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III. O futuro em expansão: a fábrica do impensável

III.2. a Cenários: pensando o que será

Um dos problemas apontados por Kahn desde o OTW era o desconhecimento sobre o futuro e, por isso, a falta de experiência para lidar com o devir. Para lidar com esse problema e pensar, ainda dentro da estratégia militar, o futuro, Kahn apontava algumas ferramentas: os modelos abstratos, os jogos de guerra e paz, os cenários, os exemplos históricos e os romances. Todas essas “ferramentas” são postas como não convencionais, em oposição às já consagradas SA e OR. Essa oposição entre técnicas novas e velhas funcionava como uma valorização das “novas” em detrimento das anteriores, o que visava pontuar uma nova forma de trabalho e, com isso, uma característica qualitativa do novo instituto.56

Os modelos abstratos propostos, como Kahn apresenta no TATU, são variações dos modelos de valores esperados usados no Monte Carlo. Kahn explica que os modelos abstratos consistiam em remover certas características reais, em prol de outras, quando se realiza as análises. Ou seja, é um modo de trabalho que se aproxima dos valores esperados, já que, em ambos, Kahn reconhece que há um afastamento da realidade analisada, pois estas são mais complexas e incertas do que o modelo poderia supor. A validade do modelo, para Kahn, seria heurística e propedêutica, ou seja, para definição da terminologia, para formação de conceitos e para o desenvolvimento de princípios elementares.57

Um exemplo de modelo era o equilíbrio do terror, o qual parte da seguinte configuração: duas nações industrializadas, com populações concentradas em cem cidades do mesmo tamanho, e cada nação com arsenais semelhantes e igualmente protegidas, permitindo a destruição da outra até dez vezes. Frente a isso, ocorreria um equilíbrio de terror e uma dissuasão estável. Esse modelo ressalta ainda mais a semelhança com o modelo de valores

56 KAHN, H., 1971, p. 139; KAHN, H., 1962, p. 127.

esperados, já que é uma espécie de média que não considera as variações. Logo, como modelo, conforme Kahn, ele se afastaria do mundo real, já que a população de uma nação não está toda em cidades de tamanhos iguais. Os armamentos e as defesas também não são semelhantes. A partir desse modelo, é possível desenvolver, então, variações que considerem elementos como, por exemplo, manipulação do temor da guerra, demonstrações de força, ou guerra limitada. Essas variações, todavia, não retiram do modelo seu caráter de levantamento de questões básicas e de compreensão geral. Contudo, ele falhava justamente ao lidar com os fatores complexos, principalmente quando pensados para o futuro.58

Outra forma de trabalhar com o futuro desconhecido, essa mais preparada para lidar com os fatores complexos e específicos, partia de duas premissas, como aponta um documento do HI sem autoria. A primeira são as formas de conhecimento, que é a compreensão de que o estudo da maioria das coisas é feito a partir ou da análise da situação corrente, ou dos exemplos históricos, ou de uma divisão do objeto e, então, do exame das partes que resultaram da divisão, visando, com isso, entender o objeto. Essas seriam as formas de conhecimento. A premissa dois era justamente a dificuldade de aplicar qualquer uma dessas formas sobre o futuro, já que, um, ele não é conhecido, impedindo a sua divisão em partes menores, e, dois, os exemplos passados e a situação corrente não caberiam como explicação para os eventos futuros, devido às disparidades dessas temporalidades, como Kahn já mostrara no OTW e em escritos anteriores.59

A solução frente a esse impasse seria o método cenário, que é pensando conforme a primeira premissa, porém, com as ressalvas oriundas da segunda. O cenário pode ser usado, então, para criar uma ordenação ou uma divisão sistemática do futuro, facilitando seu estudo. No HI, o cenário como conceito e ferramenta de análise do futuro foi refinado ao longo dos primeiros anos do Instituto, sendo apresentado como um de seus diferenciais, como um recurso de análise para os contratantes e como um programa de pesquisa. Conceitualmente, ele consistia em uma descrição narrativa hipotética ou imaginária, detalhada ou não, de uma sequência de eventos no futuro, permitindo o trabalho que consideraria diferentes aspectos ao mesmo tempo, assim como os desdobramentos frente às principais escolhas. Os cenários serviriam, dessa forma, para pensar as principais situações de crises e de guerras, analisando tanto os eventos pontuais que poderiam eclodí-la e finalizá-la, quanto a cadeia de eventos que poderia constituir seu desenvolvimento. A aplicação dos cenários era sobre temas relacionados aos EUA, aos países subdesenvolvidos e aos governos mundiais e sistemas de

58 KAHN, H., 1971, p. 140-57; KAHN, H., 1962, p. 128-142.

ordem internacional, todos relacionadas ao lema do HI: a segurança nacional e a ordem internacional. Essas construções poderiam ser tanto um rascunho de ideias apresentado em linhas gerais, quanto análises detalhadas, tal como “um romance histórico do futuro”. O cenário funcionaria, destarte, como um auxiliar para a imaginação, fornecendo uma alternativa à falta de experiência de viver as crises e as situações em torno da possibilidade de guerras nucleares.60

Uma das vantagens do cenário, conforme Kahn, era “forçar-se a si mesmo e aos demais a mergulhar no mundo atual, desconhecido e em rápida mutação, e no futuro”61. Portanto, ele possuía um aspecto dramático que poderia servir para ressaltar elementos que o analista considerasse importante. Obrigava, também, a consideração de detalhes e das interações de diferentes fatores. Devido a esse aspecto imaginativo, poderia levantar questões que não surgiriam ou teriam destaque na análise do mundo real. Nesse sentido, permitira considerar e conhecer resultados alternativos para crises reais.62

Kahn responde, no TATU, o que considera duas críticas ao cenário. A primeira delas seria acerca da paranoia, que entende que somente alguém acometido por ela poderia pensar sobre a guerra. Kahn responde que o analista se interessa pela forma que a guerra pode acontecer, mas também pela maneira que ela poderia não acontecer. Portanto, a crítica só seria válida a cenários específicos e não à metodologia como um todo. A outra crítica era à suposta qualidade esquizofrênica dos cenários. Isso significa que os enredos fictícios dos cenários eram inúteis, enganosos e perigosos quando pensados sobre a realidade, justamente por estarem descolados dela. Essa crítica é a mais relevante e que nos permite refletir mais sobre o método e sobre a condição dos estudos futuros.63

Ambas as críticas aos cenários remetem a exercícios imaginativos sobre a guerra nucelar que já apareciam no OTW. Um exemplo extremo e ilustrativo é a situação de guerra que Kahn chama de Armageddon, ou seja, a batalha final entre o bem e o mal, na qual a vida seria aniquilada. Para Kahn, a URSS poderia usar essa situação ao seu favor, ao manipular o medo dos EUA, com, por exemplo, o uso da máquina do fim do mundo. O cenário funcionaria, dessa forma, como a experiência que não existia sobre a luta da guerra termonuclear, ajudando a constituir, com isso, uma opinião embasada. Não seria somente a

60 HUDSON Institute. 27 de Set. de 1961, p. 1, 3; KAHN, H. Carta 13 de Fev. de 1962; KAHN, H., 1971, p.

157-158; KAHN, H., 1962, p. 143.

61 “one way to force oneself and other to plunge into the unfamiliar and rapidly changing world of the present

and the future”, KAHN, H., 1962, p. 144; KAHN, H., 1971, p. 159.

62 KAHN, H., 1962, p. 144; KAHN, H., 1971, p. 159.

63 KAHN, H., 1971, p. 159-160; KAHN, H., 1962, p. 144-145; GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 297;

formação da experiência sobre um fenômeno inédito, mas seria também a oportunidade de formular e “testar” ideias e possibilidades igualmente inéditas, uma vez que, para lidar com um mundo novo, ideias novas seriam necessárias. O cenário também era defendido como uma forma de testar o funcionamento de um sistema em diferentes contextos e também como uma maneira de realizar a própria análise sistemática, forçando questões que poderiam surgir de relações que não pareciam óbvias entre fatores políticos, geográficos, militares e psicológicos. Assim, os diferentes cenários enfatizariam as diferentes características da “história futura”.64

Outra ferramenta que Kahn apresenta atrelada aos cenários seriam os jogos de guerra, os quais Kahn reconhece como um dos elementos não convencionais para pensar sobre o futuro. Como já vimos, os jogos de guerra eram um jogo de interpretação, no qual cada jogador assumia o papel de uma nação ou um líder em um exercício de simulação de uma situação de crise ou de guerra e conforme surgissem determinadas situações propostas por um ou mais jogadores. Tanto o cenário, quanto os jogos de guerra não tinham, para Kahn, caráter premonitório. Os dois funcionavam como sugestões e ilustrações, mas não como demonstração ou prova. Há, nos jogos, um caráter de estímulo e uma forma de aumentar o entendimento das situações, fornecendo exemplos das interações possíveis e comunicando uma informação com uso de analogia e referências.65

Portanto, os jogos e os cenários estavam permeados de um elemento imaginativo. Ghamari-Tabrizi e Bruce-Briggs reconhecem essa característica nos trabalhos de Kahn e atribuem-na à voracidade de Kahn por ficção científica. Apesar de Ghamari-Tabrizi não fazer uma referência direta, ela afirma que Kahn transitava entre fato e ficção, realidade e não- realidade, porém, também pontua que Kahn, segundo Anthony Wiener, ressaltava que o cenário não deveria ser arbitrário como a ficção científica, mas que deveria se focar na possibilidade do que seria importante se acontecesse.66

O HI não delineava cenários na tentativa de prever o curso real dos eventos futuros, também achava ser difícil avaliar os eventos futuros em termos de plausibilidade ou de possibilidade de se tornarem reais. Eles eram dispositivos que ajudariam no trabalho de pesquisa sobre problemas que só existiriam no futuro, a partir da consideração de sequencias de eventos. Portanto, os cenários poderiam ser úteis como uma ferramenta educacional para dramatizar ou clarificar ideias particulares, abandonando os requerimentos científicos mais

64 HUDSON Institute. 27 de Set. de 1961, p. 2-3; KAHN, H., 1971, p. 157-158; KAHN, H., 1971, p. 143;

HERZOG, A., 18 de Nov. de 1963, p. 32; KAHN, H. On thermonuclear war, 1969, p. 523-524; KAHN, H., 13 de Fev. de 1962

65 KAHN, H., 1971, p. 173-175, 193; KAHN, H., 1962, p. 155-157, 172. 66 GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 75-76; BRUCE-BRIGGS, B., 2000, p. 8.

rígidos e, por isso, não sendo um método científico. Conforme Ghamari-Tabrizi, os cenários e os jogos tinham um caráter literário, com a construção de enredos que organizavam diferentes fatores simultaneamente. O HI reconhecia que havia no cenário um aspecto imaginativo, inventivo, seletivo e de construção de enredo, o qual era necessário ao trabalho com o levantamento de várias possibilidades, porém, com a consideração realística de diferentes fatores.67

Portanto, o que diferencia o cenário de uma esquizofrenia é justamente o reconhecimento do aspecto imaginativo e a ausência da intenção de previsão. Ao se projetar sobre o futuro, o cenário opera sobre algo que é desconhecido e imprevisível. Para Kahn, sendo assim, não há como afirmar que existe uma realidade e que os cenários se afastam dela. O cenário, como uma forma de disciplina da imaginação, serve às coisas úteis, ou seja, ao presente. Conforme Kahn, a plausibilidade de um cenário depende de sua relação racional com o presente, considerando comportamentos coerentes dentro desse contexto – apesar de Kahn defender que comportamentos não plausíveis também deveriam ser considerados.68

Um exemplo de cenário seriam as formas de guerras acidentais. Citando autoridades soviéticas, Kahn defendia que uma guerra acidental poderia, por exemplo, começar por uma falha no radar ao confundir um meteoro ou mesmo uma revoada de gansos com um míssil, ou por outras falhas de equipamentos que poderiam também lançar um míssil por engano. Outro exemplo de cenário do HI foi apresentado em 1964, por Raymond D. Gastil, um Ph.D. em ciências sociais em Harvard, para o Institute for Defense Analysis, um instituto tal a RAND, que auxiliava o Governo dos EUA, cujo título era “Postattack scenarios”. Nele, Gastil apresenta os cenários de desastre e recuperação em uma pequena cidade no nordeste dos EUA após um ataque nuclear, em um contexto de recuperação bem sucedida do país.69

A cidade funcionaria como um microcosmo dos EUA, ou seja, seria um cenário operando como uma metáfora, uma paráfrase do que poderia ocorrer nos EUA na mesma condição. Os dois objetivos para usar o cenário nesse estudo eram: 1) estudar simultaneamente fatores sociais, econômicos e políticos que moldariam um ambiente pós- ataque e 2) descrever o período de recuperação. O estudo é embasado, trabalhando com

67 HUDSON Institute. 27 de Set. de 1961, p. 1, 3; CRAWFORD, Elisabeth. Objectives and Methodology –

Annex I. Postattack scenarios. p.20, 22-24; DICKSON, P., 1971. p. 61-62; GHAMARI-TABRIZI, S., 2005, p. 165-167.

68 KAHN, H., 1962, p. 145; KAHN, H., 1971, p. 160.

69 GASTIL, Raymond D. Postattack scenarios. Hudson Institute: Harmon-on-Hudson, 15 de Jan. de 1964, HI-

316-RR. A sigla RR significava que o relatório era um esboço, em oposição aos relatórios finais MITCHELL, Mary. Inter-office memo: my vacation. Hudson Institute, 20 de Jul. de 1967; KAHN, H. On thermonuclear war, 1969, p. 205-208; KAHN, H., 1962, p. 145-150; KAHN, H., 1971, p. 160-166; BRUCE-BRIGGS, B., 2000, p. 136, 138

conceitos das ciências sociais sobre “comunidade”, usando uma bibliografia, a qual aparece indicada, para refletir e determinar as dinâmicas possíveis das sociedades trabalhadas e justificando a escolha da bibliografia. Segundo o apêndice metodológico, houve também visitas às cidades e entrevistas com pessoas da região. Dessa forma, o cenário partia do presente e de dados estatísticos passados e presentes sobre diferentes cidades da região.70

Uma das áreas de aplicação do cenário foi também o estudo da escalada, que funcionava tanto como o encadeamento de eventos, quanto para pensá-los pontualmente. A escalada era, de forma geral, um aumento, em etapas, na intensidade do conflito a partir de crises, no qual cada lado poderia pressionar o outro e, em resposta, ser mais pressionado. Essa dinâmica é pensada por Kahn em degraus que conduzem a uma situação cada vez mais violenta. Cada degrau, conforme Kahn, é um arquétipo e uma metáfora, servindo como modelo e contexto para o estudo de um tipo de crise. Dessa forma, os degraus e as variações dentro deles não são teorias, mas um campo de possibilidades para pensar os desenvolvimentos futuros. A escalada também guarda um quê de sistema – que já estava presente nos cenários – uma vez que considera dois elementos relacionados, um, o degrau específico e, outro, a dinâmica do movimento de ascendência ou descendência da escalada.71

Kahn concebe, no OE, uma escalada de quarenta e quatro degraus, que vão desde gestos diplomáticos e econômicos incômodos e levemente rudes (degrau 2), passando por atos hostis (degraus 7-8), guerras quase nucleares (degrau 15), guerras nucleares locais contra alvos militares (degrau 23), evacuação completa da população (degrau 31) até o momento em que “todos os botões foram apertados e todos os líderes e seus auxiliares vão para casa”72 (degrau 44). Os degraus estão conectados entre si por uma relação causal, sendo que cada um só pode ser compreendido dentro das relações com o que precedeu e com o qual o sucederá, apesar de isso não ser necessariamente fixo, já que degraus poderiam ser saltados ou ter a ordem alterada.73

Kahn tinha noção do aspecto de ação no presente de suas propostas, o que se evidencia ao parafrasear uma frase que ele atribui a Marx, de que a guerra é parteira da história. Kahn a transforma em a escalada é a parteira da história, pois a parteira não faz a criança, que se forma por um processo lento de desenvolvimento, mas a parteira é quem faz a diferença para

70 GASTIL R.D., 1964, cf. Preface, 2-13

71 KAHN, H. A escalada, 1969, p. 23-24, 74; KAHN, H., 1968, p. 3, 38; KAHN, H., 1971, p. 208; KAHN, H.,

1962, p. 185.

72 KAHN, H. A escalada, 1969, p. 93; “…all the buttons are pressed, and the decision-makers and their staffs go

home…”, KAHN, H., 1968, p. 50

73 KAHN, H. A escalada, 1969, p. 76-94, 389-390; KAHN, H., 1968, p. 39-51, 255-256; KAHN, H., 1971, p.

o que acontecerá com a criança. A escalada nascera, obviamente, de questões presentes preeminentes, como a crise do Vietnã e o episódio dos mísseis em Cuba. Este último, no OE, tornou-se um cenário, imaginando um rumo diferente dos acontecimentos.74

Apesar de já ser um termo empregado nas relações internacionais, a ideia de escalada era relativamente nova, mas já consagrada, para a qual, todavia, segundo o cientista social Howard Margolis, Kahn deu uma nova dimensão, uma vez que só ele poderia pensá-la tal como o caminho para a destruição das nações. No entanto, como o próprio Margolis reconhece, ao desenvolver a escalada rumo à destruição, a intenção de Kahn é conhecer os processos, etapa a etapa, para poder manipulá-los, tanto para o país conseguir se aproveitar de forma benéfica das crises, quanto para evitar que a destruição de fato ocorresse.75

Além da escalada, um dos campos que ganhou destaque no HI nos anos de 1963 e 1964 foi o dos futuros hipotéticos, que tratava da ordem mundial e das questões militares. Havia, por exemplo, estudos sobre o Ocidente em torno da OTAN, havendo, por isso, uma preocupação com o futuro da Organização, e estudos sobre a defesa ativa, que consistia, resumidamente, na ABM. Esse tema foi importante dentro do HI, tanto que em 1964 houve um curso no HI sobre o assunto e em 1969, um livro sobre o assunto foi lançado. Os estudos de tecnologia militar e das características ambientais após um ataque também guardavam a característica de um trabalho mais hipotético e prolongado no tempo sobre o futuro.76