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c Entre a imaginação do futuro e a ação presente

II. O futuro impensável: imaginando o futuro deformado

II.2. c Entre a imaginação do futuro e a ação presente

O uso da imaginação no trabalho de Kahn está intimamente associado ao aspecto especulativo do seu trabalho, sendo o principal objeto o futuro. Ghamari-Tabrizi, como crítica e analista da obra de Kahn do período da RAND até o OTW, está atenta à questão da imaginação e do futuro. Como Ghamari-Tabrizi bem aponta em seu livro The worlds of Herman Kahn, a imaginação se tornou importante no planejamento militar após o advento da bomba atômica devido ao futuro incerto que ele criara. Com a autoridade adquirida pelos físicos, eles se tornaram também os que pareciam os mais indicados a imaginar o futuro do mundo frente a tais tecnologias. Assim, por mais que houvesse pretensões científicas sobre o futuro, elas eram hipotéticas. Nesse sentido, Ghamari-Tabrizi argumenta que sua abordagem

115 KAHN, H. On thermonuclear war, 1969, p.89-93; KAHN, H. A escalada, 1969, p.40-50, 212-213233-234;

da análise da guerra futura por Kahn não a entende como ciência, mas como estilo, estado de espírito e estética.116

Para Ghamari-Tabrizi, existia uma continuidade nos trabalhos de Kahn, desde o Monte Carlo até a sua análise mais ampla sobre o futuro no OTW. Ela identifica que, na RAND, coexistiam dois tipos de estudos: a) os compactos e que correlacionavam objetivos de combate limitados com orçamentos fixos, baseado em estudos quantitativos normalmente orientados por “um ideal de gerenciamento de informação onisciente”, ou seja, estudos que derivavam diretamente da OR; e b) grandes análises especulativas que giravam em torno de temas como sociedade, natureza e guerra, tudo como uma ferramenta configuradora holística e intuitiva117, portanto, estudos que poderiam ser postos como SA. Ambos os tipos de estudos, abordados e presentes no pensamento de Kahn, estavam dentro da corrente das ideias futurológicas da RAND, as quais nasceram com a preocupação com o futuro da guerra dentro da Força Aérea estadunidense, após a II Guerra.118

Algumas características dessa corrente, conforme Ghamari-Tabrizi, eram, primeiramente, o estudo serial e seu caráter aberto, de desenvolvimento gradual e dinâmico e, por isso, incerto e inconcluso. Nesse sentido, as palavras de ordem eram flexibilidade, adaptabilidade e alterabilidade. Outra característica era as alternativas variadas, que eram normalmente expostas por gráficos e colunas. Por ser algo novo, justamente voltado para substituir a experiência militar por uma que só poderia ser hipotética e imaginada, as análises tinham um caráter provisório. Por tudo isso, as simulações tinham uma qualidade fabricada, os modelos podiam ser distorcidos para aumentar os eventos improváveis e tinham a tendência de imaginar as piores situações e as surpresas. Adquiriam, por tudo isso, conforme Ghamari-Tabrizi, um caráter ficcional.119

Essas quatro características já são percebidas por Ghamari-Tabrizi nos trabalhos de Monte Carlo, nos quais também estava presente o elemento imaginativo ao simular, comparar e direcionar os cálculos. Esse uso e as características gerais daquilo que Ghamari-Tabrizi chamou de corrente de ideias futurológicas da RAND se estenderam e compuseram, posteriormente, à SA. Portanto, a autora conclui que a SA era uma simulação estética, que modelava a guerra futura a partir de intenções e capacidades do inimigo que não eram

116 GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 124-126.

117 Ambas as citações tradução nossa, em GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 128 “an ideal of omniscient

information management” e “intuitive holistic gestalt”.

118 GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 132, 135, 128, 126, 49-51. 119 Ibid., 2005, p. 128-131.

conhecidas. A SA permitia rearranjar seus componentes, refletindo o ritmo dinâmico, efêmero e incerto do período nuclear.120

Para Ghamari-Tabrizi, as características da estética futurológica da RAND também permearam a abordagem de Kahn sobre a DC. Ela aparece, para a autora, no desenho das piores possibilidades e na cogitação de várias possibilidades dentro da consideração de um futuro incerto e aberto. Com isso, a análise da DC possuiria uma característica ainda mais especulativa que a SA, já que o planejamento da DC era algo fantasioso, com a cogitação de fuga para cavernas sob Nova Iorque, por exemplo. Kahn reconhecia esse aspecto hipotético dos estudos de DC, ao afirmar que os planos de evacuação estavam baseados nesse tipo de enfoque. Ghamari-Tabrizi também via na DC uma tendência maior para referências às ideias de fim da história e uma substância histórica mais presente.121

Se os méritos do trabalho de Ghamari-Tabrizi é justamente a percepção do papel do elemento imaginativo e ficcional nos trabalho de Kahn, esse também acaba sendo um problema em sua análise. Ao enfatizar o aspecto imaginativo, ela acaba deixando de lado a dimensão prática do trabalho, o que a faz também incorrer em outro problema, que é reduzir os estudos do futuro de Kahn a isso que ela chamou de estética da RAND. Com isso, acreditamos existir na análise dela o que Bloch chamou de o ídolo das origens.122

Ghamari-Tabrizi lançou seu livro em 2005, em meio a um controverso governo de George W. Bush. Assim, parte de sua inquietação a respeito de Kahn parece relacionada ao seu testemunho de alguns desmandos e justificativas do governo na época do livro. Porém, ao tentar encontrar uma explicação e um paralelo para isso, ela tende a reduzir toda a produção posterior de Kahn sobre o futuro ao aspecto imaginativo formulado e conhecido por Kahn nos anos da RAND. De fato, esse aspecto permeia toda a obra, mas não pode ser o fator que explica toda a produção posterior de Kahn, principalmente a do HI, quando ele elaborou estudos sobre o Japão, o Brasil, a Colômbia e sobre o mundo. Nem se pode reduzir toda uma visão de futuro apresentada pelo HI, que, apesar de ter em Kahn sua figura central, também tinha outras pessoas e estava em outro contexto institucional, histórico e político, diferente daquele da RAND nos anos 50.123

Acreditamos que esse problema na análise da autora ocorre pelo problema proposto por ela e pelas fontes consultadas. Não estava no seu escopo de análise dos escritos de Kahn

120 GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 136-138, 134, 143.

121 KAHN, H. A escalada, 1969, p.251-252; KAHN, H., 1968, p. 159; GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p.182-

184.

122 BLOCH, Marc. Apologia da história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p.56-60. 123 Cf. GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 1-9, 127.

questões além dos problemas mais urgentes para os EUA. Isso fica claro pela pouca documentação que ela consultou sobre o período do HI. Na nota final do livro, ela comenta, de forma muito breve, os debates de Kahn com o Clube de Roma sobre as questões mundiais, sem reconhecer que há uma longa caminhada desde os escritos da RAND até esse debate. Então, por mais que permaneça o elemento imaginativo e ficcional nos moldes aprendidos e desenvolvidos na RAND, a formulação da compreensão de futuro de Kahn não está datada fixamente, mas é algo que se adapta a algumas condições e necessidades. É esse passo a mais que pretendemos dar aqui.124

Se tudo que foi dito sobre o trabalho de Ghamari-Tabrizi até aqui são apenas críticas no sentido das opções e das análises que decorreram delas, há algo que consideramos grave em seu livro. Ao se assentar exageradamente no aspecto imaginativo, Ghamari-Tabrizi pretere a construção histórica existente nos trabalhos de Kahn, do passado como referência para pensar o futuro, o qual, apesar de conter uma parte de imaginação, também continha muita substância para dar credibilidade às “previsões”. O ápice dessa defesa da autora é ela reproduzir a afirmação de Irwin Mann, sobre Kahn, segundo a qual “Nada era estudado. Nada mesmo. Ele não estudava nada”.125

Mann acompanhou Kahn somente nos sobre o Monte Carlo. Não é possível aplicar isso como uma verdade a toda à produção de Kahn sem comprovar por outros meios. Além disso, não é possível usar essa afirmação para confirmar a hipótese de que a produção de Kahn foi produto somente de imaginação. Além do mais, se a afirmação for válida, é preciso entender, então, como Kahn formulou, em livros posteriores, afirmações históricas embasadas em dados e em autores. Portanto, é preciso entender como um plano futuro estava, em seus diferentes momentos, articulado com o presente como ação e era devedor de um passado, como justificativa, explicação e fonte de dados e exemplos e como isso foi formulado. Acreditamos que houve transformações ao longo do trabalho de Kahn, tanto dos elementos imaginativos para pensar diferentes formas de interpretar o futuro, quanto dos elementos metodológicos e técnicos que permitiram isso.

Um exemplo desse tipo de transformações que gostaríamos de mostrar é a definição e os conceitos de julgamento intuitivo e opinião embasada, que foram introduzidos nos escritos de SA. Esses dois conceitos não aparecem nos escritos posteriores de Kahn, inclusive no OTW, no TATU e no OE. Contudo, a essência da ideia está lá: a questão da experiência

124 GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p.370

125 “… Nothing was studied. Not really. He didn‟t study anything” (tradução nossa) GHAMARI-TABRIZI, S.,

adquirida pela vivência e que não é objetivamente transmissível, de um lado, e ,de outro, a opinião formada por estudos a partir de dados e fatos científicos e objetivos e que permite a transmissão e a revisão. Se essa diferenciação fundamentou toda a defesa – que vimos e ainda veremos – da substituição da experiência militar pela simulação e pela especulação do analista civil, ela também aparecia implícita em outros termos nas obras. Por exemplo, no TATU, ao discutir a condição de mudança rápida e desconhecida que cercaria a política de dissuasão, Kahn defendia a maior utilidade dos modelos conceituais para a orientação da política em comparação à intuição indisciplinada. Já no OE, ao discutir o problema do “fog of war”, ou seja, das desorganizações, desorientações e incertezas que surgiriam no caso de uma guerra nuclear, Kahn aborda a questão do “dead reckoning” (ou “cálculo cego”) como uma forma de se orientar. Primeiramente, aponta que o termo nasce da navegação, mais especificamente, do cálculo que permite o capitão do navio afirmar exatamente onde está a partir do conhecimento do seu ponto de partida, do ambiente que está – como, por exemplo, as correntes marinhas e os ventos – e da leitura de indicadores como uma bússola, o consumo de combustível e a velocidade desenvolvida. Esse conceito se aproxima muito do que era defendido como opinião embasada. Essa aproximação fica mais clara quando Kahn opõe-no à intuição, que é também uma espécie de cálculo cego, mas inconsciente e sem ser explícito. O cálculo cego seria, em oposição à intuição – e conforme Kahn – a previsão analítica, que pode ser explicitada.126

Uma questão que nos parece negligenciada na obra de Ghamari-Tabrizi, o que parece também ser reflexo da ênfase no elemento imaginativo e ficcional, é o aspecto prático das especulações do futuro de Kahn. Afirmar que as especulações de Kahn são ficcionais e imaginativas não esvazia sua funcionalidade, nem, ao que parece, diminui a eficiência prática da atividade. Parece que no afã de tentar atribuir uma suposta ficcionalização às justificativas do governo Bush para os ataques ao Iraque, por exemplo, a autora desacredita as justificativas que levaram ao ato sem entender que o ato existiu pelas justificativas, independente de quão ficcionais e imaginativas fossem. Portanto, dizer que são ficcionais não alivia o peso, nem tira a parcela de concretude do ato perpetrado por tais justificativas. Não ajuda a entender porque tais justificativas foram tomadas como reais, porque a ficção foi confundida com o real. A própria literatura é um exemplo disso, pois, ainda que ficcional, também influencia ações concretas e reais na sociedade.

126 KAHN, H. A escalada, 1969. p. 327, 327-329; KAHN, H., 1968, p. 211-212, 211-213; KAHN, H., 1971,

As fontes, talvez, contribuam para essa confusão. Kahn, no fim do TATU, afirma que os estadunidenses tinham uma tendência prática e pragmática ao tratar de questões de política e de relações internacionais. Esse pragmatismo, segundo ele, rejeitava mecanismos teóricos complexos e problemas analisados no longo prazo, em prol dos problemas presentes e imediatos. Por tudo isso, o planejamento dos EUA se tornava avesso a elaborar utopias e planos mais longos. Kahn acreditava na necessidade de uma teoria que vislumbrasse um ponto futuro de uma situação desejável e que analisasse as ações passadas, para que pudesse enfrentar os problemas cotidianos e a nova ordem mundial. Essa teoria, portanto, serviria para substituir a experiência dos estadistas, não mais válida para tomar as rédeas do mundo que existia. Para Kahn, isso não era uma tentativa de retraçar os rumos da história, mas era a tentativa de “fazer o melhor possível com os instrumentos e capacidades que dispomos”.127

Ghamari-Tabrizi percebe essa característica de operar a realidade como volição em Kahn ao discutir a visão de Kahn sobre os hiatos de conhecimento entre a capacidade da URSS e a preparação de defesa dos EUA. Nesse sentido, ela põe a tarefa de Kahn como também utópica, uma vez que almejava a possibilidade de transcender cada limite mundano através do engenho humano e da perícia técnica. Porém, ela reduz isso, e toda a análise de Kahn, a uma, entre tantas outras, representação ficcional e até satírica da situação e a um indicativo de um aspecto social e psicológico de Kahn, afirmando que sua análise, no fim de tudo, representava uma corrente do otimismo estadunidense, ativo, liberal, masculino, despreocupado e tranquilo.128

Há imensos méritos na obra da autora, como perceber, por exemplo, que a construção do futuro da guerra nuclear feita por Kahn compartilhava um fundo comum de comédia e tragédia que existia naquele momento na sociedade estadunidense. O problema é entender isso como algo que impere sobre – ou até desacredite – o potencial de ação concreta da obra. Parece que, por conter uma dimensão ficcional e imaginativa, a obra não poderia atuar na realidade. Além disso, é possível também que Ghamari-Tabrizi incorra em anacronismo, um pouco resultado de uma empáfia do atual, que julga o passado a partir do presente.

Ao procurar mostrar que a construção ficcional de Kahn beira o absurdo, uma vez que inserida em um contexto de representação de um período que também é absurdo, ela tenta contrastar isso com o seu momento, no qual, um presidente, quase quarenta anos depois, parecia incorrer nos mesmos absurdos. Todavia, ela não se preocupa em entender o

127 KAHN, H., 1971, p.288-289, “We have to do the best we can with the tools and abilities we have” KAHN,

H., 1962, p. 253-254; KAHN, H. On thermonuclear war, 1969, p. 521.

fundamento que justificava aquilo que, para ela, parecia absurdo e equivocado. Não parece reconhecer o potencial prático do absurdo, do irracional e do ilógico. Parece desconsiderar que o plano futuro é uma forma de racionalidade e lógica e que a ficção não necessariamente careça delas ao ser imaginativa. Parece que Ghamari-Tabrizi se deixou levar demasiadamente pelos aspectos ficcionais e imaginativos da obra de Kahn e esqueceu que nada daquilo era inocente ou só absurdo, como parecia tudo que o cercava.

Discordando de Ghamari-Tabrizi – ainda que reconhecendo o aspecto imaginativo das especulações de Kahn – Stevenson mostra que esse elemento do pensamento prático também não estava totalmente dissociado da consideração de diversas possibilidades imaginadas e ficcionais de futuro. Reconhecendo que a grande influência metodológica sobre a RAND foi a OR que, somada a uma ausência de experiência para lutar a guerra nuclear, deu origem a uma prática de SA que tinha como ponto forte a exploração das capacidades tecnológicas de defesa baseadas na suposição de um adversário racional. Essa análise era, no entanto, elaborada em um contexto político e psicológico simplificado e a-histórico. Para Stevenson, havia um elemento pragmático por trás dessa simulação de futuro, o qual ele percebe através do trabalho de Wohlstetter. Segundo o autor, Wohlstetter aceitava a premissa de que a racionalidade é relativa a objetivos, assim, “racional” só tinha sentido quando em relação a determinados objetivos. A partir disso, Wohlstetter estava interessado em como os caminhos para os diferentes objetivos interagiam. Concluiu, então, que a viabilidade dos objetivos dependia da condição deles serem alcançáveis por meio de várias possibilidades e se eram compatíveis com outros objetivos. Segundo Stevenson, o importante para Wohlstetter não era a validade do objetivo final, mas se um objetivo menor poderia ser associado com outros objetivos da mesma categoria. No caso da Guerra Fria, os objetivos eram, entre os planejadores, praticamente intocáveis, ou seja, a dissuasão e a contenção do inimigo.129

Portanto, já vimos, até aqui, elementos suficientes para entender que a imaginação e a criação de mundos futuros de Kahn estavam ligadas a esse tipo de interpretação do processo de decisão e de prática no mundo presente. O objetivo futuro era o da dissuasão e, como Kahn já afirmara ao trabalhar com SA, ele não estava preocupado com os objetivos finais, mas com os meios para alcançá-los. Porém, muitas vezes, na avaliação dos meios, era preciso pensar como seriam os resultados finais. Nesse sentido, o aspecto imaginativo, por mais que permeie a obra, não é a finalidade em si. A finalidade é a ação presente. Por mais que a construção imaginativa e ficcional pareça absurda, cabe entender como ela obteve o aspecto de

verossimilhança e factibilidade. Não cabe somente desconstruí-la quarenta ou cinquenta anos depois, é preciso entender o seu sucesso, tanto passado, quanto presente. Ou seja, a imaginação, a utopia e a elaboração ficcional de um futuro desejado seria uma das ferramentas para se fazer a política presente, tanto do dia-a-dia, quanto das relações internacionais.130

Por isso tudo, é possível afirmar que a polêmica do OTW na sociedade americana não foi somente pelo livro parecer absurdo. Foi por expor que a realidade enfrentada, ainda que absurda, tinha algo de racional e real. Que era possível enfrentar uma guerra e vencê-la e que isso não era absurdo. Que a aniquilação, a guerra nuclear, a morte de milhões não era algo improvável, impossível e absurdo, mas era uma realidade que precisava ser enfrentada e usada para o sucesso dos EUA e do Ocidente. Por parecer real – ainda que absurda – a análise de Kahn foi polêmica.