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Escola e Museu: dispositivos na construção de um discurso nacional

3 O PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO DO MUSEU

3.1 Escola e Museu: dispositivos na construção de um discurso nacional

Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos que somos ingleses ou galeses ou indianos ou jamaicanos. Obviamente, ao fazer isso estamos falando de forma metafórica. Essas identidades não estão literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós efetivamente pensamos nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial.

Stuart Hall A modernidade inaugura ―um novo espírito do tempo‖ (SIMMEL, 2006), configura-se por um aprimoramento das técnicas de produção, mas não apenas, a modernidade inaugura também uma nova maneira de produzir experiências, controlar as relações humanas e relacionar-se com o tempo. A constituição da identidade cultural moderna é formada através do pertencimento a uma cultura nacional, essa identidade é ―modificada‖ de acordo com a forma como o sujeito é interpretado ou representado. Segundo a análise de Reinhard Bendix (1996) sobre a modernidade:

―Modernização‖ é um termo que ficou em moda após a Segunda Guerra Mundial. Ele é útil, apesar de vago, pois tende a evocar associações semelhantes nos leitores contemporâneos. Seu primeiro impulso pode ser pensar em ―moderno‖ em termos da tecnologia atual, com suas viagens a jato, exploração do espaço e energia nuclear. Mas o senso comum da palavra ―moderno‖ engloba toda a era desde o século XVIII, quando invenções como a máquina a vapor e a máquina de tecer forneceram a base técnica inicial para a industrialização das sociedades. A transformação econômica da Inglaterra coincidiu com o movimento de independência nas colônias americanas e a criação do Estado-nação na revolução Francesa. Consequentemente a palavra ―moderno‖ evoca também associações com a democratização das sociedades, especialmente a destruição do privilégio herdado e a declaração de igualdade dos direitos de cidadania. (BENDIX, 1996, p. 329)

Para Stuart Hall a noção de Estado-nação é uma concepção simbólica, é um sistema de representação que produziu uma ―ideia‖ de nação como ―comunidade imaginada‖. Hobsbawm e Ranger (1997) reforçam que a estabilidade de uma identidade nacional também depende de estratégias discursivas. A criação/invenção de algo que ―sempre fomos‖:

Por ―tradição inventada‖ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado (HOBSBAWM & RANGER, 1997, p.9 apud SÁ BARRETO, 2012, p. 62).

Stuart Hall (2005) destaca que a necessidade de ênfase nas origens é um esforço de produção do ―elemento atemporal‖, no que diz respeito à nação. Que não fica restrita a um âmbito político, produz e reproduz relações de significado e filiações. A identidade cultural moderna está assim atrelada ao significado de uma cultura nacional.

As culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional. As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo colocadas, de forma subordinada, sob aquilo que Gellner chama de "teto político" do estado-nação, que se tornou, assim, uma fonte poderosa de significados para as identidades culturais modernas. (Hall, 2003, p. 47).

Para Homi Bhabha (1998) não existe uma unidade simbólica na ideia de nação, mas um campo de produção de sentidos, e significados culturais, vistos de uma perspectiva relacional, híbrida e ambivalente, sempre atravessados por relações de poder. São discursos com um forte apelo de legitimação Para Bhaba:

Los orígenes de las naciones, como los de las narraciones, se pierden en los mitos del tiempo, y recién alcanzan su horizonte, en el ―ojo de la mente‖. Esta imagen de la nación – o de la narración – podría parecer romántica en extremo y metafórica por demás, pero es precisamente de esas tradiciones del pensamiento político y el lenguaje literario de donde surge la idea de nación como una idea histórica poderosa en Occidente. Una representación cuya compulsión cultural reside en la unidad imposible de la nación como fuerza simbólica (BHABHA, 2010, p.11).

Não percamos de vista, nesse contexto, a compreensão da nação como produto de "um esforço narrativo" (SÁ BARRETO, 2012). A linguagem tanto para Laclau quanto para Ricoeur deve ser compreendida em seu dinamismo criador. Para Laclau os sentidos só podem ser criados dentro de sistemas de linguagem ou de significação e para Ricoeur é a narrativa que torna acessível à experiência humana do tempo, assim o tempo só se torna humano através da narrativa. Para ambos é explícita a importância da linguagem nos processos discursivos de significação social. A construção de pertencimento a uma nação funciona através de dispositivos, que atuam na produção de subjetividades.

Para Stuart Hall, no mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural. Hall analisa a ideia de nações como comunidades imaginadas:

Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos - um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da idéia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu "poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade" (Schwarz, 1986, p.106 apud Hall, 2003, p. 47).

A formação de uma ―sociedade civil‖ com regras e a tentativa de ter comportamentos definidos e legitimados opera com vínculos escolares, que estruturam a organização da nossa vida pessoal, sobretudo nas relações sociais, a partir dos gestos, das linguagens, etc. (CAMBI, 1999). No processo histórico de emergência dos Estados-nação, a institucionalização da escola desempenhou um papel importante na construção de uma ―coesão e uma solidariedade‖ nacional. Ou seja, ―a subjetividade dos indivíduos e a objetividade das funções sociais são percebidas como duas faces de uma mesma realidade‖ (DUBET E MARTUCELLI, 1996, p. 528 apud CANÁRIO, 2005, p. 64).

Assim, como os espaços escolares, a consolidação do museu enquanto instituição pública está, de maneira geral, atrelada à concepção da educação como o grande diferencial dos países modernos. A valorização do elemento nacional foi um fator decisivo para criação dos museus públicos na Europa e na América do Norte: ―como tal, o 'museu disciplinar', o 'museu endoutrinador', é uma instituição particularmente importante já que pode ser associada à formação dos modernos Estados-nação‖ (SEMEDO, 2004, p. 133). Podemos estender esse fenômeno ao Brasil, que tinha como fonte de inspiração as idéias que permeavam os museus Europeus.

Pensar as proximidades entre escola e o museu enquanto dispositivos na construção de um discurso nacional - guardadas as devidas proporções entre o alcance de público de ambas as instituições - é considerar esses espaços como ambientes importantes para a "manutenção", sempre inventada, da memória de uma nação. De um grupo social. Ambas as instituições passaram por inúmeras transformações, mas as mudanças que aproximaram o modelo escolar, ao que conhecemos até os dias atuais, foram mais intensas nos séculos XIX e XX, com a universalização do acesso a um saber escolarizado. Não mais um privilégio de uma ―elite‖ 10.

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È importante salientar que o modelo escolar proposto para educar as massas é diferente em diversos sentidos, da escola voltada para as ―elites‖. A forma escolar esta presente nos dois tipos escolares, mas não seguia um padrão equitativo, seguia uma lógica de distribuição social e econômica.

A idéia da escolarização como o grande diferencial dos países modernos, está intimamente relacionada à tentativa de utilizar a educação como instrumento de construção de um elemento nacional. Dessa forma, ―processos políticos, econômicos e educacionais se articulam mutuamente constituindo culturas políticas que delimitam, por exemplo, qual deve ser a finalidade da escola e quais as metodologias de ensino que atendem a tais finalidades‖ (MESQUITA, 2010, p. 210). A escola e o museu enquanto dispositivos na construção de um discurso nacional marcam uma transição no processo de produção de memória entre um domínio privado, para o público11.

No caso especifico das escolas, como já mencionamos no segundo capítulo, a instauração dos sistemas escolares marca o deslocamento, de um ensino centrado em uma experiência (particular), para outro modo de entender a construção do conhecimento, que deveria ser (universalizante). Laclau (2011) em ―Emancipação e Diferença‖ explorar a relação entre particularismo, universalismo e a questão da identidade. Para ele essas relações tem sido pensada de modos diferentes no decorrer da história, de maneira resumida:

Uma primeira abordagem afirma: (a) que há uma linha divisória incontaminada entre o universal e o particular; e (b) que o pólo do universal é inteiramente compreensível pela razão. Neste caso, não há qualquer mediação possível entre universalidade e particularidade. (...) A segunda possibilidade de pensar essa relação está ligada ao cristianismo. O ponto de vista da totalidade existe, mas pertence a Deus, não a nós, de modo que não é acessível à razão humana. Credo quia absurdum. Assim, o universal é um mero evento numa sequencia escatológica, apenas acessível a nós por meio da revelação. (...) esse tipo de relação foi chamada de encarnação, cuja característica distintiva é a seguinte: entre o universal e o corpo que o encarna, não há qualquer vínculo racional. Deus é o único e absoluto mediador. Assim, começava uma lógica sutil, destinada a ter profunda influência em nossa tradição intelectual: a do agente privilegiado da História. Aquele cujo corpo particular era a expressão de uma universalidade que o transcendia. A ideia moderna de uma ―classe universal‖ e as varias formas de eurocentrismo nada mais são do que os efeitos históricos longínquos da lógica da encarnação. (LACLAU, 2011, p. 51).

A consolidação da educação, enquanto sistema, na Idade Moderna, tornou categorias como racionalização, universalismo, particularismo, disciplinarização, entre outros, como valores fundantes da pedagogia moderna. Os discursos que compõem a construção dessa

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Nesse sentido, a ideia de ―espaço público‖ é fundamental, nessa transição, e também está relacionado com o um tipo de redefinição do próprio conceito do que é ―público‖ e ―privado‖. Em que essas fronteiras são percebidas de diferentes modos, de acordo com os contextos históricos: ―a estabilidade dessas fronteiras corresponde ao que Laclau chama de hegemonia, uma prática política (articulatória) que só existe por conta do caráter contingente e aberto das relações sociais‖ (Howarth, 2000: 110 apud MESQUITA, 2010, p. 73).

identidade cultural nacional passam, em boa parte, pela institucionalização dos dispositivos escolar e museal. O tipo de conhecimento produzido a partir da experiência escolar passa a dialogar com outras esferas da vida. E, mais do que isso, essa maneira de lidar com o conhecimento cria implicações da relação historicamente desenvolvida entre escolas, museus e educação.

Observamos uma inextricabilidade entre os arranjos institucionais, as "formas" e as ―ações‖ praticadas nesses dispositivos. A escolarização, como produto do Estado Moderno, aproximou os museus da estrutura escolar, e ajudou a difundir uma ideologia burguesa, contribuindo para a reprodução das relações vigentes na sociedade capitalista.

Nesse contexto, escolas e museus são espaços que possuem especificidades e características que lhes são próprias, porém ambos possuem pontos de convergência, que podem gerar implicações na forma como esses espaços são compreendidos. Relacionar a produção de uma experiência nacional, que surge com a constituição dos estados-nação, com os espaços escolares e museais, remete à importância desses dispositivos para a formação de uma identidade cultural.

Os discursos construídos nas escolas e nos museus podem ser considerados como importantes componentes da vida social. A possível articulação dos museus com uma forma escolar pode influenciar a construção de uma dimensão pedagógica dos museus e o próprio conceito de educação museal. Na próxima seção, vamos observar as possibilidades do museu moderno, já, estar, relacionado a um modo de conhecimento escolarizado desde seu processo de institucionalização. Não de maneira determinista, mas influenciado por um determinado modelo de construção de conhecimentos, que permearia o campo escolar e museal.