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II. O futuro impensável: imaginando o futuro deformado

II.2. b A construção para evitar o deformado futuro

É, então, pensando o efeito da bomba termonuclear e os efeitos mundiais de uma guerra desse tipo que Kahn traz a questão, de forma detalhada, de como seria a recuperação caso uma guerra como essa acontecesse. Conforme Kahn, a guerra seria curta, durando provavelmente entre um dia e um mês. Nesse sentido, Kahn defendia que o estabelecimento militar deveria, além de sobreviver, garantir sua permanência. Ele deveria resistir para lutar uma guerra longa (o que Kahn entende entre dois e trinta dias) ou uma guerra curta (algo entre quinze minutos e um dia). Contudo, essa visão, para ele, carecia de suporte material concreto, ou seja, os efeitos detalhados de uma guerra como essa, tanto no âmbito das relações internacionais, quanto no âmbito cotidiano, e a experiência de vida decorrente dela, apesar de poderem encontrar algum respaldo na história, eram inéditos.107

A questão inicial de Kahn ao analisar o mundo pós-guerra nuclear é se os vivos invejariam os mortos frente à hostilidade do ambiente à vida humana. Todos os esforços de Kahn são no sentido de mostrar que não seria assim. Primeiramente, ele argumenta – sem citar qualquer fonte, apenas se fiando em sua autoridade como estudioso da questão – que estudos objetivos indicavam que haveria vida feliz e normal para os sobreviventes e seus descendentes. Essa etapa de sobrevivência e reconstrução começaria logo após a guerra, com uma recuperação no longo prazo, que seria acompanhada de problemas médicos e problemas genéticos. Todavia, segundo ele, o ambiente pós-guerra, não seria tão diferente dos tempos atuais de paz. Para mostrar isso, ele indica, entre outros dados, que as mortes decorrentes de acidentes no mundo chegavam a trinta mil em um ano – o que totalizava mais de um milhão em cinquenta anos. No ambiente pós-guerra, no universo de uma população americana de cento e oitenta milhões, em um ano, ter-se-ia mil e oitocentos mortos e noventa mil em cinquenta anos, ou seja, um índice menor, ainda que em uma população menor. Todavia, pensando-se nas consequências de uma guerra, Kahn não nega a chance de uma catástrofe, mas relativiza seu aspecto aniquilador. Inclusive argumenta que tal guerra poderia ser uma solução válida para, por exemplo, não perder a Europa para a URSS.108

Pensando no ambiente radioativo, ele argumenta que não seria mais mortal do que já era o ambiente “normal” nos tempos de paz. Além disso, as mortes nesse ambiente não pareciam tão graves frente às mortes pela guerra nuclear. Portanto, para o autor, os sobreviventes de uma guerra atômica estariam dispostos a aceitar os riscos de uma sociedade

107 KAHN, H. On thermonuclear war, 1969, p.219,278. 108 Ibid., p.21-23, 40, 41, 46, 51, 53, 168-169.

naquele ambiente assim como estamos em nossa sociedade em tempos de paz. Isso está posto, pois, para Kahn, as sociedades modernas aceitam a existência do altíssimo grau de risco em suas atividades civis úteis e prazerosas – como os automóveis de alta velocidade.109

A imaginação de Kahn também penetrou em algumas reentrâncias da questão do fallout. Uma delas foi a das deformações genéticas, a qual, segundo Kahn, seria encarada normalmente como uma tragédia humana, com crianças nascendo defeituosas – com falta de membros, problemas mentais, cegueira, doenças debilitantes, entre outras deformidades. Para Kahn, isso poderia acontecer, mas diminuiria ao longo das gerações, até alcançar uma taxa estável. Ou seja, não haveria uma grande alteração no padrão de qualidade de vida, sendo que a mudança seria a quantidade de dano genético acumulado durante as gerações, o que, somente somado, poderia criar uma aparência absurda de mortes. Outro problema seria a redução da fertilidade, mortes embrionárias e natimortos, o que, para Kahn, não seria um problema e nem uma tragédia humana – provavelmente pensando em comparação aos problemas demográficos dos anos 50 e 60. E, além disso, segundo Kahn, já existia um alto índice de mortalidade prematura (13% das gravidezes), das quais, uma parte (8%) já era decorrente de problemas genéticos. De qualquer forma, o número de natimortos poderia aumentar em relação ao número nos tempos de paz, porém, Kahn defende que esse problema poderia ser adiado para as gerações futuras.110

Isso, portanto, para ele, não seria o problema mais imediato. O maior problema seria o envelhecimento e à redução da média da expectativa de vida, principalmente por doenças, como a leucemia. Pensando, assim, o ambiente de fallout, nas primeiras semanas, seria muito hostil, o que se resolveria após três meses, se realizados os procedimentos devidos de descontaminação e fornecidas as proteções necessárias para a vida e o trabalho. Nesse sentido, então, que Kahn insere a defesa civil e os segmentos dela na mobilização pré-ataque. Algumas medidas para isso seriam pequenos planos prévios, como distribuir medidores de radiação, manuais, treinar alguns procedimentos para descontaminação e alguns para após o ataque como, por exemplo, a diferenciação dos tipos de comida conforme a radiação.111

Kahn também defende esses planos, preparativos e procedimentos a partir do efeito psicológico sobre os sobreviventes da tragédia. Ele imagina, por exemplo, que, em um ambiente pós-guerra, as pessoas, acreditando que estavam contaminadas, consumindo comida estranha, sem muito acesso à higiene e em abrigos inadequados, sentir-se-iam mal, nauseadas

109 Ibid., 1969, p.41-42.

110 Ibid., 1969, p.1969, p.43-46, 49-50, 54.

e, quando uma começasse a vomitar, as outras, sequencialmente, também o fariam. Isso tudo levaria a uma diminuição na vontade e no moral necessários para a reconstrução da nação. Porém, a simples distribuição de medidores de radiação, por exemplo, para Kahn, evitaria esse tipo de comportamento coletivo, já que daria um índice concreto de contaminação que “autorizaria” ou não certas reações. O medidor funcionaria como uma espécie de talismã, assim como pílulas e injeções também poderiam ter essa função de sensação de proteção. Frente a isso tudo, Kahn decreta que seria possível viver com os efeitos da radioatividade. Para complementar essa questão, no TATU, Kahn comenta que estudiosos da guerra termonuclear concluíram que os sobreviventes teriam experiências menos traumáticas que muitos tiveram durante a II Guerra – e nenhuma dessas pessoas, para Kahn, preferia estar morta.112

Além dos preparativos do cotidiano para sobreviver no ambiente pós-guerra nuclear, preparativos econômicos e sociais também seriam necessários segundo Kahn. De forma geral, ele acreditava que as consequências econômicas e sociais de um mundo pós-guerra também poderiam ser atenuadas e não difeririam muito das do mundo atual. Para poder realizar a construção após a guerra, dever-se-ia ter o poder de flexibilizar a economia – característica essa também necessária à mobilização pré-ataque – permitindo rearranjar seus setores. Dessa forma, a preparação para uma guerra e para o ambiente após ela também passava por preparar a parte da nação que não compunha o setor urbano. Para explicar essa dinâmica, Kahn divide os EUA em dois grandes grupos: A, as maiores cidades, e B, áreas rurais e pequenas cidades. Para Kahn, enquanto a porção A precisava da porção B para sobreviver, a porção B poderia sobreviver sem a A e, inclusive, reconstruí-la. Essa crença em B existia pelo potencial e capacidade industrial dela. Além disso, Kahn acreditava que ela forneceria os elementos para as atividades necessárias para o pós-guerra, como construção, suprimentos médicos, máquinas, e outros.113

As preparações também deveriam se preocupar com os valores. Kahn parte da premissa que não há seres humanos sem sociedades. Dessa forma, uma guerra poderia acabar com os valores que eram os alicerces do mundo burguês – ou, para Kahn, “as boas virtudes „burguesas‟”114. A ausência deles poderia tornar as pessoas desonestas, sem ambição, irresponsáveis ou preguiçosas, o que causaria problemas para a reconstrução do país, pois, para ele, uma vez destruídos esses valores, sua recuperação talvez nunca mais fosse possível.

112 Ibid., 1969, p.86, 62; KAHN, H., 1971, p. 96-97; KAHN, H., 1962, p.89-90. 113 KAHN, H. On thermonuclear war, 1969, p.54, 77-78, 81.

Além disso, Kahn defendia que se o governo fizesse uma preparação prévia e se ela fosse bem sucedida, ganharia crédito com os sobreviventes e encontraria, por isso, força para reerguer a nação. Nesse sentido, Kahn enfatiza a importância das pessoas estarem compromissadas com a reconstrução do país, o que passava, portanto, pela manutenção dos valores burgueses e pela confiança no governo. Essa reconstrução também estaria associada à elaboração prévia da imagem dos EUA, e até do Ocidente, como detentores de segurança e força. Essa manutenção não era somente de valores interiores, mas também de valores ligados ao comportamento externo do país quando em conflito.115

A visão supostamente realista da guerra e de seus resultados e o delineamento de seus detalhes estavam inseridos dentro da política de dissuasão proposta por Kahn, baseada na Capacidade de Mobilização Pré-Ataque, que tinha como parte fundamental a DC. Com isso, Kahn delineava uma visão de futuro que acabava servindo à própria finalidade dissuasiva. Ao desenvolver um programa tal como o proposto – ou pelo menos a aparência de que isso era possível – ou seja, um programa de sobrevivência a uma guerra nucelar, com a relativa manutenção das condições prévias e com a capacidade de restaurá-las inteiramente no curto ou médio prazo, estava também constituído um mecanismo que evitaria que a guerra acontecesse. Seria a tarefa máxima da antecipação nesse sentido: não concretizar o mau agouro previsto.