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A “disponibilidade dos efeitos” e a “forma interna”

No documento A simulação no código civil (páginas 175-179)

CAPÍTULO II – AS MANIFESTAÇÕES DA SIMULAÇÃO

30. A “disponibilidade dos efeitos” e a “forma interna”

Esta questão sempre chamou a atenção da doutrina, sendo notável a evolução do modo como ela tem sido enfrentada. O debate remonta à formulação de Messina, o qual sustentava que a declaração simulada seria emitida como um fato jurídico em sentido estrito; as partes conseguiriam cindir o movimento volitivo que anima o agir negocial, querendo produzir, não exatamente a declaração, mas o fato da declaração, como execução de um secreto acordo simulatório510. Essa concepção seria criticada por Ferrara, para quem a emissão da declaração deflagraria consequências inevitáveis: acolher o pensamento contrário seria como jogar um corpo para o alto e desejar, em meio ao movimento ascendente, que ele jamais caísse511 Mais tarde, Cariota Ferrara retomaria a

                                                                                                                           

510 G. MESSINA, La simulazione assoluta cit. (nota 40), p. 92.

511 F. FERRARA, A simulação... cit. (nota 20), p. 65: “O efeito jurídico produz-se não por arbítrio das partes,

mas em virtude da lei: aquelas podem, certamente, dar o impulso, criar as condições necessárias para que tal efeito se produza, mas não podem detê-lo ou impedi. O efeito jurídico é como o efeito físico ou químico: pode-se ou não deixar cair um corpo duma altura, pode-se ou não chegar um fósforo aceso à pólvora inflamável, mas feito isto, não pode impedir-se a queda ou a explosão: o efeito dá-se por si, irrevogavelmente, necessariamente. Do mesmo modo, pois, as partes podem não querer o negócio e, por falta de consentimento, determinar a sua ineficácia, mas não podem querer um negócio sem efeitos jurídicos”.

discussão, propondo uma solução com base na distinção entre vontade de declaração e vontade de conteúdo512.

Um pouco mais adiante, Romano chamaria atenção para o fato de que, uma vez emitida a declaração negocial, configurar-se-ia a indisponibilidade dos efeitos (ou seja, esta seria a regra); os particulares não conseguiriam voltar atrás quanto à criação do negócio jurídico, pois esta seria uma consequência puramente normativa, sobre a qual aqueles não exerceriam qualquer influência. Poderiam, quando muito, provocar a desnaturação a posteriori da causa, por meio da adoção de um comportamento executivo que com ela conflitasse513.

Foi Auricchio, porém, o responsável por atribuir contornos dogmáticos mais claros ao debate. Segundo o autor, a principal barreira com a qual o intento simulatório se defrontaria seria indisponibilidade dos efeitos. A caracterização da simulação não se daria com base em um simples comportamento psicológico dos simuladores, mas resultaria do modo como este comportamento influenciaria a eficácia do ato aparente514. Haveria certos negócios jurídicos que assumiriam relevância exclusivamente por força da criação da forma prevista na lei. Nestas situações, não haveria espaço para a investigação de outros materiais interpretativos, como, por exemplo, as tratativas, as condutas sucessivas, e as circunstâncias negociais. Em tais casos, os efeitos seriam produzidos independentemente da intenção das partes de paralisá-los; bastaria a criação do suporte fático previsto em lei para que a eficácia jurídica viesse à tona515.

Auricchio acreditava que o suporte fático do negócio jurídico resumir-se-ia ao aglomerado de essentialia descrito na lei: uma declaração feita por sujeitos capazes, munida de objeto, causa (abstrata), e revestida da forma legalmente prescrita ou não defesa. Este conjunto de fatos prestar-se-ia a justificar a validade ou invalidade do negócio jurídico. A eficácia, por sua vez, derivaria diretamente do regulamento de interesses, uma espécie de pacto nu, ou seja, não formalizado, que expressaria a funcionalidade do acordo firmado. Com base nestas premissas, o autor sustenta que o suporte fático poderia carecer

                                                                                                                           

512 L. CARIOTA FERRARA, Il negozio giuridico... cit. (nota 34), p. 524. 513 S. ROMANO, Contributo esegetico... cit. (nota 53), p. 36.

514 A. AURICCHIO, La simulazione... cit. (nota 19), p. 72. 515 A. AURICCHIO, La simulazione... cit. (nota 19), p. 76.

de um regulamento de interesses operativo; o suporte fático, portanto, reportar-se-ia a um regulamento de interesses meramente aparente.

Deparando-se com o tema, Marani ratifica o entendimento de que a

disponibilidade dos efeitos seria um pressuposto da simulação. Em vista disso, o autor

considera excluída, de antemão, a possibilidade de simularem-se os atos não patrimoniais assim como os atos não negociais516. A disponibilidade dos efeitos, entendida como uma relação entre ato e efeito determinada pela relevância que a norma atribuiria ao regulamento de interesses predisposto pelas partes, seria uma decorrência da autonomia privada517.

Tendo-se em mente a concepção instrumental da simulação, à qual aderimos, a dialética instalada em torno da operatividade da simulação, e dos limites desta, induz-nos a dar um passo além. Ao que nos parece, a querela não se refere unicamente à disponibilidade dos efeitos – pois, quanto a isto, concordamos com Romano: a indisponibilidade dos efeitos é a regra – mas à possibilidade de os particulares criarem elementos do suporte fático legalmente prescrito como índices de significação, isto é, como imagens parciais que, embora comuniquem uma mensagem quando observadas a partir de um particular ponto de vista, não chegam a formar um quadro unitário – apenas

aparentam fazê-lo.

É necessário prestar reforçada atenção aos pressupostos de incidência da norma, que, por vezes, pode atribuir relevância jurídica exclusiva a um específico ato ou fato. Em tal hipótese, toda a substância jurídica do ato ultima-se absorvida por determinada forma. Nenhum valor assume, portanto, o complexo de atos e condutas dos particulares; apenas um aspecto fático é levado em conta para que se dê a incidência do modelo regulativo correlato.

A vinculação entre a forma e o conteúdo do ato jurídico é mais intensa, a ponto de ambos praticamente se confundirem, nos casos em que a norma prescreve uma forma

interna. Conforme salienta Pais de Vasconcelos, a forma interna participa do ser e da

existência do ato. É algo que faz parte dele e sem ela o ato ou não é qualificável como tal,

                                                                                                                           

516 F. MARANI, La simulazione... cit. (nota 246), p. 118; 120. 517 F. MARANI, La simulazione... cit. (nota 246), p. 122.

ou é mesmo juridicamente inexistente”518. Os exemplos mais claros desta ocorrência são os títulos de crédito, em especial, a letra de câmbio e o cheque, cujas formas internas são detalhadamente descritas nas respectivas Leis Uniformes, e em outros dispositivos legais correlatos.

Em contrapartida, a forma externa é aquela de que o ato se veste; seja ad

substantiam ou ad probationem, é algo que lhe acresce, mas que não participa da sua

essência, do seu ser. É exemplo claro de forma externa a escritura pública no contrato de compra e venda de imóvel519.

A distinção entre forma interna e forma externa fora proposta já por Manuel de Andrade, o qual distinguiu “a forma necessária para a validade ou para a prova do negócio” da “forma que constitui elemento do próprio conceito de um certo tipo negocial, por maneira que a sua falta produza a inexistência do respectivo negócio – forma que pode qualificar-se como constitutiva”520.

A forma interna é absoluta, vale por si própria, porque pertence ao próprio tipo do ato ou do negócio, e, portanto, não permite redução teleológica. A forma externa, ao contrário, é funcional, finalisticamente determinada; por isso, pode ser objeto de redução teleológica se assim justificar, designadamente, a boa-fé ou o fim social ou econômico que tenha determinado a sua exigência521.

Para concretizarem a simulação, as partes devem dispor da liberdade de criar suportes fáticos complexos, não atrelados a uma determinada forma interna, de modo que os índices de significação ostentados aos olhos do público não encerrem a totalidade do pressuposto de incidência da norma. Com isto, torna-se viável aquela atividade hermenêutica que, como na hipótese da falsa demonstratio, busca extrair, do complexo comportamental dos indivíduos, a substância jurídica do regulamento de interesses.

Num negócio falsamente qualificado, o nomen juris é ignorado em vista do teor das cláusulas que contêm a regulação convencionada entre as partes. Se, porém, a lei

                                                                                                                           

518 P. PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral... cit. (nota 103), p. 705. 519 P. PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral... cit. (nota 103), p. 705-706.

520 M. A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral... cit. (nota 20), p. 142. V. também F. C. PONTES DE

MIRANDA, Tratado... cit. (nota 496), p. 444.

dispusesse que o nomen juris deveria determinar a natureza da relação jurídica, isto se daria independentemente de aquele contrastar com os demais termos firmados pelos contraentes; seria o caso de negar vigência a algumas cláusulas, ou integrar, por meio da interpretação, o conjunto de cláusulas constantes do instrumento, mas a qualificação jurídica pautada no nomen juris seria definitiva.

Analogamente, quando a norma atribui, à declaração negocial contida num instrumento, a condição de suporte fático exclusivo, de nada adianta, aos contraentes, ocultar intenções, comportamentos, declarações; é impossível a simulação, pois a juridicização do suporte fático é inexorável e indelével.

A simulação pressupõe a possibilidade de uma relação jurídica constituir-se com base em elementos que não se integram a um único instrumento. Naquela, assim como na

falsa demonstratio, o índice de significação ostensivo remete a termos que não refletem a

efetiva situação jurídica das partes – com a diferença de que não é apenas o título que se mostra equivocado. Em caso contrário, isto é, se a forma ostensiva encerra a integralidade do suporte fático valorado pela norma como pressuposto de um dado modelo regulativo, a simulação se torna impensável.

No documento A simulação no código civil (páginas 175-179)