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Institucionalização do museu: aproximações com uma forma escolar

3 O PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO DO MUSEU

3.2 Institucionalização do museu: aproximações com uma forma escolar

As instituições implicam, além disso, a historicidade e o controle. As tipificações recíprocas das ações são construídas no curso de uma história compartilhada. Não podem ser criadas instantaneamente. As instituições têm sempre uma história da qual são produto.

Peter Berger e Thomas Luckmann Segundo Peter Berger e Thomas Luckmann ―a institucionalização ocorre sempre que há uma tipificação recíproca de ações habituais por tipos de atores‖ (BERGER e LUCKMANN, 1973, p.79). Os autores atribuem a origem da institucionalização, inicialmente, ao hábito, pois as ações quando tornadas habituais conservam um caráter de significado para os indivíduos, tornando-se um padrão. Assim é possível não só reproduzi-las, mas criar estratégias de controle sobre essas relações. ―Dizer que um segmento da atividade humana foi institucionalizado, que dizer que este segmento da atividade humana foi submetido ao controle social‖. (IBIDEM, p. 80).

O processo de institucionalização dos espaços escolares e museais, de alguma maneira, estão ligados, a uma ideia de pertencimento e a produção de uma experiência nacional - que surge com as narrativas de constituição dos Estados-nação. A institucionalização tem uma função de interdição, as instituições organizam e redistribuem a produção de discursos. Esse controle está presente nos recortes realizados sobre a memória, e no que deve ser preservado. Escolas e principalmente os museus, considerados até hoje como ―guardiões da memória‖, são instituições marcadas por uma forte política de memória.

A história do sujeito humano está intimamente relacionada ao hábito de guardar objetos, em diferentes épocas, e por diversos motivos. Não existe um consenso em relação ao surgimento dos museus, e qual deles deve ser considerado o primeiro. Segundo Lewis Geoffrey (2004), em uma breve contextualização histórica do surgimento dos museus:

O desenvolvimento da ideia de museu ocorre no princípio do segundo milênio AC em Larsa, na Mesopotâmia, onde cópias de antigas inscrições foram reproduzidas para uso educativo nas escolas daquele tempo. Os níveis de evidência arqueológica do século sexto AC em Ur, sugerem que não eram só os reis Nebuchadrezzar e Nabonidus que colecionavam antiguidades naquele tempo, mas também, pela mesma altura, existia uma coleção de antiguidades numa sala próxima da escola do templo, com uma lápide que descrevia inscrições mais antigas em tijolo, encontradas no local. Isto poderia ser considerado como uma ―etiqueta de museu‖ (GEOFFREY, 2004, P. 01).

A vertente mais tradicional de pesquisas na área museológica considera o Museu uma palavra de origem latina proveniente do termo Museum, que deriva do grego, mouseion, que era o templo dedicado às nove Musas, filhas de Zeus com Mnemosine, a deusa da Memória (LE GOFF, 1996). Eram considerados como um espaço sagrado, que tinham a função de local de devoção, de guarda, conservação e adoração das peças sagradas. Para alguns autores é nesse contexto que aparece pela primeira vez a função de Museu; para outros estudiosos os museus teriam começado com a lendária Biblioteca de Alexandria, o Museion, com seu complexo de salas de estudo, bibliotecas, jardim botânico, parque zoológico e observatório astronômico, (GEOFFREY, 2004).

Ao longo da Idade Média, a noção de museu quase desapareceu, mas o colecionismo continuou a existir, e os acervos considerados preciosos eram tidos como patrimônio, e poderiam ser convertidos, se necessário, para financiamento de guerras ou outras atividades estatais; outras coleções se formaram com objetos ligados ao cristianismo, tais como: relíquias de santos, manuscritos, aparatos litúrgicos, que eram guardados em catedrais e mosteiros. No renascimento com a volta dos ideais clássicos e a consolidação do humanismo, ressurgiu o colecionismo privado através de grandes comerciantes, integrantes da burguesia em ascensão. (SUANO, 1986.).

A constituição dos museus atuais está intimamente relacionada ao colecionismo dos Gabinetes de Curiosidade, ou Câmaras de Maravilhas, como eram conhecidos esses espaços. No século XVII, predominava nos gabinetes de curiosidade, simplesmente, o ato de colecionar, de juntar objetos, criava-se a possibilidade de conhecer o mundo desconhecido, exótico, sem o deslocamento físico. (SUANO, 1986.). Como uma forma de conhecer o que existia no mundo, os gabinetes não apresentavam uma preocupação com a nomeação e com a classificação, aspecto marcante nos museus atualmente.

Segundo Helga Cristina Gonçalves (2005), a falta de ordenamento e de classificação existiu apenas no início dos gabinetes. Com o tempo, essas coleções foram virando sinônimos de poder e de destaque social, sendo cada vez mais respaldadas pelo caráter científico. O aumento das coleções de estudo e investigação por ordenamento e classificação, fortalecia o esquema taxonômico proposto antes por Lineu, e muitos colecionadores tornaram-se especialistas em zoologia, botânica e história natural. Com isso, era preciso locais menos precários de conservação e mais adequados para abrigar os novos conhecimentos. A figura abaixo ilustra a diversidade do acervo de um Gabinete de Curiosidades:

Figura 01 Ilustração de um Gabinete de Curiosidades- 1599

Os gabinetes de curiosidade expressavam a cultura do colecionador e representavam uma estreita relação entre poder e conhecimento. Com o tempo, eles modificaram seu processo de ordenamento e classificação, para a formação de coleções mais específicas, e o estabelecimento de novos procedimentos de coleta e conservação. Esses espaços criavam a possibilidade de conhecer o mundo desconhecido, exótico, sem o deslocamento físico, e a classificação tornava possível o conhecimento de algo que antes era obscuro, portanto, não podia ser nomeado, dominado. De acordo com Maria Margaret Lopes (1997), é nesse contexto que os museus adquirem força e visibilidade:

[...] Constituindo um legado incrivelmente centralizado do entusiasmo pela classificação e pelo conhecimento enciclopédico do século XVIII, os museus foram espaços para a articulação do olhar dos naturalistas, transformando-se de gabinetes de curiosidades em instituições de produção e disseminação de conhecimentos, nos moldes que lhes exigiam as concepções científicas vigentes, alterando-se com elas em seus objetivos, programas de investigação, métodos de coleta, armazenamento e exposição de coleções. (LOPES, 1997, p. 18).

Figura 1: Ilustração de um Gabinete de Curiosidades (publicada por Ferrante Imperato em Dell‘Historia Naturale, Nápoles 1599)

Dessa maneira, os museus configuravam-se para além do simples caráter de armazenamento. Nesse momento, os museus atuavam principalmente como espaços restritos e elitizados de pesquisa, não existia um conceito sobre educação museal, mas era explicita a relação do museu com aspectos educativos. Nas primeiras experiências de museus, ainda não havia a discussão do museu como um espaço aberto, educativo, era restrito a estudos científicos, apenas para especialistas. Os primeiros movimentos que vão identificar e reconhecer o museu como um espaço educativo datam da segunda metade do século XX. A incorporação da comunicação, como elemento constitutivo do museu, junto á pesquisa, conservação, preservação, pode ser visto como um marco de transição, uma nova filiação conceitual e empírica.

Em um panorama mais geral, a primeira ideia de museu público, como espaço educativo, foi com Ashmolean Museum, criado em 1683, Oxford, no entanto, ele teve sua ação ligada mais à pesquisa do que ao público como agente do processo educacional. (Cury, 2013, p. 24). Mas a culminância do museu enquanto instituição pública com a finalidade de ―educar‖ os cidadãos foi com o Museu do Louvre (1793), em Paris. Existia a preocupação com o papel que os monumentos, as obras de arte, e os museus cumpriam na estrutura do antigo regime, se essas memórias deveriam ser preservadas ou destruídas, por representar os gostos e estilo de vida da burguesia e da nobreza.

No século XVIII, as idéias de que a transmissão do conhecimento seria a condição para o progresso influenciaram a criação de instituições científicas, onde se discutiam e divulgavam as descobertas da ciência. Assim, as coleções foram abertas à pesquisa, especializaram-se e passaram a ser utilizadas por outros segmentos sociais, como os cientistas, naturalistas e filósofos (VALENTE, 2003 apud BERTELLI, 2010, p.21).

Essas coleções foram repudiadas e muitas vezes até destruídas, mas depois foram compreendidas como um patrimônio nacional. Nesse período, a Europa passava por muitas transformações, o autoritarismo dos reis e da nobreza atingia níveis altíssimos, e tornava-se crescente a tensão popular, que iniciou um movimento de oposição na Inglaterra que se espalhou, até a culminância da Revolução Francesa. Esses movimentos foram importantes para a abertura dos museus e o acesso as grandes coleções clássicas, tornando-as efetivamente públicas. Essa abertura foi um ato político e tinha o intuito de ―educar‖ a nação francesa, a partir do renascimento.

A partir do século XIX, principalmente após a Revolução Francesa, os museus e as coleções passam a ter um novo papel na vida das nações e os objetos passam a ser valorizados

a partir de uma compreensão de patrimônio cultural e preservação do passado (VALENTE, 2003). O final do século XIX e início do século XX foram marcados por uma concepção de museu vinculada à função de preservação e de testemunho da memória, para guarda de acervos artísticos e históricos e, ao longo do século XX, foram fortalecidos os aspectos público e educativo da instituição (VALENTE, 2003). Houve um deslocamento da função inicial do museu de preservação para a de comunicação. Tal deslocamento aproximou esses espaços ainda mais de um modelo educativo.

O projeto de escolarização representou um instrumento decisivo de integração social, no quadro da simultânea construção dos estados e das nações, fornecendo-lhes novas fontes de legitimidade, por referência a uma soberania popular (CANÁRIO, 2005, p. 64). Os museus públicos em sua concepção inicial viveram um misto de templo do saber, e representantes do caráter nacional. Acreditamos que a proximidade dos museus com a estrutura de um modelo escolar, em seus processo de institucionalização, marcou a maneira do museu moderno pensar a educação, uma visão mais escolarizada. Não como um determinante, mas como um aspecto importante em sua composição.

A instituição escolar e museal apresentam claramente diferenças, em suas propostas, sua interação com o público, a forma de apresentar o conteúdo, o tempo e a periodicidade das ações, inclusive em relação à natureza das suas atividades. No entanto, são espaços quee apresentam pontos em comum. Nesse sentido, de acordo com Luis Oliveira Henriques: ―apenas à primeira vista, escola e museu nada terão em comum. Uma breve pausa e, logo, surgirão relações possíveis. Uma pausa maior e o título deste trabalho assemelhar-se-á à ponta visível do ‗iceberg‘‖. (HENRIQUES, 1996, p.13).

No processo de institucionalização museu, pelo menos em sua concepção inicial, as aproximações com a forma escolar são bem mais visíveis que os distanciamentos. A hegemonia da forma escolar é um fator que merece destaque, no modo como os museus têm assumido seu caráter educativo, reduzindo seu campo de atuação do ―vasto âmbito da cultura para o de complemento à escola, segundo os padrões e normas que regem a prática escolar‖ (LOPES, 1991, 448 apud BERTELLI, 2010, p.15).

A próxima seção vai analisar alguns sentidos atribuídos ao processo de escolarização do museu. Uma questão relevante nesse contexto é pensar se a aproximação do museu com uma estrutura escolar o distancia de uma especificidade do museal.