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Diagrama 2 – As esferas de preservação da ordem pública

6.2 DESVANTAGEM SITUACIONAL E AS COVARDIAS CARNAVALESCAS

6.2.1 A desvantagem situacional simbólica e a covardia da autoridade

A covardia da autoridade é perpetrada pelos agentes de segurança estatal, sendo talvez a mais temida e odiosa das covardias. Primeiramente, a covardia é perpetrada por aqueles que deveria proteger. Em segundo lugar, a autoridade do perpetrador da violência impede a reação

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A vulnerabilidade social é tratada aqui como o resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais que provêm do Estado, do mercado e da sociedade. Esse resultado se traduz em debilidades ou desvantagens para o desempenho e mobilidade social dos atores (Abramovay et al., 2002, p. 13).

do alvo, mesmo que esta seja em legítima defesa. E para tornar completa a covardia, os alvos preferenciais da violência são os foliões socialmente desacreditados.

Assim, estão em desvantagem situacional simbólica, os foliões “pipoca” negros e negras de classes subalternas perante os agentes das forças de segurança.

Porque a gente sabe como é, muitas vezes, a abordagem policial no Carnaval. Não só no Carnaval, na vida [cotidiana], sabemos quem são os principais alvos. São jovens, negros, da periferia. Isso me assusta muito, porque a gente não ver que a abordagem do folião Bell [Marques] é a mesma do folião de Kannário. A abordagem para o turista branco, do olho verde, rico, privilegiado, não é a mesma pra o jovem negro. Então, meio que me assusta saber que existe essa separação da política pública que está ali para nos proteger. Isso me deixa bem assustada. Eu fico muito irritada quando eu vejo que a abordagem, que a gente sabe que não é a mesma para o folião que está ali no bloco de Bell, com o abadá do Nana banana, e pra o folião que saiu em Kannário na “pipoca” A abordagem é totalmente diferente. Não só a polícia... até a galera, quando fala assim: “olha, sai com Bell”... “olha que legal”... “sai com Kannário”... “ah, não! Pelo amor de Deus”. O povo tem esse preconceito, esse prejulgamento. Enfim...bizarro! (Wynne, 20 anos, Foliã).

Os foliões adeptos ao estilo cultural favela se encontram subjugados na festa da mesma forma que estão na vida cotidiana. A negação social do seu estilo e das possibilidades de compreensão do seu simbolismo corporal reatualiza o racismo e os excluem das oportunidades festivas ampliadas pelo Carnaval. Ademais, as abordagens sistemáticas e direcionadas para eles reforçam o estereotipo de classe perigosa e os deixam amedrontados, pois, nessas interações estão justificadas a ação violenta dos policias. Dessa maneira, as abordagens acompanhadas por castigos corporais são predações policiais, ou covardias, instrumentais e/ou expressivas antecipadamente justificadas.

A covardia da autoridade se constrói, quase sempre, numa relação entre a autoridade e o outro desacreditado. No Carnaval, o castigo corporal vincula o agente ao folião “pipoca” numa relação assimétrica: de um lado, está o exercício do poder arbitrário mediante uso da violência; e do outro, a impossibilidade de reação ou defesa contra a violência empregada.

No jogo do tombo, a desvantagem situacional e, consequentemente, os riscos de covardia por parte da autoridade se ampliam para o folião “pipoca”. Mesmo que não estejam brigando ou realizando outra prática predatória no momento do jogo, os foliões são corporalmente castigados pelos agentes da segurança estatal. A simples presença da patrulha seria suficiente para os “tombeiros” acalmarem os ânimos que se afloram durante o jogo, pois, quando a polícia se aproxima os foliões mais altos sinalizam para os demais, que ao observarem o sinal, param de jogar o tombo. Entretanto, parar o jogo não é suficiente para escapar do castigo corporal.

Curtir o Carnaval, ainda curto. Só que essa pulada [o tombo] está ficando cada vez menos. [...] há dois anos, eu estava pulando, passou uma patrulha quebrando todo mundo. Eu tomei um supapo [soco] na boca, e o local abriu dentro e fora. Aí ele deu outra pancada, eu me abaixei e ele me segurou. Assim, sem eu está fazendo nada... só naquela pulada do "Chiclete". Só que a polícia chega arrebentando, aí vai perdendo a graça. A gente não pode nem pular, dá aquela sacudida mesmo, que é característica do Chicletão. Não pode dar a sacudida que os caras chegam quebrando. Aí é desvantagem (Matheus, 24 anos, folião).

De um lado, o tombo é uma expressividade corporal predominante entre os foliões de segmentos sociais desacreditados. O estilo cultural e a expressividade do tombo desacreditam duplamente o folião “pipoca”. De outro, durante o jogo do tombo, as intervenções policiais ocorrem de forma frequente para rotular a folia tombo como violenta, perigosa e desacreditar ainda mais os foliões. Nesses casos, as intervenções violentas sistemáticas se justificariam e não figurariam como covardias da autoridade policial.

Os excessos de violência aplicados pelos agentes podem se voltar contra a multidão. A violência arbitrária tende a funcionar como uma prática que retroalimenta a violência.

Ao invés de evitar ou coibir a violência, eles instigam e excitam a mesma, porque eles não chegam com medidas de contenção da violência, chegam causando a violência. Eles chegam batendo em quem tem a ver e quem não tem a ver. Os policiais não chegam batendo quando tem conflito, mas chegam batendo quando não tem necessidade. Eles batem por tudo... estão a fim de bater, eles batem. [...] a consequência é que a violência gera violência. Eu não fico apanhado de ninguém. Eu não vou chegar em casa apanhado. Se eu apanhei e não puder descontar na hora, numa outra hora, eu vou descontar... basta surgir a oportunidade. Fica aquele desejo de vingança, fica na boca o gosto de sangue (Juan, 20 anos, Folião).

O revide é uma das concepções dos foliões acerca da violência institucional impingida, sendo caracterizada como uma reação vingativa a uma ofensa. No entanto, havendo a impossibilidade de revidar contra o ofensor, outra pessoa se tornará alvo da vingança. Dessa maneira, o revide pode criar uma cadeia de represálias.

A julgar pelo acúmulo da violência na multidão produzida pelos castigos corporais empregados ao longo do circuito e durante os dias de festa, o prejuízo da ordem pública festiva seria maior se a concepção de revide fosse predominante entre os foliões.