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BEAUVOIR: VIDA E OBRA

2.4 REFLEXÕES SOBRE SER MULHER E VINCULAÇÃO COM O EXISTENCIALISMO

esconder seus ciúmes de Sartre. Todavia, o tema do amor persiste como o principal interesse da sua literatura de ficção (APPIGNANESI, 1988).

2.4 REFLEXÕES SOBRE SER MULHER E VINCULAÇÃO COM O

A experiência da guerra trouxe, portanto, não apenas para Beauvoir, mas para Sartre um sentido de responsabilidade e de solidariedade, que são as duas questões fundamentais da moral existencialista. Ambos já não viam suas situações isoladamente, percebendo que a salvação individual deles dependia da salvação do país como um todo, e só a ação permitiria transcender a situação geral. Esta postura, adotada tanto por Sartre quanto por Beauvoir, representou, de acordo com ambos, uma grande mudança de atitude já que, até então eles levavam a vida distante da ação política (APPIGNANESI, 1988).

Em 1941, Sartre e Beauvoir formaram um núcleo sob o lema Socialismo e Liberdade, composto de escritores e intelectuais, cujo objetivo era o de reunir e disseminar notícias, e, em médio prazo, formando um poolde idéias, debates e pesquisas, o grupo esperava construir um programa de esquerda. O núcleo, contudo, teve pouco êxito, comparando-se com o trabalho de resistência ativa no interior da França, liderado pelos comunistas, cuja máquina, bem disciplinada, lhes permitia organizar uma ação eficaz.

Os comunistas não confiavam em Sartre e em Beauvoir por eles não terem se filiado ao partido antes da guerra, apesar de certa simpatia com o objetivo final de derrubar a burguesia. Por outro lado, Sartre, e mais particularmente Beauvoir, embora preparados para trabalhar com os comunistas, não estavam dispostos a compartilhar de todo sua sorte com eles.

A atitude do casal, para com o Partido Comunista era ambivalente como a de muitos intelectuais de esquerda e assim permaneceria no pós-guerra. Não aceitavam que a linha do Partido lhes fosse imposta, sobretudo em matéria intelectual, bem como não aceitavam a política de Stálin, interna e internacional, e eram classificados pelo Partido como individualistas, ou intelectuais pequeno-burgueses. Contudo, como resultado de sua bem-sucedida organização da Resistência, os comunistas constituíam, na França, o maior agrupamento da esquerda e eram, portanto, uma força que devia ser levada em conta, e Sartre esteve pronto, em vários momentos, para juntar-se a eles, diferente de Beauvoir. Esta dança política, de dois passos para frente, em direção ao Partido Comunista, e dois passos para trás, é um dos temas do romance de Beauvoir intitulado Os Mandarins (APPIGNANESI, 1988).

No que se refere a sua produção intelectual, o primeiro romance de Beauvoir foi publicado em 1943 e depois desta publicação, começou uma das fases mais produtivas da sua vida. Em 1945, publicou O sangue dos outros, que foi aclamado como o grande romance existencialista da Resistência.

Sartre, por seu turno, publicou, em 1943, O ser e o Nada, e com isto ambos alcançaram uma posição de relevo no mundo intelectual francês. O existencialismo, uma palavra cunhada, a rigor, pelo filósofo Gabriel Marcel, e não por Sartre, para o conjunto de idéias que a obra de Sartre e Beauvoir corporificava, estava lançado. No fim da guerra, ambos já haviam ganhado tanta notoriedade que se viram, subitamente, no papel de figuras públicas (APPIGNANESI,1988).

O existencialismo definia uma moral que recusava e punha em dúvida todas as normas convencionais e os valores consagrados, as estruturas da sociedade e do Estado, e que a “salvação” não viria dos domínios celestes, nem de qualquer ideologia “pré-fabricada”. Sendo assim, a sensação de angústia poderia resultar desta constatação, pois ela deposita totalmente a responsabilidade pela vida nas mãos dos homens, e estes devem assumir esta responsabilidade, exercendo sua liberdade. Vale destacar a assertiva de Beauvoir em seu livro Por uma Moral da Ambigüidade, a respeito do exercício da liberdade:

O homem não é uma pedra nem uma planta e não pode, complacentemente, justificar-se pela sua simples presença no mundo. O homem só é homem por sua recusa em permanecer passivo, pelo vigor com que se projeta do presente para o futuro e se orienta para as coisas, a fim de dominá-las e dar-lhes forma.

Para o homem, existir é refazer a existência. Viver é a vontade de viver. (Beauvoir apud Appignanesi, 1988, p.76)

Sendo assim, o existencialismo abriu um leque de possibilidades para a juventude do pós-guerra, ao afirmar que, o que distingue o homem dos animais, o que rompe o ciclo da repetição biológica inexpressiva,é a luta para inventar o futuro, para moldá-lo. O existencialismo sustenta que aspiração e

atividade nos definem e nos libertam, embora essa liberdade apenas se possa manter através de uma luta perpétua por liberdades sempre maiores. O homem, segundo o existencialismo, é livre, mas sua liberdade só é real e concreta na medida em que ela se engaja, ou seja, se ela tende a um objetivo e age no sentido de realizar alguma mudança no mundo; é pelo seu projeto no mundo que o homem se realiza em plenitude, e o homem só é livre quando se propõe um alvo concreto e age para realizá-lo, sendo que um alvo só será real se escolhido livremente (APPIGNANESI, 1988).

Em Por uma Moral da Ambigüidade, Beauvoir escreve que a vida só ganha sentido pela ação e que a condição humana é paradoxal: o homem é um animal nascido para morrer, mas é, também, um ser único, individual e consciente, com aspirações. Essa sua consciência, porém, continua Beauvoir, é isolada, um indivíduo sujeito apenas a si mesmo, num mundo de outros e no seio da coletividade da qual o homem depende, ele seria, portanto, um mero objeto (APPIGNANESI, 1988).

Com as atrocidades da guerra ainda fortes na memória, Beauvoir deu relevo ao fato de as pessoas estarem mais do que nunca conscientes da ambigüidade de sua condição:

Elas se reconhecem como o objetivo supremo para o qual toda ação deve estar subordinada. Mas as exigências da ação as levam a tratar umas às outras como obstáculos ou meios. Quanto maior for o seu domínio sobre o mundo, tanto mais elas se sentem vítimas de forças incontroláveis. O homem é senhor da bomba atômica, mas ela foi, não obstante, criada para destruí-lo... Talvez em nenhuma outra época o homem tenha manifestado tão brilhantemente a sua grandeza, e em nenhuma outra essa grandeza foi frustrada de maneira tão atroz (Beauvoir apud Appignanesi, 1988, p.77)

Sendo assim, é no meio dessas contradições que a moral do existencialismo proclama a necessidade de autenticidade nas ações humanas, ações não distorcidas por deveres ditados para com o Estado ou a família, mas fundadas numa escolha individual, responsável e consciente. O princípio do

existencialismo consiste em reconhecer “o horror” da condição geral e particular, e transcendê-lo, assumindo a responsabilidade pela nossa liberdade.

Por mais difícil que seja, essa luta pela liberdade individual deve levar em conta, de acordo com o existencialismo, a liberdade de outros, e negar esta luta a outros é oprimi-los. Por outro lado, rejeitar a luta para si mesmo, fugir da angústia da escolha e reverter a sujeição das condições existentes é cair na má fé, que consiste no principal pecado do universo existencialista (APPIGNANESI, 1988).

Ao contrário de Sartre, que articulou um sistema filosófico desenvolvido, Beauvoir escreveu apenas dois ensaios e poucos artigos sobre o existencialismo, mas sua obra de ficção dá realidade humana à filosofia e explora os dilemas confrontados pelos indivíduos na tentativa de fazer escolhas morais.

Beauvoir, em um período que ela denomina como sua fase moral, tratava da relação entre experiência individual e realidade universal, mostrando a importância da idéia de situação, que Sartre introduziu em O Ser e o Nada.

Em entrevista concedida em 1982, a filósofa revelou estar discutindo com Sartre, naquele momento, a respeito d’O Ser e o Nada, e afirmou discordar de algumas de suas idéias. Na entrevista, ela continua afirmando que na primeira versão de O Ser e o Nada, Sartre falava da liberdade como se ela fosse total para todas as pessoas, ou, pelo menos, que fosse possível a todos exercer a sua liberdade. Beauvoir, por seu turno, insistia no fato de que há situações nas quais não se pode exercer a liberdade ou nas quais a liberdade não passa de mistificação (FRANCIS e GONTIER, 1986).

Sendo assim, Beauvoir sustentava que, uma vez que o homem vive, é preciso que ele dê um sentido à sua vida, que as possibilidades concretas que se oferecem às pessoas são desiguais, e que uma atividade só seria legítima quando visasse conquistar para si e para os outros a liberdade. Beauvoir afirma que gostaria de conciliar a sua concepção com a de Sartre, contudo, segundo este:

[...] um escravo, mesmo nas suas correntes, é livre, pois pode escolher querer quebrar essas correntes ou querer continuar escravo. Se ele se quer livre, escolheu para si um passado de homem livre por natureza, injustamente escravizado; se escolheu continuar escravo, escolheu um passado de escravo por natureza, pela vontade de Deus, em virtude da ordem social imutável etc (Sartre apud Francis e Gontier, 1986, p.299)

Diante desta concepção de liberdade, Beauvoir argumentava que o prisioneiro numa cela e a mulher num harém não podiam escapar à sua situação pela escolha de uma liberdade apenas mental.

Há entre as feministas um medo em admitir a liberdade individual, mesmo com graves restrições, o que tornou quase tabu, por exemplo, considerar esposas maltratadas como cúmplices, pois, como elas sustentavam, tal posicionamento culpabilizaria a vítima. É claro que as mulheres não são responsáveis pelos maus empregos dos seus maridos, graves hábitos de beber ou disposições psicológicas. Mas, no interior da opressão e coerção, da dependência econômica das mulheres, da pequenez física, da sua preparação para padrões baixos de felicidade e bem-estar, elas continuam tomando todos os tipos de decisões sobre as suas vidas, inclusive decisões estratégicas.

Beauvoir acredita que, apesar das circunstâncias restringirem a autonomia de uma pessoa em optar por ações e reações, é má fé livrar esta pessoa de toda a responsabilidade e do poder de decisão. Sendo assim, negar à mulher maltratada sua participação ativa em sua situação é somente uma forma sutil de desrespeito (ASCHER, 1991).

Sendo assim, o fim da II Grande Guerra encontrou Sartre e Beauvoir não mais à margem da vida intelectual, literária e política da França, como aspirantes a escritores, mas no seu próprio centro. Os princípios socialistas e comunistas, que estavam sempre muito próximos do anarquismo de esquerda de Sartre e Beauvoir, mas que eles viam, antes da guerra, como uma ameaça à sua individualidade, passou, neste momento, a se lhes afigurar como a única esperança de instituir os princípios democráticos em que ambos acreditavam (APPIGNANESI, 1988).

A maneira encontrada por Beauvoir e Sartre para contribuir com o socialismo era a criação de uma revista, o que fizeram em fins de 1944. A revista chamada Les Temps Modernestinha como equipe os próprios Beauvoir e Sartre, bem como Merleau-Ponty e Raymond Aron, e permaneceu no centro da vida intelectual francesa por vinte e cinco anos, tomando posições radicais e de esquerda nas frentes nacionais e internacionais (APPIGNANESI, 1988).

Com o lançamento da revista, o existencialismo ganhou grande visibilidade, e Sartre foi coroado o “papa do existencialismo”, bem como Beauvoir a “Nossa Senhora de Sartre”, e apesar de ter-se tornado um ídolo para a juventude, ela era considerada pela imprensa católica como louca,

“campeã do amor livre”, e “fornecedora de uma variedade de vícios”.

Em 1945 Sartre proferiu palestra a respeito de um de seus principais artigos, intitulado O Existencialismo é um humanismo? Nesta ocasião, esclareceu que apesar de a palavra existencialismo estar na ordem do dia, poucas pessoas conheciam seu significado, e que estava surpreso em perceber que alguns costumavam atribuir uma conotação de decadência ao existencialismo. Dentre outras afirmações, destacou que o existencialismo não era uma filosofia pessimista nem negativa, mas que afirmava a inexistência de Deus e a capacidade do homem de se criar. Afirmou não existir uma natureza humana ou uma essência a priori, ou seja, não nascemos covardes ou preguiçosos e sim escolhemos ser essas coisas. Rowley (2006) destaca as próprias palavras de Sartre: “O homem é responsável pelo que é... Somos sozinhos, sem desculpas. É isso o que quero dizer quando digo que o homem está condenado à liberdade” (Sartre apudRowley, 2006, p.188).

Igualmente importante, a liberdade para a mulher, segundo Beauvoir, significa compreender que nada é dado ou natural na sociedade humana.

Nosso mundo foi feito por pessoas, nós, e é resultado de milhões de opções e estratégias de seres humanos durante séculos e séculos, mas, a qualquer momento, podemos optar por mudá-lo. O que fazemos por hábito resulta em manter a sociedade do jeito que ela está, ou deixá-la mudar automaticamente, por meios sobre os quais não estamos inteirados. Mas, cada novo comportamento consciente, cada um deles pretendendo mudar o nosso modo

de ser no mundo, faz parte de como nós podemos efetuar ativamente a mudança. A idéia de liberdade de Beauvoir, portanto, implica a responsabilidade; uma criança ou um escravo, como ela argumentou, pode não saber que as coisas poderiam ser diferentes, e por isto não têm os instrumentos para a libertação. Muitas pessoas, porém, inclusive as mulheres na sociedade ocidental, dispõem de uma boa porção de conhecimento de como poderiam tomar a liberdade em suas próprias mãos, mas há com freqüência, preguiça e timidez na resignação delas, sendo sua honestidade incompleta (ASCHER, 1991).

Sartre continuou afirmando que se muitos não gostavam dessa filosofia, era porque preferiam arranjar desculpas para si mesmos, dizendo que as circunstâncias estavam contra eles. Estas pessoas estavam se enganando a respeito de sua liberdade e, portanto, estavam agindo de má fé. Sartre afirmava, portanto, que o existencialismo não tratava de possibilidades ou intenções, mas de projetos concretos, e sustentava que ninguém era um gênio a não ser que expressasse sua genialidade, e disto extraiu a afirmação que se tornou o lema do existencialismo: “a existência precede a essência” (ROWLEY, 2006).

De acordo com Sartre, a existência não se demonstra, ela está aqui, impõe-se à consciência; para justificar a sua existência e dar um sentido à sua vida, o homem, nascido para nada, não pode contar senão consigo mesmo.

Sartre admite que o homem está cercado por um conjunto de condições históricas e materiais que definem a sua situação, contudo, cada um deve, segundo o autor, viver a sua própria existência e construir-se recorrendo às suas próprias forças. Tanto para Sartre quanto para Beauvoir, o homem está entregue a si mesmo e não pode esperar nenhum auxílio, nem do céu, nem de uma doutrina já pronta, e disso resulta “a angústia”, que é a consciência da nossa total e profunda responsabilidade. Segundo o existencialismo, cada um deve assumir esta responsabilidade exercendo a sua liberdade, e quando um ser se abriga por trás das tradições, das doutrinas, dos sistemas e das

ideologias, ele se torna um desonesto, pois se recusa a assumir12, caindo na má fé. O oposto da má fé seria a autenticidade; o ato autêntico é aquele pelo qual o homem assume a sua situação e a supera agindo; os seus atos, uma vez realizados, o definem, ou seja, o homem é aquilo que ele faz a si mesmo, e é constantemente confrontado com novas escolhas, pois a vida é um perpétuo vir-a-ser (FRANCIS e GONTIER, 1986).

Sartre define autenticidade como sendo a escolha feita plena e completamente seja qual for a restrição. O filósofo, então, descreve a autenticidade como consistindo no fato de o indivíduo ter uma verdadeira e lúcida consciência da situação, em assumir responsabilidades e riscos que ela envolve, em aceitá-la com orgulho e humildade. O problema é que a liberdade gera ansiedade em todos os seres humanos, ou seja, lado a lado com uma autêntica demanda por liberdade, se coloca um desejo inautêntico pela resignação e pela fuga. A última é particularmente forte entre as mulheres, ensinadas desde a mais tenra idade a querer a passividade e a inconseqüência, e a temer a liberdade dos atos, o que faz uma significativa diferença no mundo (ASCHER, 1991).

Diante deste quadro, o existencialismo13 suscitou a animosidade dos católicos, de uma parte, e dos marxistas da outra. Acusava-se o existencialismo de corromper a juventude e também de quietismo, de decadência e de desprendimento das alegrias e deveres da existência.

Beauvoir tomava a defesa do existencialismo contra os que o qualificavam de filosofia do desespero, afirmando que os homens temem, acima de tudo, as responsabilidades, tendo tanto medo de comprometer a sua liberdade que preferem renunciar a ela. A filósofa define o homem pela ação e o carrega de responsabilidades, afirmando que o homem não se explica apenas pelo seu comportamento, mas pelas suas relações com os outros e

12Francis e Gontier (1986) destacam o que Sartre entende por assumir: “Segundo o filósofo, assumir não significa de maneira nenhuma aceitar, ainda que, em certos casos, os dois sentidos se equivalham.

Quando assumo, assumo para fazer um uso determinado do que eu assumo [...] além disso, assumir significa tomar por sua conta, reivindicar a responsabilidade [...] a primeira assunção, que pode e deve fazer a realidade humana voltando para si mesma, é a assunção da sua liberdade, o que se pode exprimir por esta fórmula: não se tem nunca desculpa [...]”

13 De acordo com Francis e Gontier (1986, p.320), o jornal de direita Le Figaro, na França, afirmou na década de 1940, os ancestrais do existencialismo: Kant, Pascal, Heidegger, Jasper, Kiekegaard, Schelling, Gabriel Marcel.

com o mundo. Afirma ainda que todo homem é livre, mas sua liberdade só é real e concreta na medida em que ele está comprometido, em que tende para uma finalidade e se esforça para realizar algumas mudanças no mundo (FRANCIS e GONTIER, 1986).

O ensaio filosófico intitulado Por uma Moral da Ambigüidade teria sido escrito por Beauvoir para responder aos detratores do existencialismo. Neste texto, ela defende o existencialismo contra os que o tratam de filosofia niilista, miserabilista, frívola, licenciosa, desesperada, ignóbil. Beauvoir tornava-se cada vez mais sensível à existência das massas e à noção de engajamento e de autenticidade; ela qualificava de irresponsáveis os escritores que acreditavam na arte pela arte, e queria transformar a condição social do homem, bem como a concepção que ele tinha de si mesmo. Em suas palestras, Beauvoir declarava que o escritor devia reconhecer a sua responsabilidade em face dos seus leitores e punha em relevo o poder da literatura como força política e moral atuante. Para ela, o essencial era comunicar-se com o grupo social ao qual pertencia o futuro, o que era formado pelas massas que já haviam aceitado a ideologia marxista, e os existencialistas tinham como finalidade incitar o público a refletir sobre a liberdade, a esperança e o amor fraternal. Declarava que o escritor era moralmente obrigado a tomar partido e a engajar-se nas lutas mundiais (FRANCIS e GONTIER, 1986).

O livro de Sartre, intitulado O Ser e o Nada, alcançou grande visibilidade em torno de 1945, mas os comunistas diziam que Sartre era niilista, que “se espojava no nada”, e os conservadores, por seu turno, o viam como ímpio e depravado (ROWLEY, 2006).

No livro de memórias de Beauvoir, intitulado A Força das Coisas, a autora deu uma guinada, ao passar a considerar o poder, que nos volumes de memórias anteriores estava concentrado nela mesma, como indivíduo, passando a atribuir às circunstâncias que a pressionam. Neste volume de memórias está presente o caráter implacável dos acontecimentos históricos que se encontram além do controle dos indivíduos. Se em suas primeiras memórias estão presentes o seu gosto pela vida e pelos empreendimentos

pessoais, este livro inicia com uma Beauvoir envergonhada por ter sobrevivido à guerra, sendo, portanto, o trabalho, perpassado por sua crescente preocupação com os problemas do mundo. Está presente neste livro o pesar e o furor de Beauvoir ao compreender de que forma os horrores políticos e sociais tolhem as pessoas, restringindo-lhes a liberdade. Qualquer que tenha sido a influência de um sobre o outro, tanto Beauvoir quanto Sartre mudaram suas visões sobre liberdade individual nesse período (ASCHER, 1991).

Beauvoir em seus primeiros escritos acreditava que a decisão a favor da liberdade poderia ser uma questão de escolha individual – uma conversão rápida. Alguém precisava somente chegar à compreensão da falsidade da própria vida e mudar a direção. Contudo, após a II Guerra Mundial e os anos de Guerra Fria, Beauvoir modificou sua opinião para incluir uma idéia mais concreta das forças sociais. Em Por uma moral da ambigüidadee n’O Segundo Sexo, ela desenvolveu idéias de opressão, por um lado, e de libertação, por outro. A transcendência seria o movimento do indivíduo projetando-se para a liberdade, mas quando a transcendência é condenada a cair inutilmente de volta a si mesma, por ser impedida de atingir os seus alvos, isto é o que define uma situação de opressão. Para o oprimido, portanto, nenhum ato de conversão radical seria possível, uma vez que outros o afastam dessa liberdade. Desse modo, ao oprimido resta somente uma solução: negar a harmonia desta humanidade, da qual é feita uma tentativa para o excluir, de provar que ele é um ser humano e que é livre revoltando-se contra os tiranos.

Este ato social para a liberdade seria a libertação (ASCHER, 1991).

Diante deste quadro, para Beauvoir, na melhor das hipóteses, o opressor se converte e há uma reconciliação de todas as liberdades, e esta esperança instrui O Segundo Sexo, no qual ela estava parcialmente se reportando aos homens com a idéia de que eles facilitariam o caminho para a mudança. Posteriormente, à medida que o movimento das mulheres lhe deu uma idéia mais clara de como o processo da conversão do homem pode ocorrer, sua opinião se tornou mais concreta quanto a que comportamentos e atitudes estes tomariam, e em 1975, respondeu a um homem que acabara de indagar-lhe se melhorando o seu linguajar, lavando pratos e prestando atenção

às mulheres em discussões grupais, significaria ser ele menos sexista em seus pensamentos:

Você quer dizer dentro de si mesmo? Para ser grosseira, quem se importa? Pense por um minuto. Você conhece um racista sulino.

Você sabe que ele é racista porque você o conhece durante toda a sua vida. Mas agora ele não diz mais “negrinho”. Ele ouve toda a queixa dos pretos e tenta fazer o melhor ao tratar com eles. Ele sai do seu caminho para amansar outros racistas. Ele insiste em que crianças negras recebam uma educação acima da média para superar os anos de sua educação. Ele dá referências para os pedidos de empréstimo dos pretos. Ele apóia os candidatos negros em seu distrito, tanto com dinheiro quanto com o voto dele. Você acha que os pretos se importam que ele seja, em sua alma, tão racista como antes? Boa parte da exploração objetiva é a força do hábito. Se você pode conferir os seus hábitos, fazendo com que seja natural ter melhores hábitos, terá dado um grande passo. Se você lava pratos, limpa a casa, e toma atitude que não o faça sentir-se menos homem por fazê-lo, estará auxiliando a criar novos hábitos.

Há duas gerações sentimos que eles têm de parecer não-racistas a qualquer momento, e a terceira geração crescerá de fato como não-racista. Portanto, finja não ser sexista e continue a jogar. Pense nele como num jogo. Em seus pensamentos íntimos, vá em frente e pense sobre você mesmo como superior às mulheres. Mas desde que você não jogue convincentemente – que você continue a lavar pratos, fazer compras, limpar a casa, tomar conta das crianças – você estará estabelecendo precedentes. (Beauvoir apud Ascher, 1986, p.274)

Diante desta citação, é possível afirmar que a abordagem de Beauvoir é extremamente concreta e racional; o jovem com quem falou aprendeu o que é certo, ele é, portanto, responsável pela alteração do seu comportamento, e não optando por fazê-lo estaria evadindo, usando de má fé. Quanto aos seus sentimentos mais profundos sobre as mulheres, “quem se importa?” Como uma pessoa política, Beauvoir não estava particularmente preocupada sobre as hostilidades inconscientes que possam brotar vingativamente por ter sido “bom”

ou não ter agido como um “homem” (ASCHER, 1991).