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Diagrama 2 – As esferas de preservação da ordem pública

6.2 DESVANTAGEM SITUACIONAL E AS COVARDIAS CARNAVALESCAS

6.2.3 A desvantagem situacional simbólico-numérica e a covardia do assédio

O que no passado era considerado táticas ousadas de paquera, hoje são reconhecidas como violência contra a mulher. Os atos como tocar, segurar, abraçar, puxar, sem o consentimento das mulheres, são formas de violência sexual.

De várias maneiras, a cultura do machismo e da misoginia contribuem para a perpetuação dessa forma de violência focada, principalmente, contra a mulher. O estupro e as violações correlatas são muito mais difundidos do que informam as notícias. As agressões, em sua grande maioria, são praticadas por homens que portam plenas faculdades mentais de escolher praticá-las ou não. Essas escolhas são incentivadas por uma série de mecanismos culturais (SOUSA, 2017).

Atualmente, a cultura do estupro é compreendida como a aceitação e conivência à invasão ou violação dos corpos das mulheres, a subjugação da sua condição de vítima e a objetificação dos seus corpos na produção artística e cultural (SOUSA, 2017). É um conceito, portanto, que se refere ao “conjunto de violências simbólicas que viabilizam a legitimação, a tolerância e o estímulo à violação sexual” (SOUSA, 2017, p. 13). Para além da violência sexual, a cultura do estupro legitima ainda toda uma gama de violências, tais como o assédio na rua e as agressões físicas em espaços públicos.

No Carnaval, as oportunidades de azaração são ampliadas, mas se exacerbam, na forma de assédio, os comportamentos de violência sexual contra as mulheres. As palavras ofensivas de cunho sexual investidas, toques sem consentimentos e beijos forçados são comuns no Carnaval. A azaração é uma oportunidade festiva desde que o objeto da conquista não implique em violação moral ou física do outro. O assédio não passa de um uma prática predatória violenta.

Praticamente eu sou abusada, porque eles não têm limites. Acham que estar ali tem que ser assediada. Porque a gente está na rua, está no Carnaval, está ali assistindo, eles acham que podem fazer o que quiser. Isso é chato, é constrangedor. Eles já chegam querendo beijar, chegam puxando e às vezes machucando. Machuca porque eles não têm limites na força (Helen, 20 anos, Foliã).

O carnaval é visto por muitos foliões como a festa em que se pode tudo, isto é, seria tudo para os homens em desfavor das mulheres. Os foliões masculinos confundem tolerância contativa com o convite ou abertura para o contato corporal. Durante o Carnaval, os foliões sabem que irão tocar e ser tocados. Muitos desejam a efervescência decorrente desses contatos e alguns contam com as possibilidades de contato como meio para a azaração. No

entanto, os predadores fazem desse espaço de aproximação corporal um lugar de ameaça, invasão e violação dos corpos das mulheres.

Os perpetradores se colocam como sujeitos dos desejos das mulheres. Eles partem da ideia de que o não é um sim que ainda não foi revertido, e de que, no fundo, as mulheres querem aquilo tanto quanto eles. Elas precisariam apenas de um “estímulo” a mais. A cultura do estupro ensina aos homens a aproveitar os recursos ao seu alcance para estimulá-las, pois depende somente dele para “transformar” um não em um sim (SOUSA, 2017, p. 13).

Atentando contra a liberdade sexual das mulheres, os homens as forçam a aceitar a violência sem reagir, caso contrário, eles retaliam a rejeição. Assim, a violência, que se segue à recusa, tem uma performance expressiva e instrumental.

Esse negócio de querer te agarrar. Às vezes, você passa a pessoa segura a sua mão. Você tira e ele prende o seu braço. Ou então, pega pela altura do pescoço, pra poder beijar. Uma vez, o cara me segurou pela altura do pescoço e arrancou os meus brincos (Hillari, 19 anos, Foliã).

Por um lado, existe a azaração sádica, do assédio em si como fonte de prazer, e, por outro lado, as mulheres são castigadas pela recusa do beijo. Desse modo, a violência perpetrada tem uma finalidade penalizadora, ou seja, os assediadores parecem querer reafirmar a força do machismo no contexto carnavalesco, sendo essa afirmação da identidade bastante recorrente.

A descrição acima remete às oportunidades predatórias que se fundam na desvantagem situacional simbólico-numérica. Nesta condição de desvantagem estão as mulheres em relação aos homens e perante as autoridades de segurança.

Os foliões do sexo masculino se sentem à vontade para abordar e agredir as mulheres que não se encontram na presença de outros homens ou quando estes estão em desvantagem numérica.

Os homens respeitam outros homens e não as mulheres. Eles respeitam por eu estar acompanhada pelos meus tios, pelo meu pai e o meu avô, ou seja, por homens. Mas eu creio que se eu estivesse sozinha rolaria muito assédio. A mesma coisa se estivesse com um namorado no Carnaval. Eu tenho certeza que se algum homem me assediasse [por engano], este pediria desculpa ao meu namorado e não a mim (Francielle, 15 anos, Foliã).

No jogo machista de afirmação da identidade masculina mediante práticas predatórias sexuais, a vantagem ou desvantagem numérica que impede ou encoraja os ataques é sempre a quantidade de corpos masculinos. Dessa forma, eles parecem manter o pacto tácito machista de dominação sobre os corpos das mulheres.

Já nos corpos plurais em desvantagem masculina, as mulheres e os homens têm a sua integridade física ameaçada.

Eu estava indo na cordinha [fila indiana], com dois irmãos e o meu marido. E estávamos passando em um tipo de corredor polonês, e o cara puxou o meu cabelo pra beijar. Aí, meu irmão que vinha atrás pegou a rebombada. Aí, foi aquela briga, aquela agonia (Marivaldina, 53 anos, Foliã).

As práticas predatórias sexuais consistem na ampla fruição do corpo feminino, tomados como incircunscrito, ou seja, eles estão abertos a intervenções (CALDEIRA, 2000, p. 370). Os “corpos incircunscritos” estão em desvantagem situacional simbólica. Embora seja alvo de campanhas, que propõe práticas que respeitem os limites dados pelas mulheres, o assédio no Carnaval ainda é pouco reprimido pelas autoridades durante os dias de festa. Isso gera uma desvantagem situacional na medida em que alimenta a cultural do estupro.

[O assédio] é aquela sensação de ser invadida, ferida, de ter a liberdade roubada e de ser fragilizada em saber que você está indefesa. Porque no Carnaval quando a gente é assediada, pra polícia intervir, talvez, só se a gente estiver sendo surrada. O assédio é muito naturalizado no Carnaval. [...] A polícia dificilmente ou quase nunca faz nada (Iolanda, 20 anos, Foliã). Por essa via, a cultura da violência não se materializa apenas no corpo, mas também nas instituições, pois ao invés de reprimir as suas práticas são permissivas e tolerantes com elas. A subnotificação das violências impingidas decorre essencialmente em razão dessa conduta institucional padrão.

O Carnaval é uma festa que amplia a oportunidades festivas em relação à vida cotidiana, ao tempo que amplia a liberdade para a fruição dessas oportunidades. A desvantagem situacional simbólico-numérica não só limita a liberdade das mulheres como também reduz os seus corpos a objeto sexual de satisfação dos desejos e necessidade dos homens, o que acaba legitimando e alimentando diversos tipos de violência no Carnaval (SOUSA, 2017).

A cultura do estupro é um mecanismo invisível que tem raízes no patriarcado e se fundamenta a partir de uma sociedade extremamente desigual e violenta que enxerga a mulher como um sujeito, como um objeto que deve ter sua sexualidade, liberdade e independência controlada.

7 AS OPORTUNIDADES CARNAVALESCAS E A ORDEM PÚBLICA FESTIVA NA