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Diagrama 2 – As esferas de preservação da ordem pública

6.1 OS NÚMEROS DA VIOLÊNCIA NO CARNAVAL

As oportunidades predatórias na multidão carnavalesca são situações que possibilitam a perpetração de violência instrumental ou expressiva. Seja como um meio ou um fim em si mesmo, essa violência produz nas vítimas lesões corporais fugazes, temporárias ou permanentes, podendo ser superficiais ou profundas. Tais lesões corporais são ofensas ocasionais à normalidade funcional do corpo alvo da predação violenta. De acordo com a intensidade, a lesão corporal pode comprometer parcial ou totalmente as funções do corpo ou levar à morte.

As causas externas dos ferimentos e das mortes indicam a possibilidade dos foliões ingressarem nos circuitos munidos de armas ou equivalentes. As agressões corporais, que são lesões provocadas pela força física, arma branca e arma de fogo, foram as responsáveis pelo ferimento e pelas mortes de foliões e outros atores carnavalescos.

A agressão por arma de fogo resulta em lesões perfuro-contundentes (PAF). Os projéteis de arma de fogo (ou balas) atuam sobre o alvo contundindo e perfurando. Esse tipo de agressão corporal, embora seja motivo de preocupação e responsável por lesões graves, não é a única causa das mortes no Carnaval. As amas brancas e a força física também têm participação nas mortes e superam a arma de fogo nos registros de lesões.

As agressões por arma branca produzem lesões nas vítimas mediante a utilização de instrumentos convencionais ou improvisados. Tais instrumentos podem ser contundentes, capazes de agir batendo traumaticamente no organismo da vítima (como pau, pedra, martelo, lata, barra de ferro, cassetete), cortantes (como navalha, faca, gilete, canivete, louça, papel, vidro, folha de flandres, plástico e outros), perfurantes de pequeno calibre e raramente mortais

(alfinete, agulha, prego, espinhos palmeira), de médio calibre e potencialmente mortais (espeto de churrasco, furador de gelo ou de carne) e de grande calibre e mortais (florete, estacas e outros). Além desses, existem outros instrumentos mistos, do tipo corto- contundente, com superfície de corte impulsionado pelos membros do agressor (como machado, facão, foice, enxada, dentes) e perfuro-cortante, formado de uma lâmina com um ou mais gumes cortantes e ponta na extremidade que perfura, associando as duas ações (como peixeira, facão, punhal, canivete etc).

Já a agressão corporal por força física resulta em lesão praticada contra a integridade do corpo ou a saúde da vítima. As agressões corporais mais comuns na multidão carnavalesca são: murro, cotoveladas, joelhadas e chutes (tabela 1).

Tabela 1 – Registro médico de lesões corporais no Carnaval de Salvador, 2015 a 2018

Ano

Lesões por tipos de instrumento

Total Força física Arma branca Arma de fogo Outros

2015 691 405 23 15 1134

2016 579 452 3 10 1044

2017 441 392 1 6 840

2018 368 387 1 58 814

Fonte: Subcoordenadoria de Informações em Saúde (SUIS), 2019.

Os registros de agressões corporais no Carnaval de Salvador refletem as diferentes formas de aproveitamento das oportunidades predatórias na multidão.

Em 2015 foram registradas duas mortes, o mesmo número registrado no ano de instalação dos portais de abordagens, em 2016. No ano seguinte, um PM fora de serviço baleou um folião em meio à multidão. O sargento da Polícia Militar foi preso em flagrante após balear um folião na Barra, na noite de sábado, no circuito do Dodô. Ainda em 2017, um folião morreu e outro ficou ferido após serem feridos por objetos perfuro-cortantes na madrugada de segunda-feira, final do circuito Dodô, no bairro de Ondina. Na noite do segundo dia de festa do Carnaval de 2018, quando saia do circuito Barra-Ondina, um jovem de 27 anos foi atacado com um soco e um pontapé. A vítima ficou internada em estado grave até a quarta-feira da semana seguinte, quando teve morte cerebral atestada.

Entre as armas brancas responsáveis pelo número de lesões corporais registrados anualmente no Carnaval de Salvador estão o cassetete, a algema, a lata de cerveja e refrigerante, pau, pedra garrafas e barra de ferro (tabela 2).

Tabela 2 – Registro médico de lesões corporais por arma branca no carnaval de salvador, 2015 a 2018

Ano

Lesões por tipos de arma branca

Armas brancas oficiais Armas brancas ilícitas Cassetete Algema Spray de

pimenta Faca Lata Pedra Pau Garrafas

Barra de ferro Outros 2015 232 3 45 12 38 11 13 9 1 41 2016 317 5 41 9 41 5 11 10 2 11 2017 264 5 22 17 28 18 7 3 4 24 2018 242 5 36 10 33 13 3 8 4 43

Fonte: Subcoordenadoria de Informações em Saúde (SUIS), 2019

As armas brancas podem ser oficiais e ilícitas. As armas brancas oficiais, cassetete, tonfa e spray de pimenta, são os instrumentos de intervenção policial. As armas brancas ilícitas são artefatos utilizados pelos foliões, trabalhadores ambulantes e agentes da segurança privada e estatal como recurso de defesa ou predação. As armas brancas ilícitas mais comuns são as algemas, facas, canivetes, lâminas de barbear, latas, pedras, pau, garrafas e barra de ferro.

As armas brancas oficiais mais utilizadas pela polícia no Carnaval de Salvador são o cassetete de madeira. Trata-se de um instrumento contundente, isto é, arma que provoca traumas internos e externos, em geral sem causar a ruptura de tecido. O bastão policial 90 (BP-90) ou cassetete é uma arma de defesa e de ataque. Os números expressivos de lesões provocadas pela utilização desse instrumento contundente pode atestar a necessidade do seu emprego nas contenções dos distúrbios na multidão carnavalesca.

Além do cassetete, o policiamento estatal utiliza os agentes químicos lacrimogêneos. Estes são compostos químicos que agem nos olhos, provocando fechamento involuntário das pálpebras e lacrimejamento, e também nas mucosas das vias respiratórias, dificultando a respiração, além de causar náuseas e vômitos. O mais utilizado pelas forças de segurança é o Óleo resina de Capsaicina (OC), mais conhecido como spray de pimenta.

Várias contenções de distúrbios no Carnaval exigem intervenções policiais com o uso da força. O policiamento estatal deve manter a ordem pública, mas as intervenções precisam gerar o mínimo de danos possível. Dessa forma, as contenções devem preservar a ordem sem que produzam danos maiores do que os distúrbios produziriam sem a intervenção. O problema é encontrar um meio termo para intervir com eficiência.

Para este fim, a adoção de instrumentos e técnicas de menor potencial ofensivo é necessária. O policiamento capacitado para o uso de instrumentos de menor potencial

ofensivo (IMPOs) tem a sua disposição uma gama de alternativas táticas para a contenção de distúrbios, o que implica na diminuição de desfechos não aceitáveis das intervenções.

Os IMPOs são fabricados de forma que, se usados dentro de suas especificidades, com a técnica correta, não provoque a morte, nem lesões graves, mas somente a incapacitação, debilitação e contenção do indivíduo no qual seja utilizado.

O número de lesões por cassetete policial pode indicar o uso indiscriminado e inadequado do instrumento de contenção dos distúrbios. A “fantada” é uma expressão utilizada para nomear o uso do cassetete, que também é conhecido como “fanta”. Trata-se de uma representação do castigo empregado por policiais militares nas contenções de distúrbios. A “fantada” é a força aplicada em excesso e arbitrariamente em certas partes do corpo que produz lesões graves. O seu emprego foge do padrão de uso da força necessária e proporcional à situação de distúrbio.

Existe uma situação generalizada de briga, a gente chega, não dizendo “separe, separe, separe”. A gente tem que chegar abrindo. E à medida que a gente vai abrindo, tem que acertar em lugares específicos, pernas e lombar, “varrendo” por baixo, nunca por cima, sempre por baixo. Pra que essa ação não venha ocasionar uma lesão maior ao cidadão. [...] E em algumas situações a gente não chega a lesionar. À medida que chega atuando, faz-se uma espécie de bolha, abrindo e fechando, o pessoal acaba dispersando. Então, a briga generalizada tende a acabar (GMC-I, 28 anos, Guarda). Temos a disciplina, policiamento ostensivo geral, que trabalha técnicas de abordagens a veículos e a pessoas, e a disciplina correlata, que é mais específica, policiamento em eventos especiais. É justamente nessa disciplina, que consta em todos os cursos de formação de praças oficiais, que estuda isso [o uso do cassetete]. [...] Naquelas situações em que têm muita gente forte, aquela questão dos marombeiros, é necessária uma ação mais enérgica e o cassetete serve obviamente pra isso. A ideia é que não se atinjam os locais como o crânio e o tórax. Então, o cassetete no máximo na caixa torácica, mas na lateral para que se possa evitar uma fratura. É isso pelo menos que a disciplina passa pra gente (PM-III, 40 anos, Capitão).

Quando a intenção é somente conter o distúrbio e preservar a ordem pública festiva, a orientação técnica padrão do uso do bastão policial indica que os golpes devem ser desferidos preferencialmente na região abaixo da lombar do corpo sob intervenção, para evitar graves lesões.

Os registros de lesões causadas por cassetete mostram que muitas delas foram na cabeça, uma região considerada de risco à vida. Em 2015 e 2018 foram registrados, respectivamente, 57 e 47 ferimentos na cabeça, chegando estas ocorrências a quase 25% do total de lesões provocados por cassetete em cada ano (SUIS, 2019).

A eficácia do cassetete, tanto para contenção de agressores como para defesa pessoal do policial, é comprovada quando utilizada por efetivo capacitado, porém, a prática revela que, quando mal empregado, o instrumento pode causar lesões gravíssimas ou até mesmo a morte do agredido. Assim, o cassetete em si é uma arma branca e não um instrumento de menor potencial ofensivo. O instrumento assume a característica de IMPO quando é empregado com as técnicas e táticas policiais de contenção e distúrbios.

Por outro lado, as armas brancas ilícitas, embora danosas, apresentam registros de lesões inferiores às causadas pelo cassetete (tabela 3).

Tabela 3 – Porcentagem registro médico de lesões corporais por arma branca no Carnaval de Salvador, 2015 a 2018

ANO

% de lesões por tipos de arma branca Armas brancas oficiais Armas brancas ilícitas 2015 60,1 39,9 2016 80,3 19,7 2017 74,2 25,8 2018 73,1 26,9

Fonte: Subcoordenadoria de Informações em Saúde (SUIS), 2019

Os registros de ocorrências mostram que os circuitos representam verdadeiros campos minados de objetos com potencial de arma branca. Os objetos, como a latinha de cerveja, são encontrados em abundância nos circuitos e não podem ser banidos da festa. Outros artefatos, como pedras, barras de ferro, pedaços de madeira, garrafas, bancos plásticos, estão dispersos nos circuitos, e não são alvos da revista e apreensão policial. A quantidade, variedade e disponibilidade desses objetos ampliam as oportunidades predatórias na multidão carnavalesca.

Já as lesões provocadas por força física têm motivações e ocorrem em circunstâncias variadas. Na multidão carnavalesca, os embates e conflitos corporais são recorrentes e intensos e configuram oportunidades de trocação e perpetração de covardias. Esta última prática predatória é responsável pelos registros das lesões corporais mais graves.

Os registros de lesões corporais acompanham a dinâmica da festa, variando de acordo com os dias, horário e o perfil. Embora em determinados dias os registros de lesões sejam

maiores, todos os dias têm sido dias de predação, mas em determinados períodos do dia os registros de lesões são maiores (tabela 4).

Tabela 4 – Registro médico de lesões corporais por dia de festa no Carnaval de Salvador, 2015 a 2018

Ano Dia de festa

1º 2º 3º 4º 5º 6º 7º

2015 33 101 244 246 258 188 59

2016 44 131 184 235 243 158 48

2017 28 104 141 161 250 119 37

2018 42 114 159 164 162 146 28

Fonte: Subcoordenadoria de Informações em Saúde (SUIS), 2019

O primeiro e o último dia tiveram as menores ocorrências de lesões registradas. A festa começa à noite e termina pela manhã, ou seja, nestes dias a festa tem um tempo menor de duração. No segundo dia, muitos foliões ainda estão trabalhando, porém esse cenário se modifica nos demais dias, onde estão concentradas as principais atrações de prestígio, resultando na aglomeração de um grande número de atores plurais (foliões, policiais, vendedores e outros).

Das 3401 lesões corporais registradas entre 2015 e 2018, 49,9% (1696) ocorreram à noite e 45,7% (1554) na madrugada.

Tabela 5 – Registro médico de lesões corporais por período do dia no Carnaval de Salvador, 2015 a 2018 Ano Períodos do dia Manhã (06-12h) Tarde (12-18h) Noite (18-24h) Madrugada (00-06h) 2015 1 16 446 425 2016 20 38 490 485 2017 7 21 459 343 2018 17 31 456 301

Fonte: Subcoordenadoria de Informações em Saúde (SUIS), 2019

Entre a noite e a madrugada está o lapso de predação, isto é, o intervalo de tempo que concentra o maior número de lesões corporais durante os dias de festa.

Do total das lesões registradas em cada ano, uma média de 45% das vítimas lesionadas era jovem, demonstrando que a condição de alvo preferencial da violência deste segmento social transcende a vida cotidiana (tabela 6).

Tabela 6 – Registro médico de lesões corporais por faixa etária no Carnaval de Salvador, 2015 a 2018 Ano Criança (0-11 anos) Adolescente (12-19 anos) Idade adulta Meia-idade (40-60 anos) Idoso (acima 60 anos) Juvem (20-29 anos) Adulto (30-39 anos) 2015 1 258 503 227 115 4 2016 2 238 455 233 90 3 2017 1 195 385 179 63 3 2018 2 176 364 164 76 7

Fonte: Subcoordenadoria de Informações em Saúde (SUIS), 2019

O lapso de predação reúne os atores plurais com maior disposição ofensiva para o embate, confronto e covardias. Trata-se de uma maior concentração de alvos atrativos, perpetradores motivados e guardiões capazes no mesmo espaço, dia e horário.

Em todos os anos do período analisado (tabela 7), das lesões corporais registradas, cerca de 80% das vítimas tem sido do sexo masculino.

Tabela 7 – Registro médico de lesões corporais por sexo no Carnaval de Salvador, 2015 a 2018

Ano Masculino Feminino Não

informado Total

2015 880 204 50 1134

2016 862 182 0 1044

2017 698 142 0 840

2018 634 180 0 814

Fonte: Subcoordenadoria de Informações em Saúde (SUIS), 2019

Os homens costumam ser alvos atrativos das covardias violentas por conta do seu maior envolvimento nos encontros-aventura, que exige uma disposição ofensiva ou agressiva. O tombo desce quebrando, por exemplo, é uma expressividade corporal cuja agressividade está intimamente ligada à virilidade masculina. Além disso, os foliões do sexo masculino dos segmentos subalternos são os alvos preferenciais da violência policial.