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A contribuição filosófica de Habermas e Luhmann

2.4 AMPLA PROCESSUALIDADE ADMINISTRATIVA COMO NOVO

2.4.3 A contribuição filosófica de Habermas e Luhmann

A legitimação da atuação estatal através da participação popular ganha suporte filosófico através da teoria da democracia deliberativa de Habermas (2003) a qual defende a comunicação dos possíveis atingidos28, com a deliberação dos cidadãos sobre determinada decisão política. Pela teoria discursiva procedimental, os cidadãos devem participar do processo de criação do direito, que no âmbito da administração pública corresponde à decisão administrativa, não podendo ser realizado apenas através da força (OLIVEIRA, 2010, p. 114).

28“No sistema da administração pública concentra-se um poder que precisa regenerar-se a cada passo a partir do

poder comunicativo. Por esta razão, o direito não é apenas constitutivo para o código do poder que dirige o processo de administração: Ele forma simultaneamente o médium para a transformação do poder comunicativo em administrativo. Por isso, é possível desenvolver a ideia do Estado de direito com o auxílio de princípios segundo os quais o direito legítimo é produzido a partir do poder comunicativo e este último é novamente transformado em poder administrativo pelo caminho do direito legitimamente normatizado” (HABERMAS, 2003, p. 212).

Para Habermas (2003, p. 142) “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”. Neste sentido, são consideradas legítimas as decisões administrativas que proferidas diante de um procedimento democrático, permite a participação real e efetiva dos participantes, ou melhor, dos possíveis atingidos com a norma de ação.

A visão de democracia deliberativa de Habermas29 (2003, p.104) baseada na comunicação e participação dos possíveis atingidos orientados de forma procedimental, na qual os próprios participantes institucionalizam esses procedimentos para formação da vontade política, contribui filosoficamente para fundamentar a maior participação do cidadão na atividade estatal, legitimando a decisão política através do procedimento, além de incentivar o controle social do ato administrativo.

Para Habermas (2003, p.213) o “poder político é deduzido do poder comunicativo dos cidadãos. O exercício do poder político orienta-se e se legitima pelas leis que os cidadãos criam para si mesmos numa formação da opinião e da vontade estruturada discursivamente”. Trata-se de um processo democrático fundamentado no discurso e destinado a garantir um tratamento racional de questões políticas.

Diferente da democracia representativa, onde a decisão pública se resume à vontade da maioria representada no político eleito, como se verifica nos tempos clássicos. Na visão atual, para haver legitimidade é fundamental o processo comunicativo entre o Estado e a população, onde as pessoas diretamente atingidas devem ser ouvidas através de um discurso racional, no qual os próprios participantes institucionalizariam os pressupostos comunicativos

29 Habermas (2003, p. 212-213) destaca que “no princípio da soberania popular, segundo o qual todo poder do

Estado vem do povo, o direito subjetivo à participação, com igualdade de chances, na formação democrática da vontade, vem ao encontro da possibilidade jurídico-objetiva de uma prática institucionalizada de autodeterminação dos cidadãos. Esse princípio forma a charneira entre o sistema dos direitos e a construção de um Estado de direito. Interpretado pela teoria do discurso (a), o princípio da soberania popular implica: (b) o princípio da ampla garantia legal do indivíduo, proporcionada através de uma justiça independente; (c) os princípios da legalidade da administração e do controle judicial e parlamentar da administração; (d) o princípio da separação entre Estado e sociedade, que visa impedir que o poder social se transforme em poder administrativo, sem passar antes pelo filtro da formação comunicativa do poder”. “Uma vez que a pergunta acerca da legitimidade das leis que garantem a liberdade precisa encontrar uma resposta no interior do direito positivo, o contrato da sociedade faz prevalecer o princípio do direito, na medida em que liga a formação política da vontade do legislador a condições de um procedimento democrático, sob as quais os resultados que apareceram de acordo com o procedimento expressam per se a vontade consensual ou o consenso racional de todos os participantes. Desta maneira, no contrato da sociedade, o direito dos homens a iguais liberdades subjetivas, fundamentado moralmente, interliga-se com o princípio da soberania do povo. Os direitos do homem, fundamentados na autonomia moral dos indivíduos, só podem adquirir uma figura positiva através da autonomia política dos cidadãos. O princípio do direito parece realizar uma mediação entre o princípio da moral e o da democracia” (HABERMAS, 2003, p. 127).

e os procedimentos para a formação da vontade política, devendo ser garantida a comunicação dos atingidos e a sua participação (OLIVEIRA, 2010, p.115).

Para Rafael Oliveira (2010, p.113) no âmbito do direito administrativo, a “participação do cidadão na atuação administrativa é uma forma de concretizar o princípio do Estado Democrático de Direito”, conferindo uma legitimidade renovada à administração, o que “não significa abandonar a democracia representativa, mas compensar o déficit democrático do sistema representativo”. Neste cenário, o processo administrativo se destaca como instrumento que garante a participação do cidadão e consequentemente a legitimação do exercício do poder estatal.

Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2008, p.39) o processo é um meio de “legitimação convencional substantiva” por se referir diretamente a um direito fundamental, e traz legitimidade à medida que permite a participação dos particulares no processo decisório estatal, ponderando os interesses existentes, e servindo para legitimar o uso do poder estatal pelo consenso e não pela força.

Com isso, as decisões da administração pública tornam-se legítimas e em razão desta consensualidade permite um maior cumprimento por parte dos destinatários30, já que a decisão deixa de ser imposta e passa a ser construída conjuntamente com seus interessados, permitindo uma maior efetividade da decisão estatal.

Niklas Luhmann(1980, p. 45) propõe a legitimação pelo procedimento baseada nos aspectos sociológicos e na comunicação dos participantes, a qual permite a maior abertura, complexidade e possibilidade de contradições, e em virtude desta cooperação com a verdade é possível o consenso31, como uma aceitação geral da decisão validamente motivada, apesar de que em alguns momentos haja necessidade de utilizar a coação32.

30 Pereira da Silva (1996, p.402) retrata que “a participação dos privados no procedimento, ao permitir a

ponderação pelas autoridades administrativas dos interesses de que são portadores, não só se traduz numa melhoria de qualidade das decisões administrativas, possibilitando à Administração uma mais correcta configuração dos problemas e das diferentes perspectivas possíveis da sua resolução, como também torna as decisões administrativas mais facilmente aceites pelos seus destinatários. Pelo que a participação no procedimento constitui um importante fator de legitimação e de democraticidade de actuação da Administração Pública”.

31 Niklas Luhmann (1980, p.29-30) retrata que “nenhum sistema político se pode apoiar apenas sobre uma força

física de coação, mas antes deve alcançar um consenso maior para permitir um domínio duradouro. Como o também é certo que um consenso atual, baseado na coerência “casual” dos interesses, não constitui apoio suficiente da soberania; os rebeldes têm de poder ser dominados em caso de necessidade. Ambos, coação e consenso, tem, portanto, de existir sob qualquer forma de relação de associação. Com certeza isto é exato mas tem pouca importância quanto aos processos efetivos que produzem o fenômeno espantoso e surpreendente duma aceitação geral das decisões do governo e as garantem”. Na verdade ocorre uma satisfação interior quando existe uma “participação” democrática nas decisões do governo, legitimando o procedimento através de um

O autor desenvolve uma teoria jurídica sociológica do procedimento que ultrapassa a simples compreensão do procedimento legal, nos termos estabelecidos na lei ou no regulamento, já que o procedimento não pode ser considerado como uma mera sequência de atos ou ações33, mas deve ser assimilada como um “sistema social especial” interligado aos conceitos de ação, situação e relação jurídica, dentro de uma estrutura do sistema institucionalizado (LUHMANN, 1980, p.38). Trata-se então de um “processo institucionalizado de aprendizado, como uma transformação estrutural permanente de expectativas que acompanha o procedimento de decisão” (LUHMANN, 1980, p.35), determinando, portanto, um acontecimento real e não meramente normativo.

Com efeito, a democracia encontra-se alicerçada na possibilidade ampla de participação dos interessados no processo de decisão do poder público, nessa medida, quanto mais o país se afasta desses cânones democráticos de participação e consensualidade, menos legítimo. E o processo administrativo se destaca não apenas como instrumento de participação dos interessados na decisão do poder público, mas permite a legitimação desse poder sob seus aspectos democráticos. Por esse motivo os cidadãos devem participar do processo administrativo de forma ampla, para permitir a legitimidade da decisão na atividade do poder estatal.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2008, p. 21) destaca o referencial de legitimidade sustentado na tríplice posição decorrente do pós-modernismo democrático, porque “além da investidura legítima no poder (legitimidade pelo título)”, demanda-se “um

reconhecimento generalizado denominado por Luhmann (1980, p.30) de “disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância”, através dos “mecanismos sociais que identificam conjunturas muito heterogêneas de motivos”, mas, consensualidade não significa necessariamente aceitação da decisão.

32“O conceito de aceitação tem de ser correspondentemente formalizado. O que quer dizer é que os indivíduos,

por quaisquer motivos, assumam sempre as decisões como premissas do seu próprio comportamento e estruturem as suas expectativas de acordo com isso. [...] Encontrar a fórmula de harmonizar, que permita uma integração na personalidade pela conservação de sua identidade, fica a cargo da fantasia e do poder criador do particular e das suas chances de apoio social. Em todo caso, na base do reconhecimento está um processo de estudo, uma transformação das premissas segundo as quase se elaboram os acontecimentos e se escolhem atuações em que o indivíduo procura continuar a viver em protesto contra a decisão, apresenta resistência, vai sempre buscar o direito lesado, volta sempre buscar o seu direito lesado, volta sempre a arrancar a crosta da ferida e procura organizar auxílio e adesão contra a decisão, em resumo, não aprende: permanece com as suas anteriores expectativas frustradas. Por meio dum aprendizado bem sucedido, as expectativas alteradas pela decisão automaticamente consideradas de dentro para fora e tratadas como um fato (oportuno ou inoportuno); no aprendizado fracassado há necessidade, de situação para situação, de estímulos exteriores para estabelecer um comportamento correspondente à decisão” (LUHMANN, 1980, p.33).

33“Aqui existe um erro óbvio a ser evitado: um procedimento não pode ser considerado como uma sequência

fixa de ações determinadas. Uma tal opinião conceberia o procedimento como um ritual em que uma única ação estaria certa em cada caso e as ações estariam de tal forma encadeadas que, excluindo a possibilidade de escolha, uma dependeria da outra. Essas ritualizações têm uma função específica. Fixam a ação estereotipada e criam assim segurança, independentemente das consequências fáticas que são depois atribuídas a outras forças, que não a ação”(LUHMANN, 1980, p.37).

exercício legítimo do poder (legitimidade pelo exercício)” e ainda um “resultado legítimo do emprego do poder (legitimidade pelo resultado)”. Tal perspectiva decorre da transformação do conceito de democracia, que passa de uma acepção formal para material, amparado em três princípios: o da participação, da eficiência e do controle.

Com efeito, a ampla processualidade administrativa, identificada pelos aspectos da consensualidade, participação e legitimidade democrática, revela-se também como novo paradigma advindo com a constitucionalização do direito administrativo, sendo o processo administrativo o principal instrumento de concretização dos direitos fundamentais, e tendo como resultado a maior participação do cidadão nos processos decisórios da administração pública.

A incorporação desses aspectos principiológicos e filosóficos atrelados às novas formas interpretação constitucional com a Constituição Federal no centro do ordenamento jurídico, têm por finalidade garantir a efetividade e a concretização dos direitos fundamentais, constituindo o novo parâmetro para o direito administrativo.

Dessa forma, o processo administrativo amparado nos princípios processuais constitucionais, serve como instrumento de concretização dos direitos fundamentais, com a finalidade não apenas de limitar a atuação estatal face os abusos cometidos pelo poder estatal, mas também, de promover essas garantias com a atuação mais positiva do Estado, contribuindo para concretização do Estado Democrático de Direito. Ademais, pretende-se, com o enfoque dos aspectos processuais, estudar o princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa que será aprofundado no próximo capítulo.

3 O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA

Ao tratar sobre a interpretação e aplicação de determinado princípio constitucional como direito fundamental, tem-se necessariamente como ponto de partida34 a definição, distinção e colisão entre princípios e regras jurídicas, a própria interpretação da norma e o papel do intérprete diante da constitucionalização do direito, para então adentrar no princípio objeto de estudo deste trabalho.

O escopo desta dissertação não é investigar exaustivamente a doutrina que estuda as diversas concepções de princípios e regras, mas trazer sinteticamente os principais fundamentos teóricos sobre este assunto, que servirão de base para interpretação e aplicação do princípio do contraditório e da ampla defesa em contraposição a outros princípios e aos dispositivos legais que tratam sobre a defesa no processo administrativo disciplinar.