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A construção do conhecimento: a imaginação como produtora de sentido, através do uso metafórico da linguagem no pensamento de Paul Ricoeur.

4 NOÇÕES SOBRE A DIMENSÃO EDUCATIVA DO CAMPO MUSEAL BRASILEIRO

5. ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

5.5 A construção do conhecimento: a imaginação como produtora de sentido, através do uso metafórico da linguagem no pensamento de Paul Ricoeur.

(...) A expressão reta não sonha. Não use o traço acostumado. A força de um artista vem de suas derrotas. Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro. Arte não pensa: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. È preciso transver o mundo. (...)

Manoel de Barros

Em ―Tempo e Narrativa‖, Paul Ricoeur (2010), tendo como base as Confissões de Agostinho sobre o tempo, no livro XI, e a Poética de Aristóteles (sem negar as distâncias entre as obras, e responsabilizando-se por essa articulação), desenvolve a tese de que é a narrativa que torna acessível à experiência humana do tempo, o tempo só se torna humano através da narrativa. Assim, ―O tempo humano se articula de modo narrativo‖ (Ricoeur, 2010, p.05). O autor divide a obra em três volumes, sendo eles: a intriga e a narrativa história, a configuração do tempo na narrativa de ficção e o tempo narrado.

Para Ricoeur a partir da narrativa o ato da escrita historiográfica não só ganha similitude com o verossímil, mas cria uma relação entre a intenção e a ação. Ricoeur analisa a configuração das narrativas históricas, em particular o debate sobre o eclipse na abordagem da historiografia francesa com a filosofia analítica inglesa, especialmente os autores W. Dray, Von Wright e Danto. Esses autores, segundo Ricoeur, apesar de insistirem na dimensão narrativa, ainda fazem uma separação entre explicar e compreender, diferente da posição de Ricoeur, que não desvincula. Assim, Ricoeur demonstra a interdependência entre os fatos, pressuposto essencial na estrutura das frases narrativas.

As frases narrativas não são propriamente narrativas, pois os fatos sem ligação entre si não são a narrativa. Ricoeur traz a intriga enquanto elemento de ligação crucial nessa construção. Ela faz parte da tessitura do texto histórico, faz uma referência cruzada entre a narrativa de ficção e histórica. Existindo uma relação entre mythos (enredo, trama, intriga) e

mímesis (imitação, representação da ação). Sendo o mythos um agir sobre os esquemas

narrativos que conformam nossas ações, ―o agenciamento dos fatos em sistemas‖.

A compreensão dos conceitos de mímesis e mythos é fundamental para entender o pensamento de Ricoeur. Para ele o entendimento de mímesis não se restringe somente a réplica do idêntico, mas no sentido aristotélico, como parte da natureza humana. Deve-se entender a mímesis como imitação criadora, não como representação, mas uma abertura para a

ficção. Nesse sentido, a educação museal pode ficar aberta ao conhecimento narrativo. Sendo experiência e narrativa a construção discursiva de uma ficção. ―Al tratar la cualidad temporal de la experiência como referente común de la historia y de la ficción, uno en un mismo problema ficción, historia y tiempo‖ (RICOEUR, 2000a, p. 191). Para Ricoeur:

Decir que la ficción no carece de referencia supone desechar una concepción estrecha de la misma que relegaría la ficción a desempeñar un papel puramente emocional. De un modo u otro, todos los sistemas simbólicos contribuyen a configurar la realidad. Muy especialmente, las tramas que inventamos nos ayudan a configurar nuestra experiencia temporal confusa, informe y, en última instancia, muda. «¿Qué es el tiempo? —se preguntaba Agustín—. Si nadie me lo pregunta, lo sé; si alguien me lo pregunta, ya no lo sé.» En la capacidad de la ficción para configurar esta experiencia temporal casi muda, reside la función referencial de la trama. Volvemos a encontrar aqui el vínculo entre mˆythos y mímesis en la Poética de Aristóteles: «La fábula, dice él, es la imitación de la acción» (Poética, 1450 a 2). La fábula imita la acción en la medida en que construye con los únicos recursos. (IBIDEM, p. 194)

Paul Ricoeur em ―A Metáfora viva‖ (2000b) estrutura a metáfora em três níveis, assim, as mudanças de significações, são feitas inicialmente no sentido da palavra, depois da frase, até chegar ao sentido do discurso. A metáfora seria um desvio do uso habitual da palavra; um empréstimo de sentido; uma substituição de uma palavra (ausente) por outra (metafórica) Ricoeur (2000b). Em sua análise a atividade mimética (mímesis I, II e III), que de maneira simplificada significa: mímesis I Pré – reflexivo- mundo prático, ainda não explorado pela atividade poética, construir o passado- ainda não narrado (pré-figuração); a mímesis II é o ato de construção poética e narrativa, nova composição de intrigas, de criação (configuração), corte epistemológico, e mímesis III a atividade de leitura, centrada no leitor (refiguração):

Toda mímesis, mesmo criadora, sobretudo criadora, está no horizonte de um ser no mundo que ela torna manifesto na mesma medida em que ela eleva ao mythos. A verdade do imaginário, a potência de revelação ontológica da poesia, eis o que, de minha parte, vejo na mímesis de Aristóteles. É por ela que a léxis é enraizada e que os próprios desvios da metáfora pertencem à grande tarefa de dizer o que é. Mas a mímesis não significa apenas que todo discurso está no mundo. Ela não preserva apenas a função referencial do discurso poético. Enquanto mímesis physeos, ela liga essa função referencial à revelação do Real como ato. É função do conceito de physis, na expressão mímesis physeos, servir como índice para esta dimensão da realidade que não se manifesta na simples descrição do que nela é dado. Apresentar os homens ―agindo‖ e todas as coisas ―como em ato‖, tal bem poderia ser a função ontológica do discurso metafórico. Nele, toda potencialidade adormecida de existência parece como eclodindo, toda capacidade latente de ação, como efetiva (RICOEUR, 2005, p. 74-75).

A concepção da tríplice mímeses em Paul Ricoeur no ajudara a compreender quais construções de sentidos estão sendo produzidas sobre as articulações narrativas que compõem esse campo conceitual sobre educação museal. Lembrando que Ricoeur não desconsidera a recepção - mimese III, o leitor. A Metáfora – evoca memórias, vai no passado para trazer elementos. Nesse sentido, a educação museal - considerando a efetividade social enquanto discurso, pode abrir a possibilidade para determinados investimentos narrativos.

Para Ricoeur existe um agenciamento dos fatos, não existe uma equivalência natural entre as coisas. A narrativa agencia os fatos, a inteligibilidade é a lógica estrutural da narrativa. Ricoeur coloca a importância de falar dentro de esquemas de compreensão, pois toda explicação precisa de um ambiente de compreensão Essa visão de Ricoeur pode se articular com o ambiente metonímico em Laclau, pois a existência de algo já configurado é a condição necessária para surgirem novas concepções. O tempo para Ricoeur é construído na alma, não existe isoladamente, é a narrativa que cria condições de estruturar o tempo.

Paul Ricoeur estendeu a noção de texto para todas as objetificações da existência humana, para ele, a vida humana é análoga a um texto, pois assim como um texto, uma vida expressa um sentido que pode, em princípio, ser explicitado por meio da interpretação. Assim, o problema da leitura e compreensão de um ―texto‖ se torna uma nova metáfora para todos os tipos de compreensão, incluindo a compreensão dos fenômenos sociais e culturais. A metáfora é contaminada por movimento de contigüidade, precisa estar dentro de esquemas de compreensão, é preciso existir uma relação entre metáfora e metonímia para dar coerência ao texto.

Ricoeur estabelece uma complementariedade entre compreender e explicar. Compreender remete a estrutura relacional. Sendo o conceito de followability um principio estrutural para existir coesão/coerência na narrativa. O Modelo nomológico não reconhece a inteligibilidade da narrativa. Nos processos metonímicos – tempo construído na alma (Agostinho). O investimento metonímico é feito temporalmente - distentio - distensão na alma, enquanto o discurso ideológico tenta promover o fechamento, sutura do social – intentio.

A imaginação é um ponto fundamental para a construção da história, segundo Ricoeur, pois seria necessário construir relações entre o tempo vivido e o tempo do mundo, com o intuito de tornar o tempo legível. A história é um encadeamento de memórias, os museus representam um tipo de conhecimento institucionalizado, que se assemelha ao escolar. No entanto, a educação museal pode ser uma possibilidade de agenciar os fatos de maneira diferente, criar uma nova composição de intrigas. Pois, à medida que as narrativas se deparam

com contextos diversos, novas tramas, assim são capazes de gerar alterações, inovações que ―jogam‖ com as regras existentes em nome de sua própria coerência.

O conceito de imaginação, na tradição filosófica ocidental, é considerado um tema sem muita relevância, ela distingue dois tipos de imaginação; a imaginação reprodutora, ou seja, a faculdade mental de evocar, sob a forma de imagens, objetos conhecidos por uma sensação ou experiência anteriores (memória); e a segunda como imaginação produtora, faculdade pela qual a mente cria e recria, ainda que a partir de formas sensíveis e concretas, novas imagens, sínteses originais de imagens, símbolos e poesia. Para Paul Ricoeur (2002) a imaginação possui um papel de constituição e reinterpretação do real, não podendo ser considerada de matriz inferior, pois ela é produtora de sentido.

Mesmo Husserl pode dizer: ―a ‗ficção‘ é o elemento vital da fenomenologia, como de todas as ciências eidéticas‖. Em conclusão, o poder do ‗quase‘ parece ser a fonte comum da redução transcendental, ou epoché, e da redução eidética. É mediante o próprio poder da ficção que a crença natural é colocada à distância e que o fato é submetido às variações imaginativas reveladoras do invariante eidético. Em ambos os casos, o imaginário é a ‗casa vazia‘, que permite ao jogo do sentido iniciar. (IBIDEM, p. 55)

Para Ricoeur, todas as teorias da imaginação (produtora e reprodutora) cometeram o equívoco ou de identificar a imagem como uma percepção evanescente, ou de identificá-la com a evocação de uma coisa ausente, obscurecendo a diferença entre imaginário e real. Ricoeur aborda a imaginação como produtora de sentido através do uso metafórico da linguagem, vinculando-a com sua teoria da metáfora viva.

A imaginação será o mediador entre esses dois termos, distantes em sentido lógico, e a partir dessa função de síntese teremos a inovação semântica: o novo que surge na linguagem. Essas metáforas vivas possuem a forma de uma tensão entre sujeito e predicado, portanto requerem um ajuste em nossa compreensão. Do conflito semântico inicial produzimos, através da imaginação, imagens poéticas que animam nossa experiência interior. Essa ligação entre o esquema kantiano e o esquema que Ricoeur tem um papel ontológico. (SANFELICE, 2014). Vinicius Oliveira Sanfelice (2014) em sua análise da ―Metáfora e imaginação poética em Ricoeur‖, destaca:

Na hermenêutica fenomenológica de Paul Ricoeur, a imaginação faz parte do projeto de revelação das estruturas humanas fundamentais. Também há uma relação especial entre a hermenêutica e a arte: a obra de arte participa do trabalho de compreensão pela sua capacidade de promover a passagem do momento arqueológico da hermenêutica para o teleológico. Esta capacidade

é análoga ao sentido novo que é produzido pela metáfora através da mímesis – a produção artística e o novo significado são instrumentos que promovem sentido referindo à realidade, sim, mas também a ultrapassando. O engendrar do escritor quando realiza uma poesia, por exemplo, causa um efeito de ressonância que a primeira vista parece debilitar o sentido, como um devaneio. Nessa estratégia do discurso metafórico está contida o poder heurístico desdobrado pela ficção. A criação momentânea de sentido é o fenômeno característico da linguagem, e através desse fenômeno se alcança algo extralinguístico. (SANFELICE, 2014, p.13)

Ricoeur pensa o enunciado metafórico como uma atribuição predicativa impertinente, transgressora, por relacionar campos semânticos heterogêneos e logicamente incompatíveis. A linguagem contém um papel ontológico, e sabemos que sintetizar termos heterogêneos em um enunciado metafórico é ver como, a suspensão dessa linguagem de primeira ordem também é suspensão de um ―mundo‖ de primeira ordem, que Ricoeur denomina o mundo da vida. O trabalho da imaginação produtora é permitir que experimentemos visões de mundo reveladas pela leitura de textos poéticos e voltarmos para um mundo da vida transformado, redescrito. Nesse sentido, para Ricoeur a criatividade pode ser entendida como o espírito em sentido estético. Este espírito é o princípio vivificante no ânimo que caracteriza o gênio. Assim entendida a criatividade está presente mais no esquema, produto da imaginação, que no conceito:

O fundamento mais geral da dimensão estética no pensamento de Ricoeur é a capacidade da imaginação de produzir significações e inteligibilidade para a vida. O ―Ver como‖, constituído pela imaginação produtora e pela função icônica da linguagem, é uma ampliação que ocorre ao nível linguístico, mas o excede, na forma sensível, ao ―pôr sob os olhos‖. O caráter icônico da semelhança entre termos opostos (impertinência da qual a metáfora é a resolução, e a nova pertinência o ―ver‖ através da diferença) torna a imaginação um momento semântico dentro do enunciado metafórico, apresentando a dimensão verbal da imagem – este é o momento em que sentido e sensível são articulados, tarefa que, para Ricoeur, pertence essencialmente à metáfora (SANFELICE, 2014, p.77)

Pensar a construção do conhecimento a partir da imaginação, como propõe Ricoeur é considerar que a imaginação ascende não apenas como síntese, mas como constituição dessa identidade. A imaginação cria a possibilidade de surgir novas metáforas. A forma escolar não promove vínculos com o favorecimento de processos imaginativos. Ela está centrada na promoção de reproduções. A educação museal, tem potencial para explorar esse aspecto, mas, parece não promover a imaginação enquanto uma categoria importante. A ausência da palavra imaginação no cenário museal de alguma maneira explicita isso.

A maior parte das tecnologias disciplinares nasce da experiência social, os dispositivos, implicam um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito. Para Michel Foucault (2005) a disciplina não tem só um aspecto negativo, nossa experiência com a disciplina foi exacerbada na modernidade. Sendo o dispositivo em si mesmo o resultado do cruzamento de relações de poder e de relações de saber, que sempre tem uma função estratégica concreta. Nesse contexto, tanto a escola quanto o museu estão inscritos enquanto dispositivos disciplinares.

A sociedade assume cada vez mais aspectos disciplinares, são criadas estratégias para fazer do tempo, do corpo e da vida dos homens algo que seja força produtiva. A sociedade disciplinar para Foucault não é só uma prática social, mas de uma subjetividade. Em todos os níveis sociais existe a experiência disciplinar, o aspecto disciplinar também é um aspecto subjetivo, é construído culturalmente, faz parte de nossa constituição identitária, não nascemos indivíduos disciplinados, nos tornamos.

Para Foucault as relações de poder são a essência da sociedade, em suas conferências, ele aborda a importância das relações sociais como forma de entender como foi instituído o poder em nossa sociedade, mostrando que o mesmo abrange as restrições ao conhecimento, que são formas de garantir a supremacia na realidade social, distinguindo as classes, caracterizando o poder como parte fundamental na estruturação da sociedade. A disciplina, desse modo exacerbado, que Foucault chama atenção, produz restrições ao modo como o conhecimento, pode ser construído. E isso implica, em medidas restritivas a imaginação. Dessa forma a imaginação é rechaçada.