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Diagrama 2 – As esferas de preservação da ordem pública

2.2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2.2 Governança

A imprecisão dos conceitos representa um dos relevantes problemas da análise científica. O conceito de governança não fica indiferente a essa imprecisão. Com essa palavra está ocorrendo o uso amplo da expressão, sem que sua utilização esteja cercada do cuidado analítico que requer. A palavra governança tem sido aplicada em variados campos, com sentidos diferentes. Para alguns autores, isso ocorre para que se possa admitir a governança no plano teórico. Assim, o caminho recomendado é adjetivar o termo em função do contexto no qual a terminologia é praticada (KNOPP; ALCOFORADO, 2010).

Não tem sido nada fácil a demarcação precisa dos limites e alcances do conceito de governança. Com alguma frequência, o termo tem sido alvo de grande confusão, por apresentar certa semelhança com outros, por guardarem entre si uma proximidade, portanto, é necessário precisar o significado da palavra governança, sobretudo em relação ao seu parente próximo.

Para Rosenau (2000), “governança não é o mesmo que governo”. Governança e governo fazem referência “a um comportamento visando a um objetivo, a atividades orientadas para metas, para sistema de ordenação” (ROSENAU, 2000, p. 15). Entretanto, o autor ressalta que esses dois conceitos apresentam sentidos distintos entre si:

[...] governo sugere atividades sustentadas por uma autoridade formal, pelo poder de polícia que garante a implementação de políticas devidamente instituídas, enquanto governança refere-se a atividades apoiadas em objetivos comuns, que podem ou não derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas e não dependem, necessariamente, do poder de polícia para que sejam aceitas e vençam resistências. É ainda um fenômeno mais amplo que governo; abrange as instituições governamentais, mas implica também mecanismos informais, de caráter não-governamental, que fazem com que as pessoas e as organizações dentro da sua área de atuação tenham uma conduta determinada, satisfaçam suas necessidades e respondam às suas demandas (ROSENAU, 2000, p. 15-16).

Por essa via, Rosenau quer demonstrar, que a governança é um sistema de ordenação dependente de sentidos intersubjetivos, sentidos advindos de práticas coletivas, mas que depende também de constituições e estatutos formalmente instituídos. Desse modo, o autor prossegue, demarcando uma independência da governança em relação ao governo, enquanto que este depende de uma estrutura de “mecanismos regulatórios” aquele se sustenta de forma autônoma, estando sujeito ao reconhecimento e a aceitação dos atores envolvidos.

Portanto, a governança é um sistema de ordenação que depende de sentidos intersubjetivos, mas também de constituições e estatutos formalmente constituídos. Para dizê-lo mais claramente, a governança é um sistema de ordenação que só funciona se for aceito pela maioria (ou pelo menos pelos atores mais poderosos do seu universo), enquanto os governos podem funcionar mesmo em face de ampla oposição à sua política. Nesse sentido, a governança é sempre eficaz, quando se trata das funções necessárias para a persistência sistêmica, ou então não é concebida para existir efetivamente (com efeito, não se fala em governança ineficaz, mas sim de anarquia ou caos). Por outro lado, os governos podem ser bastante ineficazes sem que deixem de ser considerados como existentes – diz-se simplesmente que são “fracos” (ROSENAU, 2000, p. 16).

Pode-se falar, então, “em governança sem governo – sem mecanismos regulatórios em uma esfera de atividade que funcione efetivamente mesmo que não tenha o endosso de uma autoridade formal” (ROSENAU, 2000, p. 16). Entretanto, existem discordâncias da ideia de

“governança sem governo”. Para os opositores, a governança sem governo significaria governança sem poder. Aqui reside uma estrita vinculação entre a governança e o governo formal. Ao reduzir a governança ao exercício de governo politicamente estruturado, esse ângulo de análise estabelece uma identidade entre poder e Estado, atribuindo a este o monopólio daquele. Perdendo de vista, portanto, a estreita relação existente entre governança e poder.

Como chave explicativa, o conceito de governança diz respeito ao “conjunto de mecanismos, processos, estruturas e instituições por meio dos quais diversos grupos de interesses se articulam, negociam, exercem influência e poder” (KNOPP; ALCOFORADO, 2010, p. 6). Sob essa perspectiva, tratar de governança consiste em tratar da distribuição de poder entre os atores e do controle sobre práticas, decisões e ações.

Essa noção de governança mantem uma relação com a realidade focada nesse trabalho: o estudo procura entender a governança sobre um determinado espaço, que circunscreve e demarca os seus limites, ao mesmo tempo em que pretende controlar as condutas dentro e fora dele. Aqui, então, o que está no centro da discussão é a noção de governança enquanto distribuição e exercício de poder e controle de condutas. Embora o poder em jogo não se trate, necessariamente, de um poder de polícia.

Enquanto uma prática social, o conceito de governança reivindica uma noção que se afina, sobremaneira, com a noção de prática de governo elaborada por Foucault. Para este autor, governar consiste no exercício de poder que incide sobre as condutas. Se “a ‘conduta’ é, ao mesmo tempo, o ato de conduzir os outros (segundo mecanismos de coerção mais ou menos estritos) e a maneira de se comportar em um campo mais ou menos aberto de possibilidades”, governar é “ordenar a probabilidade”. Em síntese, governar, enquanto exercício de poder, “é estruturar o eventual campo de ação dos outros” (FOUCAULT, 2010, p. 288).

Foucault associa governo sempre à conduta ou “condução de condutas”, pois o termo se aplica tanto ao governo de si como ao governo de outros. Desse modo, governo em Foucault não pode ser somente entendido no sentido restrito que comumente é aplicado, ou seja, como uma instituição estatal. A noção de governo associado à administração do Estado é estendida para a temática do autocontrole, da condução da família, da direção da alma (FOUCAULT, 2010, p. 288).

Para Foucault, em uma sociedade, as formas e lugares de governo dos outros são múltiplas: “superpõem-se, entrecruzam-se, limitam-se e anulam-se, em certos casos, e reforçam-se, em outros”. E, para o autor, nas sociedades contemporâneas, o Estado configura

simplesmente uma das formas ou lugares de exercício de poder, “mas que, de certo modo, todos os outros tipos de relações de poder a ele se referem” (FOUCAULT, 2010, p. 292)

Todas as formas de governos ou exercício de poder estão dentro do Estado, mas não porque dele derivem. O filósofo explica que isso é um produto da contínua estatização das relações de poder.

[...] ao nos referirmos ao sentido restrito da palavra “governo”, poderíamos dizer que as relações de poder foram progressivamente governamentalizadas, ou seja, elaboradas, racionalizadas e centralizadas na forma ou sob a caução das instituições do Estado. (FOUCAULT, 2010. p. 247).

Governamentalidade é um conceito de Foucault, ou melhor, um neologismo do autor para explicar o pano de fundo dos seus estudos acerca da racionalização do poder. Essa é uma relação de poder e uma prática política de governo correspondente que se desenvolve a partir do século XVIII. O termo governamentalidade faz referência ao poder que se exerce sobre a população por meio dos dispositivos de segurança produzidos pela biopolítica.

Os estudos de Foucault (2010) acerca do governo e da governamentalidade são aproximações ao problema do poder, são instrumentos para sua compreensão. O termo governamentalidade congrega a tecnologia de poder, o “governo”, e a racionalidade política que lhe compete, a “mentalidade”. A Foucault interessava as diferentes formas de como a governamentalidade foi aplicada na história do Ocidente. Em seu formato moderno, a governamentalidade está vinculado ao exercício de gestão das coisas e das pessoas, a um problema de governo, relativo à condução, ao cuidado e sustento dos indivíduos tomados individual e coletivamente no conjunto da população.

Ao afinar com a noção de prática de governo desenvolvida por Foucault, a noção de governança, aqui perseguida, deve ser compreendida com base nas táticas de governamentalidade. Dessa forma, governança consiste na mobilização de tecnologias de governo da conduta aliado ao conjunto de saberes no contexto social de governamentalidade. E nos dias atuais, as formas de governanças, estatais e não estatais, estão escritas numa ordem social governamentalizada pelo neoliberalismo.

Como foi dito, Foucault não entende o liberalismo como teoria econômica ou jurídica, mas como racionalidade governamental. Para o autor, a questão a ser perseguida consiste em responder, como “Num sistema preocupado com o respeito dos sujeitos de direito e com a liberdade dos indivíduos, como é que o fenômeno população com seus efeitos e com seus problemas específicos pode ser levado em conta” (FOUCAULT, 2008a, p. 468). Assim, o liberalismo como razão governamental que juridicamente proclama a liberdade do sujeito e economicamente a liberdade do mercado, atua sobre a população por meio de dispositivos de

segurança que limitam e controlam suas escolhas, desejos, comportamento, mobilidade, saúde, alimento, enfim, a vida do indivíduo.