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Diagrama 2 – As esferas de preservação da ordem pública

8 PRODUÇÃO DA ORDEM PÚBLICA FESTIVA E REDES INFORMAIS DE

8.1 AS REDES IDENTITÁRIAS E A AUTOGESTÃO DA SEGURANÇA

8.1.2 Critérios de avaliação e controle do risco

O critério de avaliação e controle dos riscos predatórios feitos pelos foliões segue um planejamento de autogestão contra os riscos de predação, significando um programa esquemático para uma fruição segura das oportunidades festivas. Os foliões projetam tal aproveitamento tendo como base a sua experiência de risco, e com as informações acumuladas, eles alinham gostos, preferências, disposição e segurança ao fazerem as escolhas do circuito, do horário, das folias, da localização na audiência e do itinerário da circulação.

A escolha do circuito é motivada por vários fatores, os preponderantes são: o acesso ao espaço, o conjunto das atrações e a presença de conhecidos. A localização das redes identitárias é um dos critérios definidores da escolha dos circuitos.

As redes identitárias reconfiguram o espaço para os foliões conectados, formando lugares cujo pertencimento vincule curtição com assistência mútua.

A nossa programação para o Carnaval, no ano passado e neste ano, foi… que horas e onde o BaianaSystem vai tocar? O que é que tem antes e depois disso pra poder fazer? Então, tudo é montado em função disso: a questão de ir pra o Carnaval pra ver BaianaSystem (Tamiles, 20 anos, foliã).

As redes identitárias de estilo família reconfiguram o espaço da festa em determinados dias, horários e trecho do circuito Osmar, formando lugares para as crianças curtirem a festa. Elas continuam ocupando ainda alguns desses lugares mesmo com o término do desfile das atrações infantis naquele dia, que geralmente ocorre pela manhã. Ademais, as concentrações de foliões adultos nesses espaços reconfigurados formam uma rede de tolerância e assistência às crianças.

Durante o dia e o meado da noite, as configurações de estilo família tomam conta de diversos espaços ao longo do circuito Osmar. Isso ocorre mais intensamente nos sábados, domingo e terça feira de Carnaval. O Forte de São Pedro é o lugar de maior concentração de crianças nesse circuito. As concentrações de configuração família não são vistas com a mesma regularidade no Circuito Dodô (Diário de Campo, 2018).

A ventilação, a iluminação, o espaço e acesso ao circuito também influenciam nessas escolhas do circuito. Por um lado, essas são escolhas feitas pelos foliões para ampliar a curtição, e por outro, elas visam reduzir o risco de predação.

Eu não gosto de ambientes escuros. Eu acho o Campo Grande um circuito escuro. A única forma de termos espaço, da gente se locomover é pelas esquinas, pelas aquelas ruas, que levam a Avenida Sete para Carlos Gomes. E ali também é muito apertado. Além dos ambulantes que ficam ali vendendo cerveja... É um aperto. Aí, surgiu esse circuito da Barra. [...] Quando eu cheguei na Barra... é ventilada, é iluminada, porque é Barra, é ponto turístico. E aí teve toda essa parte de locomoção. Se a gente não quisesse ficar naquele aperto, pra sair era mais fácil. [...] Ainda mais que a gente está na comunidade e a gente sabe como está muito violenta. Ainda mais com as divisões dos grupos... Aí, essa violência me afastou. [...] A gente já presenciou ali varias situações de violência. Eu fiquei marcada em uma... Atrás daqueles tapumes, que protegem as lojas, os caras estavam escondendo facas e facões (Renata, 27 anos, Foliã).

Na avaliação de risco feita pela foliã, o circuito Osmar apresenta condições ambientais propícias para a ocorrência de covardias. A iluminação deficitária, a disputa por espaço e a presença de grupos territorializados ofereceriam oportunidades para as práticas predatórias, sendo essa uma avaliação de risco baseada numa desvantagem situacional ecológica. Nesse

mapeamento, o folião analisa a sua condição de alvo adequado em cada circuito e as possibilidades de controle do risco, escolhendo aquele com menor potencial de dano.

A familiaridade com o circuito também influencia na avaliação de risco feita pelos foliões. O conhecimento das entradas e saídas das vias de acesso e da dinâmica das folias e da multidão reduzem o risco de predação.

Esse ano eu iria. Só que assim... Foi meu pai, meus tios, meu padrinho e uma prima minha. Eu fiquei meio desanimada pra ir, porque eu estou acostumada ir pra Avenida [circuito Osmar], e esse ano eles foram pra Barra. Aí, eu fiquei meio com medo. O circuito da Barra pode ser totalmente diferente da Avenida e pode ser mais seguro... Mas eu fui todos os anos pra Avenida, sei como é. Conheço as ruas, conheço como funciona. Mesmo que tenha blocos diferentes, [o circuito] é a mesma coisa todo ano (Francielle, 15 anos, Foliã). A redução do risco de predação é alcançada com a escolha do circuito, na medida em que os foliões conseguem evitar a desvantagem situacional ecológica, mas os riscos de covardia definido pelas condições ambientais acompanham também a sazonalidade da multidão carnavalesca. E essa sazonalidade está diretamente relacionada ao horário de chegada e de saída dos foliões nos circuitos.

Os foliões permanecem na multidão em períodos curtos, longos ou extensivos. A tarde, a noite e a madrugada compreendem os períodos curtos de curtição. Quando a curtição é iniciada à tarde segue até à noite ou quando começa à noite entram pela madrugada representando o período longo de permanência. No período estendido de curtição, o folião começa à tarde e vai até a madrugada.

A noite é o horário preferencial dos foliões e a madrugada é o horário considerado crítico pelos atores plurais.

Nos três primeiros dias o melhor é à noite, até porque muita gente trabalha nesses dias. [...] De quinta a sábado eu acho interessante sair no final da tarde pra noite. Agora domingo, segunda e terça, que são os dias oficiais dos dias de Momo, é interessante que saia no meado da tarde pra noite. [...] O Carnaval aqui de Salvador, não tem limite. [...] Eu sou contra esse horário de Carnaval de madrugada. Primeiro, porque os blocos estão em quantidade menor. São blocos arranjados mal feitos. As pessoas já estão numa situação alcoólica no nível mais alto. E fora a malandragem que vai pra poder roubar. Aí pegam as pessoas que já estão bêbadas, e se aproveitam pra tirar vantagem. [...] Antes eu só chegava no outro dia. Hoje mais não. Não só a questão da idade, mas não é mais conveniente. É muito arriscado você passar doze, quinze, dezesseis horas na rua, no Carnaval. Com o passar do tempo, a gente começa a selecionar aquilo que é vantagem... Eu saio Carnaval pra curtir oito ou dez horas por dia. [A volta pra casa], a media de horário é entre uma e duas horas da madrugada (Lúcio, 53 anos, Folião).

À medida que as horas vão passando e diminuindo as folias agregadoras, as expectativas dos foliões que permanecem nos circuitos parecem prescindir de reciprocidade.

As configurações de folias são responsáveis por concentrar os foliões mediante as expectativas recíprocas de curtição. Sem as folias estabelecidas por relações de conformidade mútua, os foliões que permanecem no circuito não operam com a reciprocidade, reduzindo as oportunidades festivas e ampliando as oportunidades predatórias de covardias.

No início da madrugada, o consumo de bebidas alcoólicas e outros psicoativos passa a ser a principal oportunidade festiva dos foliões. Quando bebem muito, os foliões que são alvos atrativos, podem se tornar alvos adequados, sobretudo no final da madrugada, onde os níveis alcoólicos costumam estar mais elevados. Nesse horário ficam também os foliões que sofreram algum dano e estão esperando a oportunidade para passar a agressão adiante.

A escolha do circuito e o horário de permanência podem reduzir a desvantagem situacional e o risco de predação, porém a avaliação de risco e a eleição de estratégias de controle passam também pela condição do folião na festa. Eles podem seguir as folias, ficar circulando ou curtir a festa na audiência. Cada uma dessas condições de folia exige uma autogestão de risco específica.

O tamanho do espaço onde ocorre o desfile influencia sobremaneira na densidade da ocupação de foliões em torno dos trios e na audiência. Contudo o espaço, ou seu tamanho, não figura como um fator isolado na formação da multidão carnavalesca. O horário em que ocorre o desfile tende a qualificar o espaço em grande, pequeno ou adequado para a ocupação dos foliões.

Saio à noite. Mas já sai quatro horas da tarde. Essa foi a única vez que eu saí cedo, que eu fui pra rua cedo. Geralmente a gente vai umas seis ou sete horas da noite. [...] De tarde faz mais calor e o pessoal também trabalha durante o dia, aí vai à noite. Esse também é o horário que está mais cheio... tem mais gente, mais agito. De tarde é mais fraquinho, é mais sol e faz muito calor (Hillary, 19 anos, Foliã).

Para muitos foliões a festa de fato começa no final da tarde e início da noite. E no avançar da noite o fluxo de foliões aumenta consideravelmente.

Saio no final da tarde, porque não tem aquele sol escaldante. Assim, cinco horas e quatro e um pouquinho é que o sol está indo embora. Esse é o melhor horário, porque duas, uma hora, é aquele sol de Salvador que ninguém aguenta. É um calor muito grande (Wynne, 20 anos, Foliã).

No caso das folias corporais “pipoca”, como foi demonstrada, os foliões formam concentrações com densidades distintas. A disposição para o embate corporal influencia na escolha do lugar que o folião pretende ocupar nas folias “pipoca” efervescentes. Quanto maior a disposição para o embate corporal, menores são as restrições para enfrentar as concentrações com grande densidade. É possível distinguir três níveis de disposição para o

embate corporal, vinculando-as à performance participativa do folião: o contido, o moderado e o intenso.

No nível contido de disposição, o folião tende a procurar as zonas de dispersão- rarefação para curtir a festa.

Eu saia na “pipoca” e ficava de longe. Eu não ia para o meio da “pipoca”. [...] Teve algumas vezes que eu acabei indo para o meio também, mas eu não ia muito longe, eu voltava logo. É porque eu não gosto de muita muvuca, muito empurra-empurra (Junior, 26 anos, Folião).

No nível moderado de disposição para o embate corporal, o folião evita as zonas de aglomeração, cuja densidade implica curtir a folia em meio a intensos embates corporais. Uma extensa zona de transição ou zona densidade rarefeita-densa é formada à medida que os foliões que curtem esse nível de contato corporal vão se aglomerando.

No nível intenso de disposição para o embate, o folião encara qualquer uma das zonas de densidade de concentração da folia. Para muitos foliões “pipoca”, os embates corporais são desejados e procurados, uma vez que a folia só tem graça se for curtida no corpo a corpo ou no tombo.

Já curti muito [o tombo]. Sentia aquela sensação de liberdade... Liberdade de você se sentir vivo com a situação da festa. É uma questão de liberdade mesmo... de expressão... Sentia a adrenalina também, porque passava uns caras... uns malhados, e a gente encarava. Quando eu era mais novo, era legal (Rafael, 28 anos, Folião).

O corpo se agita e ferve intensamente nas concentrações densas de foliões. A efervescência é intensifica por conta dos atritos gerados pela densidade dos contatos e, na mesma proporção, essa efervescência corporal aumenta o prazer do folião. O folião que adentra as folias com crescente saturação espacial, para chegar o mais próximo do trio, tende a se deparar com a elevação progressiva do nível de densidade e de disposição para o embate corporal.

Como foi caracterizado, a “pipoca” independente e a “pipoca” alternativa são duas formas diferentes de curtir a festa. As duas são folias, mas a primeira forma concentrações em torno dos trios independentes e a segunda no corredor da folia. Elas configuram maneiras de ocupar espaço, que alinham performance corporal e autogestão de risco.

Com efeito, o que distingue a folia “pipoca” independente da alternativa é a possibilidade que o folião tem de escolher o lugar aonde quer curtir. E a escolha é feita de acordo com a disposição corporal. De um lado, os foliões estão concentrados em zonas de densidades conduzidos por uma disposição corporal que busca evitar os contatos agressivos. De outro, eles procuram as zonas de densidade, cuja performance harmoniza ritmo com doses

de agressividade. Já na folia “pipoca” alternativa, para curtir ativamente, aos foliões, muitas vezes, só resta a disputa por espaço.

Os blocos que mobilizam grandes massas de foliões associados, com as suas mega- atrações, também atraem grandes concentrações de foliões no lado de fora da corda. As ocorrências dessas concentrações de foliões “colados” na corda ocorrem pelo desejo compartilhado de acompanhar de perto a atração artística do bloco ao longo do seu desfile, mas esse desejo de folia é frustrado pela restrição de espaço imposta pelas entidades.

Essa restrição de espaço não afeta somente os foliões que se encontram colados na corda dos blocos. Aqueles que acompanham a festa na audiência da folia também sofrem com a expansão das cordas.

Eu estou brincando solta. Ninguém está me empurrando e nem me imprensando. Quando vem o bloco com a corda, o que acontece? Me tira do lugar... corta meu barato. E eu tenho que ir para o canto. A corda me imprensa, e o povo querendo passar, também me imprensa. Eu fico sem ter pra onde ir. Aí vem o desespero... tira a minha liberdade (Suzana, 52 anos, Foliã).

Quando a corda dos blocos expande satura o espaço de fora, levando os corpos dos foliões “pipoca” a ficarem tão colados que parecem se fundirem um no outro, formando uma massa coesa de difícil diluição. Isso impossibilita que os foliões esbocem qualquer expressividade corporal e consigam curtir a festa. O que significa para eles uma forma contundente de violência contra o seu corpo e uma violação da sua condição de folião e de cidadão.

[O bloco] está tirando meu espaço. Ele está invadindo meu espaço. Ele está tirando minha área. Eu tenho direito de ir e vir... Eu me sinto impossibilitado de curtir o Carnaval em virtude daquela violência. Eu acho que me jogar na parede é uma violência. Eu acho que não deveria existir (Roberto, 63 anos, Folião).

O apertão provocado pelos blocos difere sobremaneira do aperto enfrentados por foliões em torno do trio independente. No apertão espontâneo formado na passagem do trio sem cordas, ou seja, sem a ação das forças expansivas do insulamento dos blocos, o deslocamento e expressividade do folião “pipoca” estão condicionados à performance do corpo. Já no apertão por encurralamento, os foliões “pipoca” seguem o bloco num único fluxo e ficam sem espaço para escapar de um perigo eminente. Além disso, o apertão espontâneo exige dos foliões uma disposição para o embate corporal com eventuais confrontos. Já no apertão por encurralamento, a sua manutenção forçada gera tensões e embates corporais violentos que exigem dos foliões a disposição para o combate. O tombo é a performance do corpo encurralado.

Para quem (foliões, cordeiros, seguranças, policiais e outros) está em busca de confronto ou perpetrar covardia, o apertão do corredor em efervescência configura um campo minado de oportunidades. Dessa forma, o apertão não permite, por exemplo, que foliões ergam, de forma aleatória, os braços e dance freneticamente, numa performance pipoca, pois, essa expressividade corporal pode representar uma grande oportunidade predatória (Diário de Campo, 2016).

As concentrações densas e efervescentes tendem a atrair a disposição expressiva corporal do tombo. Contra as práticas predatórias que visam o roubo e a violência, muitos foliões adotam o tombo como prática defensiva. Enquanto brincam a festa ativamente no corredor da folia, essa prática harmoniza agressividade com coreografia para salvaguardar a sua integridade física e os seus bens. Enquanto expressividade corporal defensiva, o tombo não é provocativo, mas visa a intimidação. O tombo defensivo pretende ser igualmente uma atitude festiva, demonstrando alegria e expressividade corporal, e intimidatório, mostrando desconfiança e destemor.

Entretanto isso não quer dizer que essa modalidade de tombo não gere mais embates corporais e não configure mais um convite para o confronto. Dessa forma, a construção de uma imagem que escape daquela considerada alvo preferencial das ações predatórias no Carnaval acaba por reforçar o estereótipo policial de foliões periculosos e a justificativa do uso excessivo da força contra eles.

Assim, a expressividade corporal tem determinado a identidade dos foliões de dentro e de fora. O império de determinada expressividade corporal, em cada lado da corda, comumente, é identificado como sendo próprio de cada um dos grupos de folião. E, através dessa identidade, o folião conta com todas as beneficies ou sofrem as agruras por pertencer a um dos lados da corda.

Na passagem dos trios independentes, a participação do folião é ativa na medida em que ele pode escolher onde brincar na multidão. Essa possibilidade de escolha é ampliada com a diversificação das atrações de peso. No Carnaval de 2016 e 2017, isso ficou evidente com as apresentações de artistas renomados, como Ivete Sangalo, Bell Marques e Saulo Fernandes, em trio sem corda. Essa diversificação contempla as várias disposições expressivas corporais, e os limites impostos para a escolha do lugar na multidão fica definido, somente, pela performance corporal do próprio folião (Diário de Campo 2017).

Os apertões são os hotspots de curtição procurados pelos foliões de identidades ofensivas e predatórias. Eles curtem em locais da multidão, onde as possibilidades de conflitos são maiores. Esses foliões caçam outros que estão em desvantagem situacional nos pontos que exigem disputas espaciais e embates corporais. As folias tombo, o entorno dos trios independentes de folias com expressividade corporal mista, o corredor das folias nos

desfiles dos blocos e as transversais dos circuitos nos momentos de grande concentração são os hotposts da predação.

As outras opções, que restam para os foliões, são as folias contemplativas, as folias LGBT e os blocos. As folias de expressividades contemplativas são aquelas que têm leve efervescência. Elas são procuradas pelos foliões que não têm disposição para o embate corporal ou que avaliam os embates como deflagradores de brigas.

[...] Armandinho e Morais Moreira, que eu gosto do som mesmo. [Folias] que têm menos aperto. A que tem menos pessoas empurrando, que a gente imagina que tem uma menor chance de brigas... Chiclete com Banana (Bell Marques) a gente corre. Quando vem Chiclete, a gente toma uma direção contrária. Vem Chiclete de um lado, a gente vai pra o outro. Igor Kannário... Acho que mais esses! (Tereza, 30 anos, Foliã).

As configurações folias alternativas e LGBT afastam os foliões predadores. Essas folias vão de encontro aos interesses de afirmação da identidade ofensiva e viril desses foliões, já que os participantes dessas folias estão focados na azaração homo e bissexual, na dança, na sonoplastia e no registro.