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A construção do futuro de Kahn após a “Guerra Termonuclear”

II. O futuro impensável: imaginando o futuro deformado

II.3. A construção do futuro de Kahn após a “Guerra Termonuclear”

O OTW foi a primeira obra em que Kahn apresentou grande parte da visão exposta aqui e foi com ela que Kahn atingiu sua maior fama e entrou em grandes polêmicas. Era também um livro pelo qual ele nutria orgulho.131

O OTW foi lançado em Dezembro de 1960, e, conforme Ghamari-Tabrizi, foi o primeiro livro a descrever as etapas possíveis de uma guerra nuclear. Após o lançamento, Kahn apareceu no rádio, na TV, em revistas e jornais, recebeu diversas cartas de pessoas de diferentes áreas, recebeu convites para professor adjunto, para palestras e eventos e, por fim, foi objeto de diversas críticas e resenhas. Kahn foi considerado por alguns como um cientista corajoso e heroico, um humanista, um patriota. Foi elogiado, ou pelo menos bem recebido, por alguns pacifistas, como Bertrand Russel. Já, outros, questionaram sua saúde mental e sua ética, consideraram o livro um mal e Kahn como o Eichmann dos EUA, um psicopata e um computador humano. A filha de Kahn confidenciou que algumas crianças diziam que ela era filha do “monstro”.132

Algumas críticas foram mais comedidas, centradas e pontuais. Max Lerner, por exemplo, reconheceu em Kahn méritos sobre a análise militar, porém, falhas nas análise

130 STEVENSON, J. 2008, p. 96. 131 BRUCE-BRIGGS, B., 2000, p. 111.

132 BRUCE-BRIGGS, B., 2000, p. 111-129; GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 18-20, 36-37, 292-307, 17-21,

diplomáticas e de negociação e controle internacionais. Já para o historiador Christopher Lasch, o pensamento de Kahn tinha um viés prático que poderia imprimir realidade a suas previsões e possibilidades, pois pensar as possibilidades de uma guerra poderia não a evitar e, pelo contrário, criar a sensação de iminência dela. O teólogo Deats Jr. criticou o livro em sua metodologia de trabalho, identificando uma ausência de documentação que pudesse ser comprovada e apontou a existência de uma preocupação moral, que era, todavia, nublada pela abordagem matemática e pela preocupação com problemas militares. Para o geógrafo Roy Wolfe, o OTW propunha caminhos perigosos, ainda mais se fossem adotados. Além disso, aponta que Kahn não teve cuidado com limites territoriais, reduzindo o mundo a uma massa amorfa de fronteiras. Acusou Kahn também de uma análise altamente economicista em detrimento da consideração de aspectos culturais que, para Wolfe, seriam os que conectariam passado e futuro.133

Outros, contudo, foram mais apologéticos. O político inglês John Strachey defendeu Kahn, respondendo à questão de Newman – que abre esse capítulo – que, sim, Kahn existia e tornara-se alvo de algumas críticas, pois abordara a questão nuclear por um viés que era o de encontrar uma maneira de evitar uma guerra nuclear geral sem se render às forças comunistas. O jornalista especializado em questões militares, John Norris, seguiu a mesma linha de Strachey e afirmou que o livro deveria interessar a todos que se preocupavam com as questões de segurança, uma vez que trazia ao debate público a questão vital da estratégia nuclear. Para Spingarn, especialista em direito internacional na questão de controle de armas, Kahn foi contra consensos de estrategistas e especialistas de defesa em diversos assuntos, como, por exemplo, pensar na existência e nas possibilidades de formas da guerra nuclear. Bull, um professor australiano de relações internacionais, acreditava que o OTW possuía um aspecto racional importante, pois mostrava que a “política Americana em relação à guerra termonuclear não pode ser a de „dissuasão apenas‟; ela deve também incluir o poder e a vontade de conduzir tal guerra de uma forma racional”134. Outros críticos foram no mesmo sentido de análise, reconhecendo os méritos de Kahn ao encarar de forma objetiva os problemas que poderiam decorrer de uma guerra atômica caso a dissuasão falhasse, não a interpretando como um fim dos EUA e do mundo, mas como um percalço que poderia ser

133 LERNER, M. 1960; LASCH, C., 1961, p. 578; DEATS Jr., P. 1962, p. 171; WOLFE, Roy I. Un geógrafo

analiza a Herman Kahn. Foro Internacional, Vol. 3, No. 1 (9) (Jul. - Sep., 1962), pp. 145-158), p. 145-146, 148.

134 “American policy in relation to thermonuclear war cannot be one of 'deterrence only'; it must also include the

power and the will to conduct such a war in a rational way”. Tradução nossa, BULL, Hedley. On Thermonuclear War. by Herman Kahn Review. International Affairs (Royal Institute of International Affairs) Vol. 37, No. 4 (Oct.,1961), pp. 491-492, p.491.

superado. Para Spigarn, o grande problema de Kahn, nesse sentido, foi ser alvo de confusões

entre a sua análise e o seu desejo. Além do fato de encarar um problema de forma ampla e direta, outro ponto que merece destaque aqui é o reconhecimento por diferentes críticos da presença de um projeto ocidental, aqui, ainda somente de defesa. Para J.H. Thompson, jornalista e editor de questões militares, e Buchan, especialista em assuntos de defesa, o OTW foi a maior contribuição para o entendimento da nossa época por meio da SA.135

Kahn foi elogiado por alguns por essa sua construção histórica pensada para o futuro. Para Strachey, há um trabalho digno de elogio a Kahn na sua exposição histórica, uma vez que fornece os elementos para pensar os surgimentos das guerras de uma forma causal. Pensando a questão da continuidade da história, para Bull, a visão de Kahn, apesar de menos confortável do que aquela que defendia que a possibilidade de guerra nuclear impedia a si mesma, era a que parecia ser mais factível com a história. Segundo Lasch, os exemplos de Kahn sobre o futuro acabam sendo sempre otimistas. Para Wolfe, o OTW queria influenciar os rumos da história, porém essa tentativa de Kahn e da RAND seria em vão, já que é um futuro sem solução, decorrente da própria abreviação do tempo, o que, para ele, então, fazia com que a Defesa Civil fosse um problema insolúvel, já que não teria como planejá-la de forma tão ampla.136

Das críticas, a mais polêmica, ou pelo menos a mais conhecida – segundo Bruce- Briggs foi uma das resenhas mais famosas já escritas – foi a de James Newman, na Scientific American. James Newman era um jovem advogado que se dedicou a estudar a energia atômica e era tido muitas vezes como matemático pela sua antologia The World of Mathematics. Em Maio de 1948, quando Gerard Piel lançou a revista Scientific American, contratou Newman para dirigir o departamento de resenhas de livros. Era de praxe a revista ter uma resenha de algum livro sobre as consequências políticas e sociais dos avanços científicos. O livro de Kahn foi um dos livros resenhados. Piel, que já possuía um histórico de polêmicas, quando, por exemplo, falou da bomba H mesmo com a resistência do FBI e do governo Truman, ficou satisfeito com a resenha de Newman.137

135 NORRIS, J. G., 1960; LERNER, M. 1960; KAHN, H., 1962, p. 9-10; KAHN, H., 1971, p. 7-8; SINGER, J.

David. The Strategic Dilemma: Probability versus Disutility. The Journal of Conflict Resolution, Vol. 5, No. 2 (Jun., 1961), pp. 197-205, p.200, 201; SPINGARN, J. 1961; STRACHEY, John. The Other Choice Than Surrender. The Washington Post, ProQuest Historical Newspapers, Jul 16, 1961; p. e7; GELLNER, J. 1961; BUCHAN, A. Onward and Upward with Herman Kahn. New Republic, 1965, 152(23), 19-21, p. 19; THOMPSON, John H. Directions for the Calculated Risk Game. Chicago Tribune, ProQuest Historical Newspapers, May 16, 1965,p. O1.

136 STRACHEY, 1961; BULL, 1961, p 492; LASCH, C., 1961, p. 577-578; WOLFE, R. I., 1962, p. 145, 155-

156.

A resenha de Newman tem vários pontos polêmicos, entre eles, a afirmação de que o livro era deplorável. Newman enfatizava que não podia imaginar como alguém poderia escrever ou pensar daquela forma, chegando a cogitar que tudo aquilo poderia ser uma brincadeira de mau gosto. Especula, ainda, que talvez Kahn de fato não existisse, pois o livro parecia um trabalho de grupo. Caracteriza o livro, entre outras coisas, como pomposo, rude, claramente da Força Aérea, pretensioso, engenhoso, irônico e selvagem. A crítica de Newman ao OTW, portanto, não é pontual ou pormenorizada, mas é um ataque total ao livro como algo deplorável, um tratado que ensina a planejar, executar, abandonar e justificar o assassinato em massa. Decreta que o livro é mal e tenebroso, permeado por uma irracionalidade sanguinolenta que ele nunca lera antes.138

Kahn, em resposta, mobilizou seus editores em Princeton, que afirmaram sentir orgulho pela publicação do livro. Além disso, Kahn também pediu direito de resposta no Washington Post e obteve-o. Sua resposta também foi publicada em outros jornais. Todavia, a Scientific American não deu esse espaço para Kahn. No começo de Março de 1961, Kahn tentou pela primeira vez obter um direito de resposta na revista, ao enviar uma carta para o editor da revista, Dennis Flanagan. O tom era o mesmo da resposta publicada nos jornais: Kahn alegava que Newman não refutara nenhum dos argumentos principais do livro e apenas fazia censuras morais. Para expor as dificuldades e os caminhos técnicos e metodológicos do que analisava, Kahn sugeriu escrever um artigo cujo título seria “thinking about the unthinkable”. A resposta do editor foi negativa e direta. Ele afirmava que pensava conforme o título que Kahn propusera, mas de maneira reversa, ou seja, dedicando-se a prevenir a guerra nuclear, por isso, negava a publicação de Kahn.139

Kahn tentou novamente, afirmando que não havia como evitar a guerra nuclear sem pensar nela e ofereceu-se para debater a questão com o editor pessoalmente. Houve uma nova negativa, com a frase do editor afirmando que eles “deveriam simplesmente concordar em discordar”140. Contudo, Kahn insistiu mais uma vez, sem resultados. Então, o diretor da editora da Universidade de Princeton fez uma solicitação para que Flanagan encontrasse Kahn, baseando-se nos mesmos argumentos de Kahn de que a resenha de Newman tinha sido sobre o autor e não sobre o livro e sobre o pensamento acerca da guerra e não sobre as ideias do OTW. Flanagan aceitou considerar a resposta de Kahn em uma carta para o editor.141

138 NEWMAN, J. R. Feb 26, 1961; p. e7. 139 GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p.287-288.

140 “…should simply agree to disagree”, tradução nossa, GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 289. 141 Ibid., GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 288-289.

Nesse mesmo tempo, Kahn, conforme Ghamari-Tabrizi, tomara conhecimento que Piel e Newman sentiam imenso orgulho da resenha e tinham mandado cópias para vários conhecidos. Frente a isso, a nova carta de Kahn para Flanagan comentava o hábito que Newman tinha de discutir Kahn em ambientes semi-públicos ou em encontros privados, mas que fugia de debates públicos. Frente a uma nova negativa, Kahn, então, enumerou o que considerava errado na resenha de Newman, por meio de uma carta. Porém, a carta não foi publicada e Piel justificou alegando que não tinha interesse em publicar coisas de Kahn, pois ele já possuía bastante espaço para propagar suas ideias e alegava que também era ideologicamente oposto às ideias de DC e da RAND ou de qualquer outro lugar. Também declarava se opor ao emprego de cientistas na área de atuação de militares, defendendo um completo desarmamento.142

Amigos de Kahn na RAND, assim como outras pessoas, como Etzioni, ficaram a favor de Kahn na contenda e escreveram cartas para a revista. Bernard Brodie, um dos amigos de Kahn na RAND, chegou a cancelar a assinatura que tinha da Scientific American. Todavia, outros da RAND foram contra Kahn, como Richard Bellman, da área de matemática aplicada e um dos pioneiros da programação dinâmica, que enviara críticas contra o OTW para jornais e para a editora de Princeton – a qual respondeu, na figura de seu diretor, defendendo a publicação do livro e a abordagem de Kahn – afirmando que a visão defendida no livro não era uma visão compartilhada pela RAND, uma vez que, nas palavras dele, “eu mesmo não tenho essas visões trogloditas e apocalípticas de Kahn”143.

Os livros posteriores de Kahn, principalmente o TATU, funcionaram também como resposta indireta a Newman. Há, ainda, uma resposta direta, em uma das edições do TATU, à pergunta inicial de Newman. À questão se Kahn existe, ele responde que sim e ganhou quatro quilos e meio. Além disso, Kahn diz que riu bastante ao ler a resenha, pois não acreditava que era séria. Depois, em uma segunda leitura, afirma ter ficado zangado. Deu para sua esposa ler e afirma que ela também riu. Ao fim, Kahn abordava a questão toda de forma bastante irônica, sem nenhuma resposta substancial, mostrando até certo desprezo com a crítica de Newman,

142 BRUCE-BRIGGS, B., 2000, p. 115-117; GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p.289-290, STEVENSON, J. 2008,

p. 91.

143 “I myself do not have these troglodytic, apocalyptic visions of Kahn”, tradução nossa, BELLMAN. Richard.

Letters to the Editor: Design in Dispute. The Washington Post. ProQuest Historical Newspapers, Mar 5, 1961, p.E4; GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p.208, 290-291; BRUCE-BRIGGS, B., 2000, p.115-116, STEVENSON, J. 2008, p. 91. Conforme Bruce-Biggs, nem Bellman, nem Newman leram o livro inteiro, apesar do primeiro ter ido mais longe que o segundo e os dois se parabenizaram mutuamente pelas críticas contrárias ao livro. Além disso, Bruce-Biggs, citando Kahn, afirma que Bellman nunca participou de discussões da área de guerra estratégica na RAND.

ao afirmar que, após ela, toda a noite, a sua família tinha o mesmo cerimonial: queimar uma página do livro de matemática de Newman.144

Toda essa polêmica do livro foi pensada e usada pelos editores para divulgar o livro, tornando-o um sucesso. O livro também obteve uma boa vendagem em seus primeiros três meses, passando das quatorze mil cópias, e de vinte e três mil cópias nos primeiros dezoito meses. Apesar de ser o livro pensado para o público militar, ele conseguiu ir além desse círculo. Em 1961, o livro entrou na lista dos 250 livros do ano, na sessão de “Politics and world affairs”, da lista do NY Times e em 1961 foi publicado na Inglaterra pela editora da Universidade de Oxford.145

Além do meio público, o livro também foi polêmico dentro da RAND. Wohlstetter, por exemplo, era contra a publicação do livro. Ghamari-Tabrizi relata que ele disse a Kahn, após ler um rascunho do OTW, que a única coisa a se fazer com aquilo era queimar. Ghamari- Tabrizi afirma ainda que Wohlstetter ficou estupefato ao ver que Kahn se apropriara146 de algumas de suas principais ideias em uma linguagem menos refinada. Contudo, conforme Ghamari-Tabrizi, como ele era um homem educado, manteve-se amigo de Kahn. Já segundo Bruce-Briggs, houve um racha entre Wohlstetter e Kahn após o lançamento do OTW, apesar de não ser possível atribuir o problema a isso somente.147

Kahn nunca reconhecera qualquer apropriação indevida, porém, afirmava que o trabalho na RAND era interdisciplinar e muitas vezes a partir de opiniões contrárias. Assim, muitos dos argumentos presentes eram oriundos do grupo com o qual Kahn se relacionava, como Wohlstetter, Bernard Brodie, um dos estrategistas militares da RAND, e Thomas Schelling, economista e professor de assuntos internacionais. Além disso, o livro era também

144 GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 45; BRUCE-BRIGGS, B., 2000, p. 114; Cf. Afterword, KAHN, Herman.

Thinking about the unthinkable.New York: Avon, 1962.

145 A SELECTED List of 250 Books of the Year: A Christmas Guide. New York Times, ProQuest Historical

Newspapers, Dec 3, 1961, p. BR70; GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 283-284, 237 291-292, BRUCE- BRIGGS, B., 2000, p. 125, 117.

146 Ghamari-Tabrizi escreve exatamente “Para o espanto de Wohlstetter, Kahn surrupiara aproximadamente cada

uma de suas principais ideias” (tradução nossa, “To Wohlstetter‟s horror, Kahn had poached nearly every one of his major ideas”, GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 69), que parece dar um ar mais grave do que uma apropriação de ideias. Ela afirma isso por uma entrevista feita por ela com um terceiro, Gustave Shubert, que estava na sala no momento de uma conversa de Wohlstetter e Kahn. Preferi pôr a situação em outros termos, por falta de outras referências ao assunto e pela própria atitude de Wohlstetter de continuar próximo de Kahn. Todavia, não parece nenhum absurdo, como já vimos e veremos, que Kahn tendesse a um trabalho mais coletivo e que isso acabasse sendo sintetizado sobre seu nome, prática que se tornará inclusive uma estratégia editorial no HI, como veremos em outro capítulo. Já Bruce-Biggs afirma que Wohlstetter nunca publicara um livro, assim, não era possível ele se sentir responsável por ideias que eram debatidas em grupo (BRUCE- BRIGGS, B., 2000, p. 128). Porém, Bruce-Biggs ao citar outros membros do Insituto que Kahn criaria, um deles disse que “trabalhar com Herman é como ter um cleptomaníaco como colega de quarto” (traduçãoo nossa, “working with Herman is like having a kleptomaniac for a room mate” (BRUCE-BRIGGS, B., 2000, p. 267).

produto de uma temporada em Princeton e de palestras dadas sobre o tema durante dois anos. Após seus primeiros livros, Kahn se tornou o estrategista mais conhecido, acima de seus amigos e colegas.148

As influências dos amigos não eram somente em relação ao conteúdo, mas nas formas de expô-lo também. Ghamari-Tabrizi mostra como existia entre esses amigos uma ironia, muita vezes por um viés sexual, com os temas da guerra atômica. Todavia, isso ficava entre eles. Foi chocante, então, quando Kahn, em uma palestra para oficiais disse: “vocês não tem „war plans‟, vocês têm „war-gasms‟149. Por causa dessa brincadeira em público, Kahn foi repreendido por Brodie. Ou seja, era uma forma de tratar um assunto sério por uma ótica satírica e irônica, que era uma marca dos briefings e da personalidade de Kahn: um homem de fala e raciocínio rápidos e embolados, alegre e imenso. Inclusive, segundo Bruce-Briggs e Ghamari-Tabrizi, o filme Dr. Strangelove tornou-se comédia após uma conversa de Kahn com Kubrick. E esse aspecto sexual da guerra aparece também no subtítulo do filme “How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb”, assim como na afirmação de Etzioni sobre Kahn.150

A RAND não considerava o livro como um representante de sua visão e, inclusive, o livro trouxe problemas para Kahn dentro da corporação. Com os manuscritos das palestras de Princeton em mãos, já com as sugestões de amigos, havia a dificuldade de convencer a Força Aérea e a RAND a publicarem-no. O manuscrito passou pelo crivo da Força Aérea, que solicitou que algumas palavras fossem mudadas. Antes de enviar para a revisão final do Office of Security Review do DoD, o vice-presidente da RAND requisitou que Kahn anexasse uma carta alertando que o livro não era da RAND, mas um trabalho individual. Segundo fonte apresentada por Ghamari-Tabrizi, essa posição da RAND era uma forma de não entrar em conflito com a Força Aérea. Assim, qualquer problema que surgisse por causa do livro, seria uma questão para Kahn resolver.151

Além dos problemas com o lançamento do OTW, já no final dos anos 50, Kahn estava infeliz com a burocracia que constrangia a RAND, principalmente pela sua característica de ser uma organização voltada a prestar serviços ao governo, o que estreitava o seu escopo de pesquisas. Além disso, o ambiente parecia pesado, amigos estavam saindo da. Por fim, uma não aprovação de uma proposta de curso que Kahn elaborara também o chateou. A RAND

148 GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 209; SPINGARN, J. 1961; STEVENSON, J. 2008, p. 81-84. 149 “… you people don‟t have war plans, you‟ve go war-gasms”, tradução nossa, GHAMARI-TABRIZI, S.,

2005, p. 238.

150 GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p.37-43, 274-276; BRUCE-BRIGGS, B., 2000, p.183-185. 151 BRUCE-BRIGGS, B., 2000, p. 95-96, 98-99; GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p.206-207.

não parecia mais atender seus anseios, como ele deixa transparecer no OTW, ao afirmar que não havia nenhuma organização trabalhando para o governo que poderia fornecer o staff adequado para trabalhar sobre os temas abordados no livro.152

Porém, a insatisfação não estava só do lado de Kahn. Frank Collbohm, presidente da RAND no período, por sua vez, estava descontente com a administração frouxa de projetos por Kahn e com sua falta de habilidade em cumprir os prazos – hábitos, conforme Smith, que nunca foram abandonados. Kahn, posteriormente, reconheceu a existência dos desentendimentos com Collbohm e, por isso, segundo ele, muitos dos estudos que foram a base do OTW foram realizados sob objeções da RAND e da Força Aérea. Segundo Kahn, o presidente da RAND tinha objeções ideológicas e pessoais à defesa civil, assim como a Força Aérea. Conforme Kahn, várias pessoas na RAND enfrentaram problemas por causa dos estudos da defesa civil devido à animosidade do presidente Collbohm, que impôs algumas restrições ao estudo do tema.153

Como Kahn narra, o evento que determinou sua saída foi quando ele era membro de um grupo dedicado ao projeto de estratégia de força aérea, sendo ele responsável pela parte de defesa civil. Quando o presidente recebeu o resultado da pesquisa, ele, segundo Kahn, afirmou que Kahn deveria trabalhar como era esperado e que, então, as coisas ficariam bem. Ou seja, era um pedido velado para que Kahn parasse de propor ideias que contrariassem as