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Diagrama 2 – As esferas de preservação da ordem pública

4.3 A MULTIDÃO CARNAVALESCA COM E SEM CORDAS

A multidão carnavalesca é constituída de folias corporais, ou seja, de folias que se formam em torno dos trios independentes. Com efeito, o referencial analítico da multidão carnavalesca são as folias “pipoca”, isto é, as folias não segregadas pelas cordas.

O “Carnaval sem cordas” é um modelo alternativo à crise comercial dos blocos, e desta forma, os trios independentes ainda dividem o espaço da festa com as entidades. A presença ou ausência das cordas confere à multidão carnavalesca distintas estruturas internas:

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Disponível em: <https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/folia-de-seis-digitos-saiba-quanto-custa- colocar-um-bloco-na-rua/>. Acesso em: 05 abr. 2018.

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Disponível em: < https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/adeus-crise-venda-de-abadas-de-blocos- cresce-ate-40-este-ano//>. Acesso em: 07 mar. 2019.

fracionamento com ou sem segregação das folias corporais. As estruturas correspondem, respectivamente, aos modelos de Carnaval com corda e sem corda, mas com a crise dos blocos, as duas estruturas coexistem na multidão.

4.3.1 Fracionamento de multidão

No que tange ao modelo alternativo à crise comercial dos blocos, a presença reduzida dos blocos deixa mais espaço para o folião “pipoca”. Entretanto, mesmo sem a segregação das cordas, a multidão carnavalesca não configura um aglomerado contínuo, uniforme e indivisível de foliões. Com a predominância do desfile dos trios independentes fica visível o fracionamento como estrutura da multidão.

O fracionamento de multidão é um fenômeno do Carnaval com fila e desfile sequenciados de trios elétricos. Trata-se de um aglomerado com frações demarcadas, que além das folias corporais inclui o corpo plural e o corpo plural ampliado.

O corpo plural é a unidade básica da multidão carnavalesca, pois raramente alguém vai ou curte sozinho à festa. O comum é a experiência de participação em grupo. O corpo plural é formado segundo uma racionalidade lógica de organização e disposição. O número de participantes é definido pelo propósito do grupo. Um número reduzido de participantes facilita a gestão do grupo, sobretudo quando os integrantes estão em itinerância, mas quando os foliões pretendem a demarcação e o domínio espacial, eles ampliam o número de participantes do agrupamento. O corpo plural ampliado é a fração de multidão que ocupa espaços específicos nas calçadas ou passeios ao longo do circuito. Muitas vezes, esses foliões fazem uma festa à parte nesses espaços.

Já as folias corporais são concentrações de foliões constituídas em torno dos trios independentes sem um cordão de insulamento. De tal modo, são frações demarcadas, que dispostas ficam ao longo dos desfiles dos trios e separadas uma da outra por um espaço quase que vazio. Mesmo quando as folias formam concentrações densas, e os trios que as animam estão relativamente próximos, elas não se misturam. Isso ocorre porque cada folia tem uma dinâmica própria de funcionamento.

A folia corporal é a atração, a concentração, o ajuntamento e o contato de corpos, numa atmosfera excitantemente envolvente de liberdade expressiva, que se forma em torno de uma fonte ou atração musical de performance efervescente ou contemplativa. O artista funciona como centro irradiador da força centrípeta que concentram os foliões. A direção de

atração da força centrípeta é radial, ou seja, ela está apontada para o centro do trio, o que leva à concentração de foliões da lateral para a frente do veículo.

As folias são formadas pela relação de afinidades dos foliões com a atração musical e pelas oportunidades que oferecem. O tamanho e a densidade são diretamente proporcionais ao significado das atrações artísticas para os foliões. Quanto maior esse significado, maiores e densas são as folias. Dessa maneira, os contatos corporais são definidos pela densidade do espaço ocupado pelos foliões em torno do trio.

É simples a identificação da densidade da concentração da folia corporal “pipoca”. O folião encara a concentração da folia corporal “pipoca” e tenta adentrar seguindo o fluxo ou no contrafluxo. Enquanto ele obtiver êxito sem dificuldades para andar e para dançar, a densidade é de dispersão-rarefação. Mas quando o folião começa a encontrar obstáculos e precisa buscar constantemente rotas de desvio para vencê-los, a densidade é rarefeita-densa. Esta densidade diferencia-se da densa-aperto, na medida em que apesar de encontrar dificuldades de circulação, nela o folião ainda consegue uma performance expressiva corporal. E na ocupação densa-aperto só resta a disposição para o embate corporal (Diário de campo, 2017).

Assim, as folias corporais envolvem concentrações de foliões cujas densidades variam num contínuo, que tem como extremos, a dispersão e o aperto. No primeiro polo, a ocupação dos foliões não satura o espaço disponível. No outro extremo, a densidade da concentração decorre de uma crescente saturação da ocupação espacial.

Nas folias densas, que são compostas por uma crescente saturação do espaço e pela efervescência corporal, a atração e os contatos dos corpos formam concentrações com diferentes zonas de densidade. Os corpos se concentram em zonas de densidades semicirculares, que se estendem e se modificam. A extensão de cada uma dessas zonas de densidades depende do tamanho do espaço e da quantidade de foliões atraídos pelo artista. No entanto, quando a folia é contemplativa ou não configura uma crescente saturação espacial, não se formam zonas distintas.

A força centrípeta atrai os foliões para órbita do trio pela disposição que anima seus corpos. A disposição corporal combina uma inclinação, vontade e condição. A tendência concerne à inclinação do folião para curtir e brincar a folia com o seu corpo. Essa tendência está vinculada à maneira de se expressar corporalmente com ou sem doses de agressividade. A vontade consiste nos desejos e motivos orientadores que estão associados ao prazer. E, por fim, a condição é o estado físico do corpo, no momento da efetivação da tendência e da vontade na folia corporal.

Esse significado também é responsável pela extensão do fracionamento da multidão, pois, quanto mais diversificada as atrações artísticas famosas e com significado para os

diferentes grupos de foliões, mais extenso é o fracionamento e ampliada as oportunidades carnavalescas. Com efeito, a marca distintiva do desfile dos trios independentes e do fracionamento de multidão sem segregação da folia pelos blocos é a possibilidade dos foliões “pipoca” de escolher o lugar aonde querem curtir a folia corporal, consoante ao significado das atrações artísticas e a sua disposição corporal, e aproveitar as oportunidades que esta tem para oferecer.

4.3.2 Segregação da folia corporal

Por muito tempo, o desfile dos blocos se tornou soberano no Carnaval de Salvador. O espaço de desfile teve durante um certo período as suas margens delimitadas por faixas de cor azul, pintadas sobre o asfalto. Mas, como na prática, esse espaço acabava sendo demarcado pela corda erguida pelos blocos, as faixas foram apagadas.

Desde a sua conformação como Carnaval-negócio, a marca do Carnaval de Salvador é a corda erguida em torno do trio. A corda erguida pelos blocos demarca uma circunscrição espacial privada à entidade na via pública. Ao tempo que se demarca a circunscrição espacial, com a corda, ergue-se um insulamento.

A corda erguida em meio a multidão não é uma novidade inaugurada pelos blocos de trio. Em sua gênese, o uso da corda nas festas de ruas não surgiu como uma estratégia de negócio. No antigo desfile de blocos, o caráter divisório da multidão era de pertencimento. Com a corda erguida os blocos pretendiam uma demarcação de sua identidade coletiva (MIGUEZ, 1996; MOURA, 1996).

Com efeito, a novidade reside na utilização da corda como um artefato comercial. O insulamento transforma o bloco em um produto comercial de grande lucratividade. No carnaval-negócio, a razão de ser do insulamento é a privatização de espaço público em torno do trio elétrico para a venda de “ingressos”. A aquisição de uma indumentária, a camisa ou o abadá, vendida pela entidade é o passaporte do folião para adentrar e permanecer nesse espaço.

Ao demarcar na multidão um espaço privado, as entidades oferecem aos foliões associados uma distinção participativa fundada no pertencimento. Esses foliões que curtem a festa do lado de dentro da corda são reconhecidos pelo fama da entidade. Eles portam uma identidade, que leva o nome do bloco que estão associados: folião das Muquiranas, do Camaleão, do Eva, Timbaleiros etc.

Já os que brincam fora das cordas dos blocos e dos camarotes são reconhecidos como folião “pipoca” ou “popoca” alternativa. Uma legião destes foliões ocupa os espaços que sobram na passagem dos blocos. As áreas marginais da rua são os espaços que restam. Estes podem corresponder somente aos passeios da rua ou as áreas abertas que não foram ocupadas pelos camarotes. Entre um bloco e outro também sobra algum espaço. Tomando conta desses espaços, uma concentração de foliões acaba por envolver os blocos na multidão.

A folia que se forma, a partir da ocupação dos espaços previamente estabelecidos, fica segregada, dividida entre a fração dos foliões de dentro e a fração dos foliões de fora dos blocos. A corda dos blocos circunscreve o espaço dos foliões de dentro, além de limitar a apropriação do espaço pelos foliões de fora.

Na folia segregada o espaço de fora também sofre uma subdivisão, e os foliões “pipoca” acabam participando da festa, distribuídos em duas formas de aglomeração. Uma parte significativa destes foliões continua na audiência. Agora, mais como espectadores e menos como folião, eles vivenciam a festa como um espetáculo. Mesmo quando a motivação primeira não é a de espectador, a corda dos blocos obriga ao folião a ficar na audiência.

De outra forma, foliões curtem as atrações artísticas dos blocos, formando uma folia “pipoca” alternativa. Nos dois lados dos blocos, entre os paredões humanos do insulamento e da audiência, formam-se estreitos corredores de circulação. Dessa forma, procurando curtir ativamente a folia (não como audiência, mas “atrás do trio”), os foliões brincam encurralados nesses corredores.

5 MULTIDÃO CARNAVALESCA E FESTIVIDADE

A multidão é do tamanho das expectativas que os foliões têm da festa, ou seja, a multidão carnavalesca materializa os sentidos e significados que os foliões atribuem ao Carnaval. Imersos na multidão, os foliões experienciam situações de interação e vivenciam encontros significativos. A multidão carnavalesca proporciona aos foliões uma experiência de densidade física e simbólica ampliada. O Carnaval oferece múltiplas oportunidades de satisfação de prazeres. Tais oportunidades carnavalescas dão sentido e retroalimentam as motivações que criam e animam a própria festa. Tratam-se de oportunidades que constituem uma reprodução ampliada das oportunidades festivas de encontros significativos ofertadas pela vida cotidiana.