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5 EFETIVIDADE DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA NO PROCESSO

5.2 NATUREZA JURÍDICA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO

O poder punitivo do Estado158 pode ser exercido através de imposição das sanções penais ou administrativas, em decorrência da prática de atos ilícitos. Assim, a sanção é “a consequência negativa atribuída à ocorrência de um ilícito”, por sua vez, ato ilícito “é a inobservância de um dever jurídico, tenha ele natureza civil, penal ou administrativa”. Portanto, não existem diferenças ontológicas em relação à sanção jurídica, mas, peculiaridades de cada regime jurídico que encerram a função jurisdicional ou administrativa (MELLO, 2007, p. 43-44).

157 Art. 133 e Art. 140 da Lei 8.112/90 – “Art. 133. Detectada a qualquer tempo a acumulação ilegal de cargos,

empregos ou funções públicas, a autoridade a que se refere o art. 143 notificará o servidor, por intermédio de sua chefia imediata, para apresentar opção no prazo improrrogável de dez dias, contados da data da ciência e, na hipótese de omissão, adotará procedimento sumário para a sua apuração e regularização imediata, cujo processo administrativo disciplinar se desenvolverá nas seguintes fases: I - instauração, com a publicação do ato que constituir a comissão, a ser composta por dois servidores estáveis, e simultaneamente indicar a autoria e a materialidade da transgressão objeto da apuração; II - instrução sumária, que compreende indiciação, defesa e relatório; III – julgamento”. “Art. 140. Na apuração de abandono de cargo ou inassiduidade habitual, também será adotado o procedimento sumário a que se refere o art. 133, observando-se especialmente que:”.

158 Na mesma linha de pensamento, Enterría e Fernandez (1995, P. 163) entendem que as sanções

Enquanto a sanção administrativa é uma medida aflitiva imposta159 pela autoridade administrativa em função de um comportamento ilícito prescrito pela norma jurídica disciplinar160, a sanção penal é uma medida imposta pelo poder judiciário como consequência de ato ilícito criminal descrito na norma penal (MELLO, 2007, p. 62).

Nas lições de Enterría e Fernández (1995, p. 163) a sanção administrativa é um mal infligido pela administração a um administrado como consequência de uma conduta ilegal, e consiste numa privação de um bem ou direito, inclusive com restrições a pessoa do infrator.

No âmbito do processo administrativo disciplinar, essa medida aflitiva ao indivíduo pode consistir desde uma simples advertência ou suspensão até a demissão ou cassação de aposentadoria, o que significa a aplicação de penas restritivas de direitos, sendo diferente do processo penal, porque além dessas, também aplicam penas privativas de liberdade. Dessa forma, não pode o direito administrativo tipificar condutas e punir com a privação da liberdade161 (MELLO, 2007, p.72-73). Aliás, esse é o critério trazido por Enterría e Fernández (1995, p. 166-167) para distinguir sanção criminal da administrativa, pois, enquanto na sanção penal existe a possibilidade de punir com penas privativas de liberdade, na sanção administrativa pune-se com penas restritivas de direitos.

Apesar da sanção administrativa, em regra, ter como características penas restritivas de direitos, tal afirmação não é absoluta, porque, enquanto no regime disciplinar civil, o servidor pode ter limitação de bens, propriedades e direitos, com aplicação de penalidades de advertência, suspensão, demissão, perda de cargo ou função e ainda a cassação da aposentadoria; no regime disciplinar militar, o servidor pode ainda ter a prisão administrativa decretada, restringindo, inclusive, a sua liberdade pessoal. Portanto, as sanções disciplinares aplicadas diante do processo administrativo, também alcança a esfera particular do indivíduo atingido direitos igualmente protegidos constitucionalmente.

159 Denominação trazida por Mello (2007, p. 62) e Enterría e Fernandez (1995, p.159).

160 “Em suma, é o regime jurídico da sanção que permite separar os ilícitos administrativos dos ilícitos penais.

Sob a ótica formal, é relevante destacar que a sanção administrativa é imposta por autoridade administrativa, no exercício da função administrativa e após o trâmite de processo administrativo; a sanção penal, por seu turno, é imposta por autoridades judiciária, no exercício de função jurisdicional, ao final de processo judicial” (MELLO, 2007, p. 61-62).

161 Com exceção da denominada prisão administrativa, pois “Há, no Brasil uma exceção à regra, prevista no

próprio inciso LXI do art. 5º da Constituição Federal, que permite a prisão de militares por autoridades administrativas, e não judiciária, nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Trata-se de dispositivo que se aplica tão somente aos militares, que se submetem a um regime jurídico dotado de peculiaridades próprias, em função das características do serviço militar, notadamente no que diz respeito à hierarquia e à disciplina” (MELLO, 2007, p. 75).

Diante dos fundamentos teóricos apresentados, não há dúvidas nem ao menos divergências de que o regime jurídico do processo administrativo disciplinar possui natureza punitiva, vez que tem como finalidade apurar irregularidades e ilegalidades administrativas praticadas pelos servidores públicos no exercício da sua função no cargo público e aplicar a correspondente sanção disciplinar.

Nas palavras de Reis (1999, p.30) o processo disciplinar é aquele que visa à apuração de possíveis irregularidades ou ilegalidades praticadas por servidores dos órgãos públicos, impondo penalidades administrativas por infração às leis. Assim, é considerada como uma “atividade resultante de aplicação de normas legais e, eventualmente, de precedentes administrativos e judiciais, utilizados para assegurar uma aplicação uniforme das normas jurídicas”. Não é por outro motivo que o campo do direito disciplinar foi o que mais verificou a necessidade de aplicar o devido processo legal, já que é através deste processo, que a administração impõe penalidades ao administrado por infração às leis (LIMA, 1999, p.217).

É justamente por essa natureza punitiva do processo, decorrente do dever da administração de punir e reprimir desvios de comportamentos dos servidores por meio de imposição da correspondente sanção administrativa aos transgressores, denominados no processo de “acusados”162, que resultam as afinidades com o processo penal.

Desta feita, partindo dos pontos semelhantes com o processo penal é que se pode afirmar a aplicação dos princípios atinentes ao poder punitivo do Estado, como o da legalidade, da tipicidade, da irretroatividade, a culpabilidade, o non bis in idem e o devido processo legal (MELLO, 2007, p. 101-104), além dos princípios do contraditório e da ampla defesa, todos constitucionalmente previstos. É importante frisar que no processo administrativo disciplinar, assim como no processo penal, a sanção tem por finalidade prevenir e reprimir irregularidades163, por isso que as regras disciplinares visam também manter os princípios norteadores da administração pública como a legalidade, a impessoalidade, a moralidade e a eficiência.

162 “Daí que, em razão de que aos acusados em processo administrativo são asseguradas as garantias do

contraditório e da ampla defesa e de que servidores não poderão sofrer punições senão por intermédio do devido processo legal (art. 5º, LIV, Carta Magna de 1988), surge a figura do processo administrativo disciplinar como o meio que o Estado deve observar para exercer seu direito de punir, obedecendo-se a um rito e a princípios jurídicos” (CARVALHO, 2012, p.124).

163 “a existência de regras disciplinares, portanto, colima prevenir irregularidades no serviço público e preservar

os valores e interesses superiores da coletividade confiados à Administração Pública, a qual atua mediante atos praticados por seus agentes, daí a importância do regramento da conduta destes” (CARVALHO, 2012, p.84).

A afinidade do processo penal com o processo disciplinar é tão intensa, que há doutrinadores, como Nelson Hungria, que defendem que este seria um ramo do direito penal denominado de “direito penal disciplinar” ou ainda “direito penal administrativo”, muito embora essa corrente tenha pouco sucesso (VAROTO, 2010, p.38). Inclusive, Cretella Jr. (2010, p.65) classifica o processo disciplinar levando em consideração a natureza da infração: disciplinar e criminal, de forma que se a apuração do ato ilícito for apenas disciplinar denomina-se de “processo administrativo disciplinar”, e se a apuração for de ilícito penal a designação é de “processo administrativo criminal”.

Nesta pesquisa, não será adotada esta classificação proposta por Cretella Jr., tendo em vista que o ilícito penal também é previsto na seara administrativa como ato ilícito administrativo gravíssimo, logo, não teria sentido acrescentar a denominação de “criminal”, o que pode gerar confusão quanto à identificação com o processo judicial criminal.

Inobstante as semelhanças, destaque-se que o processo judicial criminal possui peculiaridades diversas do processo administrativo disciplinar, seja pela própria distinção entre processo administrativo e judicial, já retratado nesta dissertação, como também da autoridade que impõe a sanção, seja aquela exercida na função jurisdicional ou administrativa, portanto, possui características peculiares decorrentes de cada ramo do direito164 em que o processo se insere.

Dessa forma, como o regime jurídico do processo disciplinar é punitiva165, portanto, deve ser dada a garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao acusado de forma mais extensa possível, mesmo porque esse princípio deve ser interpretado de acordo com a Constituição Federal, com todos os aspectos da nova hermenêutica constitucional da máxima efetividade e da interpretação conforme a Constituição166.

164 Além disso, as instâncias administrativas e judiciais são incomunicáveis e independentes, de modo uma

decisão não interfere na outra, salvo quanto à sentença absolutória julgar pela inexistência do fato típico penal ou a negativa de autoria (CRETELLA JR., 2010, p.154).

165 Nas lições de Moreira e com as devidas ponderações, “cremos que em face da Administração o processo

administrativo mais se assemelha ao direito processual penal. Não na suposta defesa de um indefensável processo “inquisitorial”, mas no sentido de que o Estado-Administração detém dever-poder de concretizar o interesse público posto à sua guarda, não podendo dispor dos bens que lhe incumbe tutelar - sobremodo naqueles processos em que não está em jogo propriamente e de modo imediato um interesse (ou direito) da pessoa privada, mas em especial a tutela do interesse público ou de interesses coletivos. A supremacia e a indisponibilidade do interesse público impõe à Administração a observância mais rigorosa dos termos e ritos processuais” (2010, p. 227).

5.3 PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E A GARANTIA DO