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Diagrama 2 – As esferas de preservação da ordem pública

9 PRODUÇÃO DA ORDEM PÚBLICA FESTIVA E REDES FORMAIS DE

9.1 A REDE PRIVADA DE SEGURANÇA E A GOVERNANÇA DOS BLOCOS DE TRIO

9.1.1 A segurança dos blocos

O contingente dos operadores da segurança dos blocos de trio varia entre as entidades, mas é possível estabelecer um padrão hierárquico operacional: coordenação, supervisão, seguranças, auxiliares de segurança e cordeiros. Por essa via, o efetivo está distribuído essencialmente entre o policiamento interno e externo.

Geralmente, existem dois tipos de coordenação: a coordenação geral e a coordenação de área. A coordenação geral cuida da organização do bloco como todo. A gestão da segurança fica sob a responsabilidade da coordenação de área, estabelecendo uma ponte entre a coordenação geral e os supervisores da segurança. Esse cargo raramente é ocupado por um segurança profissional.

Os supervisores de segurança atuam como subcoordenadores e tem a função de supervisionar equipes compostas por seguranças e auxiliares de segurança. Em alguns blocos, esses grupos dividem o trabalho de patrulhamento interno e apoio à corda; já em outras entidades, as equipes realizam o mesmo trabalho. Além dessa supervisão, os blocos contam com os supervisores dos cordeiros e dos auxiliares de apoio à corda.

Os auxiliares de apoio à corda não atuam puxando esta. Eles ficam posicionados em pontos estratégicos, tais como as laterais do trio, a frente e o fundo do bloco, dispostos lado a

lado, voltados para a multidão. A movimentação pelo bloco ocorre em torno dos limites designados e acompanha a agitação da multidão. Em relação aos cordeiros, eles são, predominantemente, jovens (pessoa entre 18 e 29 anos), do sexo masculino, porte físico avantajado e vestimenta diferenciada em termos de peças e cor (Diário de Campo, 2014).

Quase todo efetivo da segurança se concentra na corda. Os cordeiros são identificados como aqueles que seguram a corda dos blocos de Carnaval de Salvador. A corda erguida por eles funciona como uma barreira humana que separa os foliões de dentro da multidão externa. O efetivo de colaboradores nos blocos pode variar em torno de 1.000 a 2.000 pessoas.

Fechando o quadro da segurança privada dos blocos estão os agentes do Estado, constituídos especialmente por funcionários da Polícia Civil e Militar. Quando não estão em serviço, esses agentes do Estado prestam serviços de segurança aos blocos. A contratação desses agentes pelas entidades significa a apropriação da licença emitida pelo Estado para o uso da força física, nos limites do seu mandato policial, em situações de interesses particulares destas.

Os agentes do Estado são contratados pelas empresas de segurança que prestam serviços para as entidades. Muitas vezes, esses agentes são donos ou sócios dessas empresas de seguranças, que estão registradas em nomes de terceiros. E, geralmente, tais agentes possuem altas patentes na hierarquia do policiamento.

Os donos da segurança são coronéis. Os coronéis têm acesso a várias pessoas, políticos, comandantes de unidade e, inclusive, usam da hierarquia de policial militar para conseguir alguma coisa. Ele tem vantagem, bastam fazer um telefonema, chamam fulano de tal e chegam duas ou três patrulhas e dão mais segurança (PFem-I, 38 anos, Soldado).

O policial contratado usa as prerrogativas legais da polícia para resolver questões restritas aos domínios privados dos blocos.

Existe um profissional com hierarquia alta, de patente, dentro do bloco, e quem resolve todas essas situações [drogas, roubos e brigas] é ele. A gente tem profissionais desses, que prestam serviços internos dentro dos blocos. Às vezes, ele tem uma empresa prestadora de serviço, mas a maioria deles é contratada diretamente pelo bloco. As pessoas que prestam serviços da polícia dentro do bloco, não ficam vestidas com a roupa da polícia, ficam vestidas de roupa normal. E quando elas conversam... falam a língua deles, já falam de qual patente eles tem, e conseguem resolver os problemas com muita facilidade (Júlia, 38 anos, Coordenadora).

De fato, não é muito difícil identificar um policial fora de serviço e que esteja trabalhando no bloco. Além do jeito, a roupa destoa do contexto: ele não usa farda, porque está fora de serviço; não usa o abadá, porque pode gerar equívocos e confusões durante as abordagens e intervenções; e nem pode usar o uniforme da segurança, que significa uma

atividade irregular. Além disso, os policiais contratados andam acompanhados de outros com porte físico e trejeitos semelhantes e vestimentas destoantes dos abadás e do uniforme da segurança.

Entretanto, mesmo diante de tudo isso, ele reafirma a sua condição e patente policial. A função do policial contratado consiste em lidar com todas as espécies de problemas privados ao bloco, tendo à disposição um poder estatal do uso da força. Ser policial significa estar autorizado a agir de modo coercitivo, quando for necessário, mesmo que o agente esteja fora de serviço.

O policial é o agente de segurança que possui autorização para o uso de artefatos que pode acompanhá-lo mesmo que esteja fora de serviço, como o porte de armas de fogo. Na Polícia Civil, os agentes estão liberados para portar tanto as armas particulares, quanto as institucionais. Para os policiais militares fora de serviço, existe uma determinação que restringe o porte de arma de fogo da corporação e as suas particulares nos locais em que existe aglomeração de pessoas20. Todavia, os PMs, na condição de policial contratado, se não fizerem o uso indevido da arma de fogo, eles poderão solicitar esse suporte dos agentes em serviço. Já para os agentes da segurança do bloco está proibido o uso de arma de fogo no Carnaval, mesmo para os que têm porte.

Porque na verdade, os seguranças não podem levar todos os artefatos, o segurança não vai poder trabalhar armado, não vai poder trabalhar com algemas. Ele contrata um policial... o cara é militar, vai saber chegar numa patrulha daquela. É mais rápido, porque, geralmente, quando é segurança que chama, eles nem ligam. Agora, quando é militar, é mais rápido, dão mais atenção. Ele te tira como nada [um desacreditado, sem autoridade] e vai embora. Quando o cara é militar é diferente (Eduardo, 28 anos, Coordenadora).

No Carnaval, como o fluxo da festa molda as interações, ações e os processos de resolução de problemas, a manutenção da ordem festiva implica na manutenção deste fluxo. Por conta disso, as resoluções ocorrem de forma seletiva, pois não vai ser qualquer solicitação que será atendida ou atendida imediatamente pelos agentes da segurança estatal. Isso dependerá de quem faça a solicitação. Nessa hora, o corporativismo ou a hierarquia policial define as solicitações de segurança passiveis de atendimento imediato.

O policial contratado funciona como um elo que conecta os agentes da segurança estatal e privada. Esse elo transforma esses sujeitos em nódulos de uma rede de segurança.

20

A determinação está na Portaria n.º 035-CG/2005, de 7 de setembro de 2005. O artigo 21 do texto determina que o militar apenas poderá portar arma de fogo nestas ocasiões (locais com aglomeração), fora de serviço, com autorização do Comandante-Geral da corporação. Disponível em: <http://www.pm.ba.gov.br/Legis/Portaria%2035%20-%20Porte%20de%20Arma.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2018.

Dessa forma, os blocos se constituem como redes de governança que mobilizam, reservam e articulam recursos estatais e privados de segurança para atender aos interesses particulares.

Os nódulos estatais dessa rede são usados como meio para realização dos interesses privados. Quanto mais agentes do Estado envolvidos, maior é a capilaridade instrumental da rede. No Carnaval dos blocos, a capilaridade da rede significa a extrapolação do mandato da segurança privada para além dos limites da corda. A capilaridade está associada à rede que tem cobertura estatal.

O agenciamento da força operado pela rede de governança dos blocos pretende imunizar as condutas dos foliões associados e dos operadores da segurança contra a atuação repressiva do policiamento estatal. Enquanto que no lado de fora das cordas a atuação policial repressiva acompanha ostensivamente a folia “pipoca”, no lado de dentro esta só se faz presente de forma reativa, ou seja, os agentes só atuam dentro dos blocos quando são acionados pela segurança ou em casos de distúrbios, brigas ou tumultos.

9.1.2 O agenciamento da força e a performance do insulamento contensivo-expansivo