ainda que seus resultados sejam do tipo de um “terceiro caminho”

(LUKÁCS, 1967).

Dessa forma, Lukács (1967) conclui que o estágio do imperialismo dá origem a uma luta contra certos aspectos, sobretudo culturais, do capitalismo, que se identifica com a perspectiva do socialismo. Isto porque a grosseira demagogia do fascismo traçou um “terceiro caminho” da moral: capitalismo e socialismo são, aos seus olhos, idênticos.

No que diz respeito ao niilismo, este se acha estreitamente ligado a todas essas questões e, primeiramente, à tomada de consciência, que a evolução histórica tende cada vez mais a impor aos homens, do caráter transitório das bases de sua existência social e individual. É essa tomada de consciência, desprovida de toda perspectiva concreta e verdadeira, que dá nascimento ao niilismo. As perspectivas míticas, cuja eclosão maciça caracterizou o estágio do imperialismo, estiveram e permanecem, ainda, ligadas ao niilismo. Essas tendências são fáceis de constatar já em Nietzsche, atingindo seu ponto culminante na pretensa concepção do mundo do fascismo.

De acordo com Garaudy (1965), para as chamadas filosofias da existência, põe-se concretamente, praticamente, à humanidade, o problema de dar uma significação e um valor à existência humana, de decidir se vale a pena continuá-la ou se devemos interrompê-la. Nesta nova conjuntura, nossa existência depende de nossa decisão. Neste contexto, diz o autor, não é mais o destino de somente um homem ou um grupo de homens que está posto em questão, é o da humanidade inteira, sendo, portanto, sua existência dependente de sua decisão. Para demonstrar este quadro, Sartre afirma:

A humanidade inteira, se continuar a viver, não será simplesmente porque nasceu, mas porque terá decidido prolongar sua vida. Não mais existe espécie humana. A comunidade que se fez guardiã da bomba atômica está acima do reino natural, porque é responsável por sua vida e por sua morte; a cada dia, a cada minuto, será preciso que consinta em viver. Eis o que experimentamos hoje, na angústia (Sartre apud Garaudy, 1965, p.4).

No plano ideológico, a necessidade social do nascimento dos mitos explica-se pela incapacidade dos pensadores de romper radicalmente com as sobrevivências teológicas da filosofia, e o existencialismo não soube vencê-las. O ateísmo de Heidegger e de Sartre é tão religioso quanto o de Nietzsche; o horizonte religioso, que se forma assim, aproxima-se perigosamente de todos os mitos modernos. Dessa forma, o existencialismo leva, portanto, a marca do mesmo niilismo espontâneo de toda ideologia burguesa moderna, e não pode superar esse abismo senão à custa de um certo ecletismo. Não há mais quietismo possível da ciência e da técnica, posto que a vida humana necessita de uma justificação; o poder do homem coloca os problemas últimos, o problema da escolha, o da liberdade e o dos fins. O desenvolvimento da técnica pôs ao homem este problema nascido de seu próprio poderio: a existência do homem depende de sua própria decisão, e a filosofia viva arrogou-se a tarefa de elucidar esta decisão. O existencialismo, a meditação católica, o marxismo, extraem daí sua razão de ser, e mensuram nesse problema o seu valor de verdade, afirma Garaudy (1965).

Para os marxistas o problema é mais complexo do que poderia dar a entender, porque não existe uma técnica que colocaria questões a uma humanidade única, reconciliada consigo mesma. Nosso mundo é uno, mas é um mundo dilacerado. É uno porque o desenvolvimento da técnica e da produção engendrou um mercado mundial, a economia de um mundo fechado no qual o destino de cada homem depende do de todos os outros, fazendo com que as crises se tornassem mundiais, bem como as guerras (GARAUDY, 1965).

Contudo, esta interdependência universal não é uma solidariedade universal, sendo feita de contradições e de conflitos. A universalidade só se exprime concretamente porque todas as lutas se desenvolvem em escala planetária: as lutas de classe, as lutas nacionais, as lutas ideológicas. Em tal contexto, nenhum conflito tem caráter regional; nenhuma responsabilidade tem caráter limitado; nenhuma liberdade é solitária; a responsabilidade é pessoal, ninguém pode furtar-se a ela (GARAUDY, 1965).

Diante deste quadro, a matéria-prima da filosofia francesa consiste no conjunto de experiências comuns a todos os homens dos últimos trinta anos (lembrando que o mesmo escreve nos anos de 1960). A história desta filosofia é a história das perspectivas do homem; é a história dos ensaios do pensamento para se orientar nas contradições de nosso tempo e para encontrar a saída, a forma de superá-las. O ponto de partida é a grande crise de 1929, com a produção mundial e o comércio caindo, gerando cerca de trinta milhões de desempregados. As contradições exasperadas entre os homens em concorrência, entre as classes em conflito, entre as nações rivais, a dúvida e a discussão acerca de uma prosperidade que se revelava momentânea e artificial, de regimes, de legalidades e de valores até então incontestados e a consciência de que culturas e civilizações podem ser mortais (GARAUDY, 1965).

Desta exasperação dos antagonismos, desta polarização das forças humanas nasceu o fascismo, com seu exclusivismo racial, com sua apologia da violência, do terror e da guerra, com sua pretensão de negar os valores e a realidade mesma do indivíduo e da pessoa, em proveito de um Estado com soberania sobre as consciências, com sua exaltação da vontade de poder e da expansão de uma raça eleita, com sua filosofia do desespero e do irracional, aponta o autor.

Em contrapartida, no leste da Europa desenvolvia-se outra realidade, que colocava novos problemas. A existência do socialismo aguçava as contradições: as econômicas, rompendo a unidade do mercado mundial; as políticas, avivando ao mesmo tempo as esperanças e os temores; as do espírito, afirmando um otimismo sem limites em relação ao poder e aos destinos do homem, colocando um desafio materialista aos idealismos e espiritualismos (GARAUDY, 1965).

Sendo assim, a experiência vivida dos filósofos de nosso tempo é feita disso e dos acontecimentos destes grandes conflitos humanos em que o mundo se vê dividido em dois, e a classe operária apresenta sua candidatura à hegemonia política e espiritual e neste contexto, as duas guerras mundiais exerceram uma influência determinante sobre a formação e o desenvolvimento das filosofias da existência. Em primeiro lugar contribuíram para obrigar todas as filosofias – existencialismo ateu, filosofias cristãs, marxismo – a serem

filosofias da existência, porque os fundamentos da existência humana estavam recolocados em questão e a resposta não podia ser adiada. Não há filosofia contemporânea viva que não traduza esta situação do homem, de todos os homens, entregues a conflitos universais, a destinos desconhecidos e diante da ameaça permanente da morte, numa angústia generalizada (GARAUDY, 1965).