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BEAUVOIR: VIDA E OBRA

2.2 INGRESSO NA UNIVERSIDADE E INÍCIO DA RELAÇÃO COM SARTRE

Beauvoir colou grau em literatura e filosofia na Sorbonne, em Paris, no ano de 1927. No ano seguinte, iniciou sua pós-graduação na École Normale Supérieure, no intuito de exercer a profissão de professora. Neste momento, já se destacava como estudante por sua agudeza intelectual e suas audaciosas opiniões, sempre expostas com vigor e rapidez (APPIGNANESI, 1988).

Dentre os alunos da École Normale, havia um grupo que se destacava por suas opiniões polêmicas e contundentes, dentre estes, destacavam-se Paul Nizan, membro do Partido Comunista, que já possuía livros publicados, René Maheu e Jean-Paul Sartre. Beauvoir fez amizade com Maheu, e foi ele quem a apelidou de Castor7 , apelido que a acompanhou por toda a vida, e a apresentou a Sartre.

Beauvoir foi convidada por Maheu para participar do grupo de estudos que ele e seus amigos estavam organizando para se prepararem para a prova final, e ficou nervosa em ter que se preparar para os argumentos de Sartre que, segundo Beauvoir8, apresentava uma capacidade intelectual e uma irreverência em suas atitudes que a deixava atordoada. Beauvoir, que ainda era sentimental e intelectualmente respeitosa, ficou chocada com o comportamento do grupo, mas reconheceu que ali, finalmente, ela estava diante de pessoas que não tinham medo de encarar a realidade, de serem

7 De acordo com Maheu, os castores são animais que gostam de companhia e que têm disposição construtiva, características que reconhecia em Beauvoir (APPIGNANESI, 1988).

8 Rowley (2006, p.32) afirma que, em geral, atribui-se a Sartre a responsabilidade de ter transformado Beauvoir de uma filha obediente da burguesia francesa numa das maiores livre-pensadoras independentes da França do século XX, contudo, ele não concorda com tal interpretação. Para a autora, Sartre apenas estimulou Beauvoir a seguir o rumo que ela já tomara.

irreverentes e de colocarem em dúvida as presunções convencionais, quer filosóficas, quer sociais, com rigor veemente, e isto era algo que desejava fazer. Isso fez com que se sentisse em seu ambiente (APPIGNANESI, 1988.

Sartre e Beauvoir passaram juntos os dias que precederam os exames, discutindo sobre todo e qualquer assunto. Segundo a autora, Beauvoir jamais havia conhecido alguém cujos conhecimentos fossem tão vastos e profundos, e seu mundo pareceu pequeno diante daquele universo. Sartre, por seu turno, deixou claro desde o princípio que estava interessado nela, e investia na conquista, analisando Beauvoir de maneira apaixonada, tentando compreendê-la, a partir dos seus valores e atitudes, o que a deixava encantada. Este encantamento se consolidou quando Beauvoir descobriu que Sartre tinha as mesmas pretensões literárias que ela, e pela primeira vez sentiu-se intelectualmente inferior à outra pessoa (APPIGNANESI, 1988).

Ao prepararem-se para a prova final, Beauvoir e Sartre liam os respectivos trabalhos, e esse processo de crítica franca, esse diálogo sobre a produção literária de cada um, perduraria pela vida inteira. Ao terminarem os exames finais, Sartre foi aprovado em primeiro lugar e Beauvoir em segundo.

Esta colocação foi motivo de discussão para a banca, que acabou considerando o fato de Sartre já ter sido reprovado no ano anterior, a despeito de considerarem Beauvoir a verdadeira filósofa. Beauvoir, por estar apaixonada, concordou com o resultado final já que o considerava superior a ela. Appignanesi (1988) cita a própria Beauvoir para destacar seus sentimentos por Sartre9, na época em que se conheceram:

Sartre correspondia exatamente ao companheiro com o qual eu sonhava desde os quinze anos. Ele era o meu duplo, aquele em quem eu encontrava todas as minhas ardentes aspirações. Poderia sempre partilhar tudo com ele (BEAUVOIR apud APPIGNANESI, 1988, p.39).

9É importante destacar que Rowley (2006) por ter escrito a biografia de Beauvoir e Sartre após a morte de ambos e da publicação das cartas que Beauvoir enviou a Sartre, bem como a Nelson Agren – de quem trataremos mais tarde – apresenta detalhes da vida de Beauvoir que não estão presentes em outras biografias, bem como nas memórias de Beauvoir. Apenas a título de exemplo, nesta biografia, revela-se que Beauvoir apaixonou-se por seu amigo Maheu e viveu um romance com ele, praticamente na mesma época em que iniciou sua relação com Sartre.

Beauvoir sonhara desde menina com um futuro marido cuja inteligência, cultura e autoridade viessem a dominá-la, e que ele deveria se impor junto a ela com sua maior compreensão das coisas, conferindo assim à vida um sentido de necessidade (ASCHER, 1991).

Em se tratando do desempenho de Beauvoir para o título na agrégation, seu triunfo foi surpreendente. Foi a pessoa mais jovem a adquirir o título com apenas três anos de estudos de filosofia em nível de terceiro grau, sendo que Sartre tinha sete anos, sem contar que este teve aulas preparatórias por dois anos e já tinha passado por uma experiência na seleção do ano anterior, quando foi reprovado (ROWLEY, 2006).

Após sua aprovação na École Normale, Beauvoir começou a lecionar no Lycée Janson de Sailly e logo se aproximou do filósofo Merleau-Ponty e de Lévi-Strauss, o fundador da antropologia estrutural. Ao ser a primeira mulher a lecionar filosofia num liceu masculino, ela parecia estar cumprindo uma trajetória que já havia iniciado ainda em sua infância (APPIGNANESI, 1988).

Beauvoir destaca como era sua relação com seus amigos:

A amizade deles me impediu de assumir aquela atitude de desafio que tanta consternação me causaria quando a encontrei entre as mulheres. Desde o começo, os homens eram meus camaradas, não meus inimigos. Longe de invejá-los, eu sentia que minha posição, pelo fato de ser incomum, era privilegiada (Beauvoir apud Appignanesi, 1988, p.36)

Apenas na década de 1970, Beauvoir veria as contradições dessa posição. Durante a maior parte de sua vida, as conquistas individuais, intelectuais e literárias serviram-lhe como uma espécie de passe para a liberdade do mundo masculino, que ela colocava muito acima do acanhado mundo das mulheres (APPIGNANESI, 1988).

Ao começar a lecionar, Beauvoir tomou a iniciativa de sair da casa de seus pais para morar sozinha num quarto independente, no apartamento da avó materna. A avó de Beauvoir já alugava quartos e tratou-a com o mesmo respeito com que tratava os demais inquilinos.

É neste contexto que Beauvoir inicia sua relação com Sartre; uma relação que desafiará os padrões e costumes estabelecidos por uma sociedade burguesa e católica. As conseqüências desta relação foram, como não poderia deixar de ser, bastante diferentes para ambos, tendo Beauvoir enfrentado situações de preconceito maiores do que as que Sartre precisou enfrentar.

Ambos eram amantes e não pretendiam casar-se, embora tivessem em vista uma relação duradoura. Sartre, por seu turno, não acreditava em monogamia, pois, este seria um estado por demais embrutecedor para um homem de letras que se alimentava da novidade, que precisava de uma vasta gama de experiências e emoções para nutrir a sua obra. Beauvoir não ficou chocada com tal posição, que apenas reproduzia, a exemplo de seu pai, os costumes burgueses de atribuir esta prerrogativa aos machos. Contudo, o que havia de diferente no modo pelo qual Sartre delineou a futura união dos dois, era que ela, a mulher, seria igualmente livre e poderia ter outros relacionamentos.

Sartre, então, propôs que ambos mantivessem uma relação, considerada por ele como “um amor essencial”, tendo a possibilidade de experimentar casos de

“amor contingente”. Por contingente, Sartre queria dizer “o que é passível de alteração”, “o que é importante, mas não de importância primordial”

(APPIGNANESI, 1988). A respeito da proposta de Sartre, Beauvoir afirmou:

Nós éramos dois da mesma espécie, e nossa relação haveria de perdurar enquanto vivêssemos. Mas não podia suprir inteiramente os enriquecimentos fugazes proporcionados por encontros com diferentes pessoas (APPIGNANESI, 1988, p. 42).

Até este momento, Beauvoir ainda não havia questionado que a sociedade via a mulher sob um prisma completamente diferente do homem, e apenas vinte anos depois, com a elaboração d’O Segundo Sexo, ela afirmaria que as mulheres não eram vistas como iguais e sim como inferiores. Portanto,

Beauvoir considerou que a proposta de Sartre se ajustava às suas próprias idéias, construídas principalmente sobre sua visão do casamento convencional10. O acordo viria acompanhado de mais uma cláusula – a da transparência – ou seja, ambos fizeram votos de que jamais mentiriam um ao outro, como costumam fazer marido e esposa, ao contrário, diriam tudo um ao outro, partilhando assim, seus sentimentos, trabalhos e projetos (ROWLEY, 2006).

Beauvoir acreditava que o indivíduo não poderia ser autêntico senão numa forma de relação que estava ainda para ser inventada, e isto era o que ela se propunha a fazer com Sartre. Sendo assim, Beauvoir pretendia viver a sua vida com a mesma independência que um homem, já que economicamente não dependia de ninguém (FRANCIS e GONTIER, 1986).

Contudo, enquanto Sartre não queria perder a liberdade de que já gozava, Beauvoir teve dificuldade em usufruir de sua liberdade, já que todas as suas amigas aspiravam ao casamento, bem como tinham desprezo pelas solteironas, desprezo que ela mesma também nutria. Além disso, Beauvoir sabia que seus pais ficariam envergonhados se ela não se casasse e muitas pessoas sentiriam pena ou ficariam chocadas com a idéia de uma relação aberta. Na verdade, Beauvoir teve de fazer um esforço para aceitar a idéia, já que ainda não havia se emancipado de todos os tabus sexuais, e a

“promiscuidade” da mulher a chocava. Apesar de ter declarado em seu diário seu desprezo pelo casamento, Beauvoir havia passado os anos da adolescência esperando casar-se com o primo Jacques, e via-se como mãe, mulher e escritora (ROWLEY, 2006).

Sartre explicou a Beauvoir sua teoria da liberdade e da contingência, afirmando que para ele, os indivíduos viviam num estado de absurdo fundamental, ou “contingência”; Deus não existia; a vida não tinha significado preexistente, e sendo assim, cada indivíduo tinha que assumir sua liberdade,

10De acordo com Francis e Gontier (1986, p.153), dois acontecimentos a tinham marcado violentamente, fazendo com que questionasse o casamento convencional: o desajuste do casamento dos seus pais e a morte de Zaza. Beauvoir rejeitava as regras, os usos e os costumes de uma sociedade que arrastara Zaza à morte. Recusava o casamento que levava, infalivelmente, às deslealdades, aos enganos e às aventuras extraconjugais.

criando sua própria vida. Não existia ordem natural na vida, e as pessoas seguravam seus destinos com as próprias mãos, cabendo a elas determinar a substância de suas vidas, incluindo a maneira que escolhiam para amar. De acordo com as idéias de Sartre, ser livre era assustador e, portanto, a maioria das pessoas fugia de sua liberdade. Sartre estava disposto a abraçar sua liberdade, não permitindo que nenhum código preestabelecido determinasse sua vida. Sua vida seria, enfim, o resultado de sua própria construção, e esta concepção de liberdade encantou, e ao mesmo tempo assustou Beauvoir (ROWLEY, 2006).

No que diz respeito ao lado físico da relação, Beauvoir teve grande dificuldade em admitir que, seu corpo tinha necessidades que não passavam pela racionalidade. Para ela, a paixão dentro dos limites do amor seria aceitável, mas a descoberta de que quando o corpo deseja, qualquer homem serve para saciá-lo foi dilacerante. Tais desejos, Beauvoir nunca teve coragem de confessar a Sartre, o que a fez afirmar que, seu corpo se tornou uma pedra de tropeço ao invés de um laço de união entre ela e Sartre.

É interessante notar que, em uma de suas últimas entrevistas, Beauvoir disse que, no seu caso, a “cabeça” fora sempre mais forte que o corpo, que os desejos, mas a passagem anterior sugere que ela viveu uma verdadeira batalha interna, em que, em nome de sua relação com Sartre, Beauvoir deu prioridade à “cabeça”. Parece que a compreensão racional e intelectual de Beauvoir acerca de seu próprio corpo, prejudica sua avaliação da condição da mulher, bem como do caminho para a independência que ela aponta em O Segundo Sexo, já que, ao negar seu corpo, Beauvoir nega sua própria feminilidade (APPIGNANESI, 1988).

Na mesma direção, Ascher (1991) sustenta que a relação de Beauvoir com sua sexualidade era complicada, já que, para ela, liberdade implicava um controle racional sem conflitos, e sua sexualidade, uma vez despertada, causava-lhe aborrecimento e humilhação, pois era um lembrete de que nem tudo poderia ser controlado pela mente e pela vontade, e a própria Beauvoir diz: “Feria-me o orgulho ver-me condenada a um papel mais de subordinação

do que de comando, no que dizia respeito aos movimentos secretos de meu sangue” (Beauvoir apudAscher, 1991, p.44).

Em relação a Sartre, este sempre demonstrou uma espécie de repugnância pela carne e pelo mítico terreno feminino, uma espécie de temor de tudo o que seja culturalmente ligado à sexualidade da mulher, em oposição ao que considerava o antídoto, que seria a sólida e nítida claridade do intelecto.

Neste sentido, Beauvoir identificava-se com ele ao desprezar a prisão do corpo e seus desejos, dando primazia ao intelecto, sendo freqüentemente apanhada numa armadilha cartesiana, ao considerar uma ruptura radical entre mente e corpo (APPIGNANESI, 1986).

Com o objetivo de preservar a felicidade de sua união, Beauvoir não discutia certos assuntos com Sartre, havendo algumas evasões em sua autobiografia. Contudo, se na autobiografia isso ocorre, em seus romances o ciúme entre as mulheres é um tema central, assim como o são as excentricidades das mulheres apaixonadas, o que dá pistas da forma conflituosa com que Beauvoir lidava com o pacto estabelecido com Sartre.

Para Sartre, contudo, o mais maravilhoso da relação era que Beauvoir tinha a inteligência de um homem e a sensibilidade de uma mulher. Nela, Sartre encontrava tudo o que poderia desejar de uma mulher. Ela era o mais íntimo dos amigos, e essa amizade, na qual todos os valores, todos os pensamentos, todos os gostos eram partilhados, se renovava por uma constante invenção (APPIGNANESI, 1988).

Beauvoir sentia que Sartre justificava seu mundo, como antes os seus pais, como outrora Deus, garantindo-lhe uma segurança definitiva, nada mais restando que ela pudesse desejar, senão que essa “triunfante beatitude” nunca diminuísse (FRANCIS e GONTIER, 1986).

Contudo, ao tratar das dificuldades vivenciadas por Beauvoir para adaptar-se ao acordo estabelecido entre ela e Sartre, Rowley (2006) afirma que ela começou a sentir, com o passar do tempo, que estava caindo numa armadilha, e que o acordo lhe traria muitos riscos, dos quais tratará mais tarde n’O Segundo Sexo, ao descrever “a mulher apaixonada”. Beauvoir a descreve

como aquela para quem o amor é uma fé, que passa a vida esperando, que abandona sua vida, até seu juízo, por seu homem. Assim, segundo a autora, a filosofia existencialista subjacente nos livros de Beauvoir era também a filosofia subjacente em sua relação com Sartre, e ela considera que constitui má fé olhar para o outro, seja ser humano ou Deus, para ter uma noção de salvação.

Segundo Beauvoir, como indivíduos somos livres e agimos de má fé quando tentamos evitar nossa liberdade, contudo sustenta que não é fácil a liberdade, posto que traz consigo a angústia da escolha e vem com o fardo da responsabilidade. Diante deste quadro, ao avaliar os primeiros dezoito meses de relação com Sartre, Beauvoir afirmou que este se tornara seu mundo, e que estava tão fascinada por ele que esqueceu de si mesma, deixando de existir de forma autônoma.

Essa situação, típica da que ela descreveu como a condição da mulher que ama em O Segundo Sexo, era exacerbada pelo fato de que a última coisa que Sartre queria era uma mulher dependente. Ele se afligia com Beauvoir, censurando-a por não ter mais idéias próprias e dizendo-lhe para tomar cuidado em não se transformar numa fêmea introvertida. Beauvoir, por seu turno, afirmava que não haveria risco de tornar-se uma dona de casa, e ficava furiosa consigo mesma por decepcioná-lo dessa maneira, concluindo que adaptar a própria maneira de ser à salvação de outra pessoa é o meio mais certo e mais rápido de perdê-la. Em entrevista, concedida anos depois, Beauvoir esclareceu que, àquela época, não compreendia seu problema como derivando do fato de ser mulher, contudo, afirmou que esta experiência enriqueceu a sua compreensão do que seria a principal matéria do mais influente dos seus livros, O Segundo Sexo (APPIGNANESI, 1988).

Para Beauvoir, a palavra amor não tinha, absolutamente, o mesmo sentido para um e para o outro sexo, e esta seria a fonte dos graves mal-entendidos que separam homens e mulheres. Beauvoir continua afirmando que o amor é, na vida do homem, senão uma ocupação, ao passo que para a mulher é sua própria vida (FRANCIS e GONTIER, 1986).

Contudo, após a publicação das Lettres au Castor, Beauvoir surpreendeu-se com as críticas de alguns que a acusavam de ser semelhante

a qualquer esposa cujo marido tem numerosas aventuras. Ela teria, então, discordado, posto que tinha dentro do pacto com Sartre a mesma liberdade que ele, e que a usou (FRANCIS e GONTIER, 1986).