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BEAUVOIR: VIDA E OBRA

2.7 A PRODUÇÃO DAS MEMÓRIAS

Como sinaliza Ascher (1991), em todos os livros de memórias, Beauvoir sustentou que escrevia sobre sua vida tanto para se deixar conhecer pelos outros de uma maneira que, ela mesma, não se conhecia, quanto para iluminar seus outros livros, pois segundo o seu pensamento, só se poderia compreender um trabalho literário dentro do contexto da vida e da época do escritor, e afirmou:

Devo confessar que as gerações vindouras têm uma grande vantagem sobre mim. Elas compreenderão minha época, enquanto que minha época não se compreende a si mesma: saberão muitas coisas que não sei; minha cultura e minha visão de mundo parecerão ultrapassadas aos seus olhos. À parte algumas grandes obras capazes de resistir ao tempo, irão desprezar tudo quanto me serviu de alimento. (Beauvoir apud Ascher, 1991, p. 71)

Beauvoir começou a escrever sua autobiografia aos 48 anos de idade.

As memórias de uma moça bem comportada foi publicada dois anos depois.

Nesta narrativa, Beauvoir conta a história de sua infância católica, de sua adolescência, rebelião e mocidade, até seu encontro com Sartre e a morte de Zazá. Em 1960, publicou A força da idade18, em que registrou o começo de sua vida com Sartre, seu aprendizado literário, a publicação de seu primeiro romance, e os angustiantes anos da II Guerra Mundial, que deram nascimento ao existencialismo e à ética do engajamento, dela e de Sartre. A força das coisas foi publicada em 1963 e conta o período da guerra fria, da guerra da Argélia e os anos de ativismo político. Houve então um longo intervalo, até 1972, quando Beauvoir publicou o último volume, Balanço Final, no qual ela abandona sua estrutura cronologicamente descosida e recapitula toda a sua vida, só então focalizando os conjuntos temáticos que a preocuparam e formaram a história de sua vida nos últimos anos. A autora destaca que o objetivo de Beauvoir, ao escrever essa monumental autobiografia que deve ser considerada uma das suas principais realizações, foi fazer-se existir para os

18Em toda a extensão de suas memórias, Beauvoir faz alusões ao que, para ela, significa ser mulher, e em A força da Idade, ela observa que, tendo recebido uma “educação de moça”, teve, de muitas formas, as reações desse tipo de mulher. Diz combinar com ela o fato de viver com um homem que ela considerava como superior a ela; suas ambições, apesar de teimosamente mantidas, eram ainda tímidas, e apesar dos assuntos públicos a interessarem, não os considerava como uma preocupação dela (ASCHER, 1991).

outros, dando-lhes a provar, tão diretamente quanto pôde, o gosto de sua própria vida. Juntos, continua a autora, esses quatro volumes de peso, repletos de pormenores históricos, culturais e pessoais, constroem uma vida que é tão importante como o projeto d’O Segundo Sexo, ou qualquer dos livros de ficção de Beauvoir (APPIGNANESI, 1988).

É possível afirmar que as memórias de Beauvoir, a história de sua vida, inevitavelmente repercutiram em sua vida real. Ela recebeu muitas cartas, nas quais algumas leitoras estavam agradecidas e outras furiosas, umas desejavam que ela tivesse contado mais; outras, que tivesse contado menos.

Havia queixas constantes de distorções e deformações, e as mulheres que foram os casos contingentes de Sartre ficaram irritadas por terem sido relegadas ao segundo plano, como se não tivessem um papel importante na vida dele. Para quem conhecia o “clã” sartreano, era evidente, diz a autora, que Beauvoir estava assumindo o controle da imagem pública, ao contar a história do seu jeito. Não que ela passasse por cima de todos os episódios angustiantes do passado, mas o ato de escrever lhe dava um poder imenso, e ela afirmava em público a sua primazia entre as mulheres de Sartre. Acima de tudo, o tom e a perspectiva da narrativa criavam o efeito de controle, e ela olhava para seu passado de uma posição triunfal (ROWLEY, 2006).

A autobiografia é, tradicionalmente, uma prerrogativa mais do homem que da mulher, e do homem de ação mais que do homem de letras, e, portanto, as memórias de Beauvoir gozam, assim, de uma singularidade: a de isolar e identificar sua marca registrada de feminilidade. A tarefa de revelação do autor de uma autobiografia é, também, simultaneamente, um trabalho de reconstituição imaginativa, no qual as muitas faces e os muitos momentos do eu assumem a unidade, mesmo que descontínua, de uma narrativa. O passado se torna, aqui, um inevitável aprendizado do presente e os interesses atuais assinalam e acentuam intenções passadas e, ocasionalmente, deixam-nas de lado, e Beauvoir, com toda a sua ênfase na verdade e sinceridade do seu empreendimento, não poderia ser uma exceção à regra. Ela mesma sabe, afirma a autora, que o trabalho da memória é um trabalho de criação, que dota a experiência de necessidade artística (APPIGNANESI, 1988).

Sendo assim, a autobiografia de Beauvoir cria uma vida modelo para uma heroína, que é ela mesma. A figura que emerge das memórias é uma mulher que realizou a ambição de sua infância de conhecer e escrever tão honestamente quanto possível; uma mulher que reivindicou com êxito sua liberdade, que transcendeu a condição subalterna da mulher como Outra para tornar-se uma pessoa, e se engajou na vida responsável e comprometida de uma intelectual engajada. A impressão que se tem é de que as rebarbas foram alisadas, que as contradições internas não foram, de todo, enfrentadas e resolvidas, tais como questões que dizem respeito à sexualidade, ansiedades, crises de depressão profunda, tudo sendo tratado de maneira evasiva, como de resto a questão da feminilidade de Beauvoir, de maneira geral (APPIGNANESI, 1988).

De acordo com Appignanesi (1988), paralelamente à genuína admiração, a irritação por vezes gerada pela autobiografia, com sua calma autoridade, tem por base duas características da obra, estreitamente relacionadas. A primeira, diz a autora, é que Beauvoir se critica apenas na medida necessária para frustrar qualquer outra crítica; ela é rápida na análise e no ataque de suas próprias ilusões; o otimismo de A força da idade é atribuído a uma falsa noção de liberdade escorada no privilégio burguês. Em segundo lugar, Beauvoir chama a atenção, honestamente, para a sua cegueira e seus ciúmes apenas para passar rapidamente por cima deles, deixando-os, a rigor, inexplorados. Em nenhuma outra questão isso fica tão claro quanto na identificação da própria feminilidade, que ela diz jamais ter estado em causa, afirmando que não negou sua feminilidade mais do que a deu por certa, simplesmente ignorando-a.

De muitas formas em sua autobiografia, Beauvoir continua a ignorar a sexualidade, talvez, por causa de sua idade. Ao tempo em que ela começou a autobiografia e, principalmente, ao tempo em que atingiu as seções que constituem os dois volumes do meio, ela já era uma mulher idosa, cujos pensamentos já estavam menos concentrados na sexualidade, relações com homens, ou sua própria feminilidade, e mais no envelhecimento, na doença e na morte. Os excessos e ambigüidades que seriam de esperar velaram-se pelo hábito da razão e da sensatez que são agora o clima de Beauvoir. Os extremos

de uma paixão individual antiga parecem tão embaraçosos, que são tratados a distância, e só de vez em quando aparece certo masoquismo feminino. A massa de dificuldades que caracterizaram seus primeiros anos com Sartre, seus amores, a progressiva conscientização de si mesma como mulher, tudo isso pertencia a um passado superado, o que, combinado com o valor que Beauvoir dá ao racional, resultou naquilo que constitui, por vezes, outra característica irritante de suas memórias, de acordo com a autora: a discrepância entre a experiência que ela relata e o tom frio e razoável com que o faz, um tom que evita judiciosamente os cumes e profundezas do drama emocional. Curiosamente, é quando Beauvoir apresenta fragmentos dos seus diários de juventude, como o faz para os anos de guerra, que a autobiografia salta para uma nota mais emotiva, ou quando relata batalhas políticas mais recentes, como as da guerra da Argélia, bem como quando evoca o impacto de envelhecer, quando a noção do futuro parece recuar do mundo (APPIGNANESI, 1988).

O que Beauvoir nos oferece na autobiografia é precisamente aquilo que, segundo a crítica de alguns, ela não deu a Anne, principal personagem de sua obra de ficção, Os Mandarins, ou seja, uma vida plena, que não ficasse centrada só nos domínios tradicionais da experiência feminina das emoções e da sexualidade. Ao contrário, o trabalho, as esferas, pública, histórica e cultural são apresentados lado a lado com essa experiência pessoal de vida. Em seu conjunto, a esfera pública, contudo, tem mais peso e sua percepção disso é exacerbada pelo fato de que os últimos anos nos têm dado um grande número de confissões femininas, e todas examinam minuciosamente a especificidade da vida emocional e sexual da mulher. Sendo assim, a relativa ausência disso nas memórias de uma mulher que abriu caminho para tais explorações chama forçosamente a atenção dos contemporâneos. Contudo, as raízes de Beauvoir estavam numa geração mais reticente e mais puritana que a nossa e daí resulta um duplo absurdo: o primeiro consiste em exigir que Beauvoir componha as memórias de uma mulher criada numa outra época e esperar dela uma assimilação d’O Segundo Sexo. O segundo consiste em sentir irritação com ela por não aprofundar justamente aquelas áreas que as

mulheres têm rejeitado constantemente como contendo a totalidade da sua experiência possível (APPIGNANESI, 1988).

Não resta dúvidas de que Beauvoir se propôs a escrever suas memórias em parte para responder aos ataques que os críticos lhe tinham feito quandoO Segundo Sexo foi publicado. Tanto isto é verdade que, em entrevista concedida em 1960, Beauvoir disse que desejou corrigir um mal-entendido corrente a seu respeito, de que O Segundo Sexo, escrito aos 40 anos, era fruto do rancor feminino de uma mulher que se queria vingar de uma vida totalmente miserável que a fizera amarga. A vida plena e exemplar que ela evoca nas memórias certamente liquida qualquer noção de uma mulher amargurada, presa no laço da sua própria condição. O objetivo particular de Beauvoir, de não deixar seus críticos sem resposta, também ajuda a explicar, sem explicar cabalmente, as diversas passagens das memórias nas quais ela insiste em acentuar que nunca sofreu por causa da sua feminilidade e foi sempre aceita como igual, sem diferença, pelo seu círculo de amizades. É também verdade que a Beauvoir que emerge das memórias é uma mulher dada a reprimir-se, o que lhe permitiu ir em frente, tocando sua vida e suas realizações e nunca foi simpática a uma abordagem psicanalítica, que poderia pôr em perigo seu senso de autocontrole, seu domínio de uma consciência lúcida (APPIGNANESI, 1986).

Diante deste quadro, o retrato que emerge da autobiografia de Beauvoir é, com efeito, de intimidação. Como os mais atrevidos heróis de Balzac, ela supera as limitações de classe e de gênero, para conquistar um lugar ao sol, primeiro como aluna brilhante, depois como professora, mulher que ganha a vida com independência; depois como amante e companheira do mais reputado filósofo do seu tempo; finalmente, como escritora festejada e figura exponencial da esquerda e do movimento feminista. Através de sua longa vida, há evidência, diz a autora, de que essa vivacidade intelectual e lucidez que desmascararam e varreram para longe as hipocrisias representou um esforço de desmistificação. Por outro lado, o tempo de Beauvoir era empregado com devoradora energia, quando lia sobre história, ficção, filosofia, via filmes e peças de teatro, viajava infatigavelmente com voraz curiosidade, espírito de aventura e atenção aos detalhes, embarcando em amizades e casos de amor,

preservando a harmonia entre o número não desprezível de ligações amorosas que Sartre reuniu e manteve.

Contudo, são inevitáveis as supressões, as evasões, as escolhas de verdades particulares, assim como a omissão de outras, e Appignanesi (1988) cita a afirmação de Carter de que um dos maiores projetos de vida de Beauvoir seria o de fazer de Sartre um mito, através de suas memórias. De fato, o Sartre das memórias, tão ausente em pessoa quanto presente em grandeza, é uma figura colossal, sempre mais inteligente do que ela, mais correto nas suas posições filosóficas e políticas que qualquer outra pessoa, sempre à mão para ajudar, discutir trabalho ou relações, jamais irado ou rancoroso, e nunca censurado pelo seu inveterado donjuanismo; o Sartre não é aqui, segundo a autora, nem o Sartre das cartas de Beauvoir a Algren, nem o Sartre dos seus biógrafos mais recentes. A constante presença de Sartre nas memórias de Beauvoir, como um dos termos do “nós” que ela usa, é também uma forma de rotular Sartre como a parte principal do duo Sartre-Beauvoir. Através de sua autobiografia, Beauvoir deixou sua marca onipresente na vida de Sartre, conclui a autora.

Apenas após a morte de Sartre, Beauvoir permitiu o aparecimento de uma diferente imagem dele: o Sartre muitas vezes infantil e promíscuo presente em Cartas ao Castor e a alguns outros, editadas por Beauvoir e publicadas em edição póstuma, em 1983, bem como o Sartre por vezes patético e mesquinho de A cerimônia do adeus, esse tributo dela aos últimos dez anos de vida de Sartre e à sua morte. Na sua franqueza de detalhes, quase brutal, sobre a doença de Sartre, sua progressiva cegueira e senectude, essa comovente narrativa nos revela mais sobre a verdadeira natureza do relacionamento entre os dois, sua intensidade, seus pontos fracos, que as muitas páginas da autobiografia. Esses anos difíceis os deixaram politicamente estremecidos e deixaram, também, estremecida a amizade que os ligava, e só depois da morte de Sartre, Beauvoir se permitiu mostrar a cólera e irritação que sentia, bem como o genuíno respeito e amor que tinham um pelo outro.

Contudo, a autora diz discordar da afirmação de Beauvoir de que sua relação com Sartre tenha sido o maior êxito de sua vida, já que o impacto de Beauvoir no movimento de libertação da mulher, seu papel como um desses raros

pensadores que afetam diretamente a nossa maneira de ver o mundo, certamente constituem “sucesso” maior que a sua relação privada com Sartre, seja qual for o juízo que façamos do legado dele, filosófico e literário (APPIGNANESI, 1986).