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A construção do conhecimento na perspectiva da forma escolar

2. O SURGIMENTO DE UMA FORMA ESCOLAR

2.3 A construção do conhecimento na perspectiva da forma escolar

Aprender é passar da potência ao ato, por determinação e vontade própria. Tomás de Aquino,

O tipo de conhecimento e a maneira como o produzimos é um tema caro à filosofia. Pode-se dizer que no século XVII realizou-se uma virada epistemológica, virada essa que Kant prosseguiu no século seguinte com seu projeto fundacionalista de busca das fontes transcendentais, universais e necessárias do conhecimento, dos princípios puros da razão e dos juízos do entendimento. Com objetivo de obter verdades apodíticas, essa racionalidade com interesse em chegar a um tipo de conhecimento seguro, tem início no pensamento grego:

De modo muito resumido e simplificado, pode-se dizer que uma parte do pensamento grego antigo, no seu empenho pela construção de uma racionalidade cujo objetivo era o conhecimento seguro (episteme) acerca da natureza e do ser humano, acabou instituindo filosoficamente a noção de que a realidade é dual. Sobre a realidade, seriam possíveis duas maneiras de conhecer algo: ou ter uma opinião (doxa) que, por não ser fundamentada, não passaria de uma crença ou ilusão; ou ter um conhecimento seguro (episteme) que, por ser racionalmente fundamentado, seria uma verdade em si mesma, ou nos levaria a ela. (VEIGA-NETO, 2008, p.26)

Em grande medida, essa virada epistemológica, que caracteriza e lastreia o surgimento da própria noção de ciência, em seu sentido moderno, fundamenta-se na busca de um ―acesso imediato às coisas mesmas‖ (LACLAU 2005, p. 80). A ideia Moderna de conhecimento, nascida e desenvolvida sob o abrigo desse arco platônico, incorporou acriticamente à noção de que vivemos uma realidade: ―que tem, acima de si, um mundo ideal, habitado por idéias e formas perfeitas, um mundo inteligível, que pode reger o que acontece aqui nesse nosso mundo imperfeito e grosseiro, um mundo sensível‖ (VEIGA-NETO, 2008, p.85). Assim:

A chamada doutrina dos dois mundos ajustou-se como uma luva à tradição cristã medieval e acabou norteando os desdobramentos posteriores do pensamento humano, chegando à Modernidade como uma verdade por si mesma, como algo natural —e, por isso mesmo, inquestionável e quase ―invisível‖. É mais do que evidente a correspondência entre mundo sensível—mundo profano e mundo inteligível—mundo sagrado (IBIDEM, p.26)

A modernidade foi marcada por um modo de construir conhecimentos, inspirada pela hegemonia do pensamento científico9. O discurso moderno enfatizou um modo de conhecer, apartado da doxa e centrado na episteme com saberes formalizados, delimitados. Racionalismo, formalismo lógico, precisão conceitual e objetivismo, são temas que remetem à relação que a modernidade enseja com o conhecimento e que remete a crenças sobre como se estrutura o social. Para Mesquita (2010):

As narrativas modernas caracterizam-se, nessa esteira, por operar uma dicotomia entre sujeito e objeto, de forma a separarem a ontologia (que remete à estruturação dos seres e entes da sociedade) da epistemologia (conjuntos de conceitos que se mobilizam para representar a estruturação social). (IBIDEM, p. 209)

Uma concepção cara à modernidade é a existência de leis imanentes que regem as relações sociais (IBIDEM, 2010). Assim, politizar uma dessas partes– remete a um descompasso entre o local e o universal – e significa colocar problemas, epistemológicos e políticos, à lógica relacional em questão:

Na epistemologia moderna, as partes da estrutura social (escola, fábrica, igreja, parlamento, etc), assim como as esferas sociais que as perpassam (economia, política, religião) estão, em tese, regidas por uma lógica relacional (lógica da diferença nos termos de Laclau) que, ao mesmo tempo em que diferencia uma das outras (o que dá ensejo a noções como a de autonomia da esfera política ou da educação), estabelece, nesse jogo relacional, suas identidades e/ ou funções em relação ao conjunto da sociedade. (IBIDEM, p. 209)

As abordagens teóricas de Ernesto Laclau e Paul Ricoeur se contrapõem às concepções que dicotomizam a relação sujeito-objeto, assim como a ideia da existência de leis imanentes que regem as relações sociais. Desse modo, a ideia que o ser dos objetos é construído discursivamente no devir, pressupõe afirmar uma ontologia antiessencialista e pós- fundacionista. O significado das palavras e seus conceitos estão intimamente relacionados a seus contextos, não há nenhum fato que possa ser lido de maneira dissociada.

Propor pensar o tipo de relação que se enseja com o conhecimento a partir da consolidação da forma escolar, implica perceber a estabilização de lógicas sociais que se hegemonizam através desse discurso escolar institucionalizado. Assim, uma das maneiras de

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O esclarecimento é um importante dispositivo da episteme moderna, e um forte instrumento na institucionalização das escolas e dos museus.

estruturar o conhecimento, e ter um saber objetivado, foi através do currículo. "A escola como espaço específico, separado das outras práticas sociais, está vinculada à existência de saberes objetivados" (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001, p. 28). Para esses autores:

A escola e a pedagogização das relações sociais de aprendizagem estão ligadas à constituição de saberes escriturais formalizados, saberes objetivados, delimitados, codificados, concernentes tanto ao que é ensinado quanto à maneira de ensinar, tanto às práticas dos alunos quanto à prática dos mestres. A pedagogia (no sentido restrito da palavra) se articula a um modelo explícito, objetivado e fixo de saber (...). (VINCENT; LAHIRE & THIN, 2001, p. 28-29).

Pensar a maneira como construímos e acessamos o conhecimento, e o que é o próprio conhecimento é uma etapa essencial para refletir sobre os diferentes modos de existir. A construção do conhecimento na perspectiva de uma forma escolar está relacionada a uma segmentação do saber, a um modo de conhecer objetivado, inspirado em um modelo fabril.

Na modernidade, o conhecimento foi objeto de disciplina, transformando-se em informação e processado pelo elemento escolar. Em nosso contexto atual o conhecimento parece limitado à informação. A vida moderna é tomada por novos marcadores, esse período inaugura uma maneira específica de relação com a construção do conhecimento, e com a temporalidade. A instituição escolar, que se consolida como sistema nacional de ensino apenas na segunda metade do século XIX, inaugura uma forma escolar de socialização que acaba por ―engessar‖ outras maneiras de construir o conhecimento:

Como acontece em todos os domínios científicos, a emergência das ciências da educação obedece a uma dinâmica de caráter histórico concomitante com o desenvolvimento, durante os séculos XIX e XX, dos sistemas educativos no âmbito dos estados-nação. O processo de institucionalização de um domínio específico de produção de conhecimento sobre os fatos educativos processa-se em articulação estreita com a emergência de campos profissionais correspondentes, tendo-se a institucionalização ao nível universitário ampliado e consolidado com a ―explosão escolar‖ que caracterizou a década de 60. (CANÁRIO, 2005, p. 25)

As concepções sobre o surgimento de uma forma escolar estão intimamente relacionadas à ideia de escolarização como projeto de subjetivação. O movimento de escolarização que se instala na Modernidade permitiu a emergência de diversos discursos pedagógicos, e a instauração de relações sociais pautadas na escrita, em detrimento da cultura oral. Isso tem um rebatimento na relação com a noção que se constrói sobre o conhecimento, que é um tema importante nessa pesquisa. ―La especificidad de lo pedagógico supone una

especialización de los lenguajes y las agencias que sólo se alcanzó en la modernidad clásica (FOUCAULT, 1968 apud DUSSEL, 2014, p.05 ).

A difusão da escrita, em detrimento a tradição oral, tende a ignorar os saberes locais; em prol de generalizações. Para Martin Jay (2009) essas mudanças tem relação com a construção de uma noção laboratorial de experiência - ato de não dar um sentido à experiência vivida. Em nosso modelo social, abrimos mão do encantamento, a ordem transforma o encantamento em informação, e as experiências produzidas a partir do encantamento não dialogam com o conhecimento científico.

Foucault, em as Palavras e as Coisas (1999), traz o ―encantamento‖ como um elemento importante na construção de narrativas. Em nosso contexto atual o conhecimento está limitado à informação, conhecer o mundo não é aproximar, mas ordenar. Na obra ―Dialética do Esclarecimento‖, Theodor Adorno e Max Horkheimer (2006), incomodados com o fato de vivermos sob o predomínio de um conhecimento técnico-cientifico fundamentado em uma razão excessivamente instrumentalizada, propõem um debate sobre o dilema do projeto iluminista. Porque a humanidade ao invés de atingir o estado pleno de desenvolvimento dos ideais iluministas está adentrando em uma nova espécie de barbárie? Para Adorno e Horkheimer:

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber. (ADORNO; HORKHEIMER,2006, p. 06)

Tratava-se, portanto de um tipo de técnica como instrumentalização da vida. Theodor Adorno (2003) critica essa visão, em que o esclarecimento promove o fim da dúvida, o esgotamento do saber em oposto à emancipação, que é um percurso, que só se realiza enquanto projeto. Adorno enfatiza como a percepção que se tem da educação determinará e influenciará os indivíduos. Ele critica o formato de educação que não valoriza o homem como ser ativo, autor de sua própria história, uma educação que promove uma aprendizagem técnica, voltada a atender demandas mercadológicas:

Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece atualmente gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos influenciáveis, com as correspondentes conseqüências no plano geral. Por outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. (ADORNO, 1995, p.8).

Após a virada lingüístico pragmática que se deu a partir do final do século XIX, a filosofia não é mais vista como tribunal da razão, nem a epistemologia limita-se ao objetivo é chegar à verdade, tampouco o conhecimento resulta de uma representação especular do real. Cai o modelo fundacionalista que preconiza a busca da verdade e de certeza pela relação entre sujeito cognoscente e mundo/objeto. Conhecer não é algo fundado em critérios seguros. (ARAÚJO, 2004).

No livro ―A árvore do conhecimento- As bases biológicas do entendimento humano”, Humberto Maturana e Francisco Varela, examinam o fenômeno do conhecer, em especial a situação de se conhecer como se conhece: ―queremos examinar o fenômeno do conhecer tomando a universalidade do fazer no conhecer‖ (MATURAMA, VARELA, 1995, p. 70). Os autores chamam atenção para o fato da cultura ocidental, em grande parte, está apartada da construção das experiências individuais, está mais centrada na ação, e não na reflexão.

A visão de Maturama e Varela, sobre a natureza cognoscitiva do ser humano é integrada a outras dimensões. O modo como o conhecimento é construído não é dissociado das questões culturais, orgânicas, da linguagem, da comunicação. Existe uma valorização da autoconsciência, e da percepção na aprendizagem. A escola, nesse molde que conhecemos inspirada em um modelo fabril, guiada por uma organização do conhecimento apartada da vida e voltada para o mercado de trabalho, não parece disposta a discutir questões relacionadas à reflexão que propõem Maturama e Varela.

Para Edgar Morin o conhecimento, pode ser concebido como produto de interações bio- antropo-socioculturais. Assim, existe um tronco comum indistinto entre conhecimento, cultura e sociedade. As práticas sociais expressam ou comunicam um significado. Edgar Morin (2002) faz uma tríade da relação indivíduo/espécie/sociedade, tendo como produto a cultura, formando uma inter-relação. ―Cada um desses termos é ao mesmo tempo meio e fim: é a cultura e a sociedade que garantem a realização dos indivíduos, e são as interações entre indivíduos que permitem a perpetuação da cultura e a auto-organização da sociedade‖ Morin (2002, p.54). A maneira como Edgar Morin vê o conhecimento, aproxima-se da visão de Maturama e Varela.

De acordo com Morin:

O conhecimento está na cultura e a cultura está no conhecimento. Um ato cognitivo individual é, ipso facto, um fenômeno cultural e todo elemento do complexo cultural coletivo atualiza-se em um ato cognitivo individual (...) os indivíduos só podem formar e desenvolver o seu conhecimento no seio da cultura, a qual só ganha vida a partir das inter- retroações cognitivas entre os indivíduos: as interações cognitivas dos indivíduos regenera a cultura que as regenera. (MORIN, 2005, p.24).

Os desvios criam a possibilidade de produzir algo novo. Assim como, para a atenuação da normalização. A forma escolar não reconhece a instabilidade do saber. Tenta controlar os desvios. Com isso, não abre a possibilidade de criar outros investimentos narrativos. A educação inspirada em um sistema fabril, ao invés de estimular, limita a capacidade imaginativa, contemplação, propiciar processos reflexivos, e negociar suas estratégias de aprendizagem, e promove um conhecimento baseado na representação passiva do acumulo de conteúdos. ―Assim, geralmente nossa vida pessoal é cega a si mesma. É como se um tabu nos disse-se: ‗É proibido conhecer o conhecer‘, é uma vergonha. Há muitas vergonhas no mundo, mas essa ignorância está entre as piores.‖ (MATURAMA, VARELA, 1995, p. 67).

A forma escolar expandiu-se para as relações culturais, está presente na maneira que nos relacionamos, no entanto, o espaço da hegemonia abre caminho para a construção de uma nova lógica do social, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. (2001). A noção do significante escola, já é de alguma maneira, uma generalização, pois ela é aprendida de diferentes maneiras nos contextos culturais. Nesse sentido, podemos ler a escola como um ―significante vazio,‖ uma vez que há, em torno desse elemento, uma disputa por hegemonia em curso, ou seja, por fixação de sentidos. Na próxima seção o intuito é explicitar algumas contradições da forma escolar, e destacar a necessidade de refletir sobre as novas concepções.