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Diagrama 2 – As esferas de preservação da ordem pública

2.2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2.1 Multidão

As ações coletivas desenvolvidas nos espaços públicos têm sido objeto de grande interesse por parte das Ciências Sociais. Segundo Jesus (2013), as ações de movimentos sociais, sobretudo, aquelas sem uma liderança determinada, têm chamado a atenção dos meios

de comunicação e exigido explicações de especialistas para sua ocorrência. Os especialistas em multidão expressam a dificuldade em entender os fenômenos de massa que não sejam movimentos organizados (BURNS, 2011). Dessa maneira, as multidões e as ações coletivas não podem ser compreendidas da mesma forma que os movimentos sociais,

[...] dada sua amplitude e desvinculação de princípios de afiliação próprios dos movimentos sociais. Utilizar os mesmos parâmetros para entender um e o outro fenômeno leva a entendimentos falaciosos acerca do funcionamento das massas humanas (JESUS, 2013, 494).

Os primeiros estudos sobre multidão foram realizados e sistematizados pela psicologia social. A psicologia das massas tem o indivíduo e os efeitos da multidão sobre o seu comportamento como foco de análise. Atualmente, os estudos têm concebido a multidão como um coletivo de ações, interações e relações e estrutura. McPhail (1991) defende a existência de pelo menos duas psicologias sociais: “psicológica social psicológica”, que investiga a influência da presença de outros na cognição individual, comportamento e emoção dos indivíduos; e a “psicologia social sociológica”, cujo olhar está voltado para as origens, desenvolvimento e consequências de duas ou mais pessoas juntas.

O comportamento individual ou coletivo em multidões tem os seus primeiros registros feitos pela ciência no final do século XIX. As primeiras explicações defendiam que o comportamento apresentado pelas multidões era proveniente de pessoas marginalizadas, possuídas, loucas ou com tendências inatas para o crime (MCPHAIL, 1991).

O francês Gustave Le Bon, em “Psicologia das multidões” (1980), introduziu uma concepção homogênea, desordenada e patológica de multidão. Segundo o autor, embora a multidão seja composta por indivíduos considerados normais, os processos psicológicos coletivos alteram a maneira de sentir, pensar e agir dos que compõem a aglomeração.

O que há de mais impressionante numa multidão é o seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem, sejam quais forem as semelhanças ou diferenças no seu gênero de vida, nas suas ocupações, no seu caráter ou na sua inteligência, o simples fato de constituírem uma multidão concede-lhes uma alma coletiva. Esta alma fá-los sentir, pensar e agir de uma maneira diferente do modo como sentiriam, pensariam e agiriam cada um isoladamente. Certas ideias, certos sentimentos só surgem e se transformam em atos nos indivíduos em multidão (LE BON, 1980, p. 12).

Para Le Bom (1980), os indivíduos integrados a multidões são incapazes de autogoverno. Isso seria o efeito de três causas determinantes da multidão. A primeira é o desaparecimento do sentimento de responsabilidade dos indivíduos diante do anonimato da multidão. A segunda causa é o “contágio mental” que envolve os indivíduos em uma multidão e os fazem seguir cegamente as ideias e emoções predominantes nela. A terceira causa é o

“poder de sugestão” que determina nos indivíduos em multidão características específicas às vezes bastante opostas aos do indivíduo isolado.

Essas ideias foram mantidas vivas por uma variedade de psicólogos (McDougall 1908; Martin 1920; Freud 1921) e sociólogos, entre os quais os principais proponentes foram Park (1904, 1930; PARK; BURGESS, 1921), seu aluno Blumer (1939, 1957), e os alunos de Blumer (MCPHAIL, 1991). Entretanto, a psicologia e sociologia das massas têm-se orientado por linhas teóricas e investigativas diferentes, que incluem entre as principais a teoria da predisposição, teoria da norma emergente, teoria da desindividualização e teoria da identidade social.

As ideias de Le Bon foram bastantes difundidas, porém entre psicólogos e sociólogos a recepção não era a mesma. O americano Floyd Allport atacou vigorosamente as teses de Le Bon, oferecendo uma alternativa teórica para explicar o comportamento individual nas multidões. Segundo Mcphail (1991), Allport rejeitou veementemente o significado de grupos, instituições e qualquer noção de “mente coletiva” na transformação do indivíduo, afirmando que o indivíduo na multidão se comporta exatamente como ele se comportaria sozinho, só que mais. Ou seja, o individualismo enfático de Allport não dispensou o mito patológico das multidões. Em vez disso, ele simplesmente ofereceu uma explicação diferente para as multidões que mantiveram uma variação do mito vivo.

Afirma Mcphail (1991) que o argumento de Allport defendia que o comportamento individual dentro e fora da multidão é controlado por tendências inatas e apreendidas dos próprios indivíduos a se comportar. Assim, as multidões se formam porque indivíduos com predisposições semelhantes foram compelidos a convergir em um local comum. Desta maneira, a formação de multidões e suas ações coletivas foram atribuídas a alguma tendência compartilhada por aqueles que convergiram em um local onde suas predisposições supostamente os obrigaram a agir da mesma forma e juntos. Em vez de serem controlados pela multidão, os indivíduos eram controlados por suas predisposições compartilhadas. Quando essa predisposição é estimulada, o resultado é o comportamento coletivo (MCPHAIL, 1991).

A teoria da predisposição passa a ser questionada pela teoria da norma emergente de Turner e Killian. Segundo Greenberg (2010), os autores argumentaram que um indivíduo é influenciado pela multidão por acreditar que, se todos os outros estão agindo de determinada maneira, as ações não podem estar erradas – a multidão simplesmente redefine a norma para o comportamento correto. A teoria da norma emergente discorda do papel causal do contágio emocional e defende que as pessoas agem da maneira que fazem nas multidões, porque a

multidão ajuda a definir a situação e o comportamento apropriado. Essa teoria apresentou uma evolução frente aos pensamentos de transformação e predisposição ao promover a conexão entre o comportamento do indivíduo com as ações das grandes massas (MCPHAIL, 1991).

Já a teoria da desindividualização do comportamento da multidão defende, segundo Jesus (2013), que o anonimato da multidão leva a uma falta de restrição. Desindividualizar-se é se tornar parte da massa, que sob o manto do anonimato torna sua responsabilidade individual, difusa entre os demais membros da multidão. Os partidários dessa teoria, tais como Diener (1980) e Mullen (1986), sustentam que o senso de anonimato mantém uma relação diretamente proporcional ao tamanho da massa (JESUS, 2013). Elevadas concentrações tendem a maior desinibição e impulsividade dos participantes.

Com base no conceito de mente grupal, os autores defendiam que, quando em grupos com os quais se identificam, as pessoas passam por um processo de perda das restrições morais e comportamentais, tornando-se mais suscetíveis a agir de forma diferente da cotidiana e até mesmo de se engajar em práticas antissociais, de acordo com as orientações do grupo maior (JESUS, 2013, 499).

No entanto, de acordo com Bruhns (2011), John Drury, Stephen Reicher e toda a disciplina da psicologia de multidões, a teoria foi desacreditada ao longo de décadas de pesquisa. Em grupos, quando as pessoas se tornam anônimas, o que elas fazem é mudar da identidade individual para a identidade social e depois agir com base em normas coletivas, valores, padrões.

Segundo Jesus (2013), Reicher se contrapõe à teoria da desindividualização por ignorar o senso de empoderamento adquirido pelos integrantes das multidões. Isso porque, considerando que nas multidões se reúnem pessoas com predisposições parecidas, “o comportamento de cada indivíduo nesses grandes coletivos é mais influenciado pela identificação social com as normas do grupo do que pelo anonimato” (JESUS, 2013, 499).

Segundo Greenberg (2010), até recentemente, a psicologia da multidão atraiu pouca atenção dos psicólogos sociais. Graças aos esforços de Reicher, o interesse pelo assunto foi reavivado. Tomando uma perspectiva de identidade social, Reicher cita evidências de estudos experimentais e de campo mostrando que a identidade social constitui a base de grande parte do comportamento da multidão. As pessoas se definem em parte com base nos termos estabelecidos pelos grupos aos quais pertencem. Ações de multidão ou multidão representam uma expressão dessa identidade. Assim, em vez de perder seu senso de identidade nas multidões, o comportamento da multidão atua para reafirmar a identidade dos participantes.

Segundo Greenberg (2010), as multidões podem ser subdivididas em ativas ou passivas, a primeira sendo uma multidão e a segunda uma audiência. As multidões são classificadas de acordo com o comportamento dominante dos participantes, seja agressivo, escapista, aquisitivo ou expressivo.

Multidões agressivas, que incluem multidões de motins e linchamentos, envolvem uma exibição de agressão contra pessoas ou objetos. O comportamento dominante das multidões escapistas é de pânico, como durante um incêndio em um teatro. Escape ordenado não é pânico. Como o pânico é emocional e irracional, o comportamento de fuga da multidão dirigida pelo medo deve ser mal adaptativo do ponto de vista do indivíduo ou, se pessoalmente adaptável, o comportamento deve sacrificar implacavelmente os interesses de outros que também procuram escapar. Multidões aquisitivas são semelhantes às multidões escapistas, em que ambas envolvem uma competição por algum objeto que está em falta – seja o objeto de aquisição no caso da multidão aquisitiva, seja as possibilidades de escape ou saídas no caso da multidão escapista. As multidões expressivas representam uma categoria que inclui todos que não se encaixam nas três primeiras. Nelas predomina o comportamento ativo, racional e organizado: comportamento que pode ser exibido em rituais religiosos, eventos esportivos e shows de música rock.

A questão central que se encontra na base das formulações teóricas sobre as massas ou multidões reside na precedência lógica das partes ou do todo, isto é, os indivíduos se sobrepõem sobre a multidão ou vice-versa? Essa questão nos fornece a pista de que a ordem ou a desordem na multidão é construída e envolve simultaneamente a capacidade de governo e autogoverno (ou seja, controle) das condutas dos participantes. Ao mesmo tempo, a noção de ordem na multidão demostrar a estreita relação entre governança, segurança e policiamento.