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Diagrama 2 – As esferas de preservação da ordem pública

8 PRODUÇÃO DA ORDEM PÚBLICA FESTIVA E REDES INFORMAIS DE

8.1 AS REDES IDENTITÁRIAS E A AUTOGESTÃO DA SEGURANÇA

8.1.3 Controle do risco, autogoverno e as tecnologias do corpo

A lógica performática da curtição “pipoca” exige do corpo o uso de tecnologias para o aproveitamento das oportunidades festivas. O corpo plural, o capital muscular e o corpo bélico são tecnologias que alimentam a confiança do folião, aumentando a disposição para o embate corporal intenso e instrumentalizando aquele para o controle do risco.

O corpo plural é uma tecnologia de controle do risco imprescindível na fruição das oportunidades festivas, mas cada uma das suas versões, simples ou ampliada, tem funções e implicações específicas no controle do risco.

Na autogestão de risco dos foliões, o corpo plural ampliado deve ficar estacionado em locais fixos, e a capacidade de fixação e defesa do espaço é diretamente proporcional ao número de participantes do corpo plural.

Eu costumo sair acompanhado, sempre. Saio com amigos... Já teve carnaval que eu saí com a namorada, mas normalmente saio com os amigos. Dois ou três amigos pra não criar aquela muvucada, para evitar confusão, porque a gente sabe, quanto mais muvuca maior tendência de a gente achar confusão na rua. [...] Se está na “pipoca” andando em grupo, a gente tem que se preocupar com si mesmo e com os outros que estão com você. Está andando com dois, se preocupa com dois. Está andando com dez se preocupa com dez. Agora assim... se você está parado num lugar e vai ficar na “pipoca” só ali, quanto mais pessoas, melhor. Pra evitar a circulação... porque o vai e vai faz com que a pessoa sem querer procure confusão (Fred, 22 anos, Folião).

O corpo plural ampliado só é apropriado para a audiência. Primeiramente, para a folia e itinerância “pipoca”, ele pode comprometer o monitoramento e controle das ações dos participantes. Em segundo lugar, o que seria uma prática para aumentar a vantagem situacional pode configurar uma ameaça para outros foliões. Por fim, o corpo plural tem que ser uma tecnologia de autogestão de risco e não um risco para os seus participantes. Dessa maneira, o corpo plural deve ser numericamente pequeno para a itinerância, e ampliado para a audiência.

Para a itinerância, sobretudo, em situação de aperto, o corpo bélico é a tecnologia mais apropriada. O corpo singular ou plural pode ser usado pelo folião como instrumento bélico. O corpo bélico é o corpo voltado para a intimidação, o embate ou confronto corporal, ou seja, é corpo que porta capital muscular ou disposição corporal.

O capital muscular é uma relação social que permite a acumulação e reprodução dessa relação. Um corpo sarado, com contornos dos diversos grupos musculares marcados e visíveis, configura um capital muscular, cuja acumulação permite a sua reprodução física e simbolica como instrumento de manipulação. Esta manipulação do capital muscular consiste no uso do corpo para dominar e subordinar outros corpos, logo é o uso do corpo como um instrumento de dissuasão.

[No aperto] a ideia aí é abrir caminho. Melhor colocando, a ideia é fazer com que o outro não encoste em você. Então, assim, o máximo que você puder fazer pra que o outro não encoste, perceba que ali não é uma região confortável pra ele se encostar... Eu, geralmente, saio no carnaval sem camisa, porque é a maneira que eu tenho de fazer com que o outro tenha uma primeira impressão, mesmo que não seja... Eu tenho amigos, por exemplo, que são muito fortes também e não sabem nenhum tipo de luta, não são de brigas, não são de nada, mas que saem sem camisa, e o pessoal se afasta. Justamente porque tem ali uma primeira impressão do cara, como se o cara fosse... Então, assim, eu saio sem camisa justamente pra no primeiro momento causar uma impressão do tipo: ó, não encosto ali não! (André, 39 anos, Folião).

Uma tecnologia de manipulação do capital muscular bastante usada é a exposição dos músculos. Como forma de intimidação, os foliões circulam entre a multidão sem camisa, exibindo o contorno dos diversos grupos musculares visíveis, representando a exposição do potencial bélico do corpo como uma ameaça do uso da força física.

Na ausência de capital muscular, o corpo pode expressar ou manipular uma atitude de enfrentamento.

Uma coisa que eu faço é adotar uma postura de enfrentamento mesmo. Às vezes, eu espero, dependendo de como esteja a multidão; mas, às vezes, como o pessoal está se jogando, então você também vai se jogando e

cortando o fluxo pra poder sair e pegar aquelas ruas de fora e chegar nos lugares mais rápido. Geralmente, eu adoto essa postura. O pessoal está empurrando eu também vou empurrar. No ano passado, eu tive que ficar parada com o pessoal e o povo empurrando. Ah, não velho... Não vou tomar porrada nenhuma aqui. Eu fui no mesmo movimento... Está empurrando, eu também empurro. [...] Eu lembro quando a gente atravessou a “pipoca” [...], era um grupo de pagodão [Say de Bamba] E aí estava a gente de frente... eu, minha irmã e esses dois amigos do Rio de Janeiro. Aí, eu botei eles atrás de mim e fui cortando. Eu tenho uma coisa com a minha irmã de proteção e eu quero que ela fique sempre atrás. E como eles [os amigos] eram do Rio, não sabiam como era a movimentação. Então eu fiquei na frente e fui cortando. Pegando o movimento da galera, até conseguir sair, cortar todo mundo e ir pra calçada (Amanda, 30 anos, Foliã).

O corpo para expressar uma disposição bélica tem que ser capaz de adequar essa expressividade ao quadro de referência simbólica da situação de enfrentamento. Se no momento da itinerância, se os foliões estiverem passando por uma folia de expressividade tombo com estilo cultural favela, por exemplo, eles devem manipular impressões e adequar à expressividade do corpo.

Com a autogestão de risco e o autopoliciamento, os foliões garantem a ordem pública festiva no nível micro e deixam para os demais níveis de preservação a gestão do que eles não podem controlar ou o que fogem ao seu controle.