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A perfeição estrutural do negócio simulado

No documento A simulação no código civil (páginas 55-64)

§ 2 A SIMULAÇÃO NO QUADRO DA AUTONOMIA PRIVADA

10. A perfeição estrutural do negócio simulado

Como vimos136, há uma distinção ontológica entre o negócio simulado e o “negócio aparente”. A aparência, como indica o § 1º do artigo 167, é um atributo do negócio jurídico, que o faz ser simulado. Diante disso, é importante diferenciar a estrutura do “negócio aparente” – ou seja, aquela que se torna externamente recognoscível – da estrutura do negócio simulado – isto é, aquela pertinente ao regulamento de interesses que ser como instrumento à criação da aparência. Levando em conta esta distinção, torna-se possível atestar que, ao contrário do que supunha a doutrina mais antiga, o negócio simulado apresenta-se estruturalmente perfeito. Não reside, pois, num suposto vício estrutural, a gênese e a justificação do fenômeno simulatório.

De fato, o artigo 104 descreve os requisitos de validade do negócio jurídico: a capacidade dos sujeitos, a idoneidade do objeto e a forma prescrita ou não defesa. Já o artigo 166 estabelece as hipóteses gerais de nulidade: a incapacidade dos sujeitos, a inidoneidade do objeto, a ilicitude do motivo comum determinante, a preterição de forma ou solenidade legal, a fraude à lei, e a proibição taxativa do ato. Tendo-se em vista este

                                                                                                                           

135 N. DISTASO, La simulazione... cit. (nota 40), p. 443. 136 V. tópico 8.

arcabouço normativo, é imperioso assinalar que, se o negócio simulado possuísse uma imperfeição estrutural, seria nulo independentemente de qualquer disposição normativa específica. Com maior rigor, na verdade, poder-se-ia até mesmo concluir que aquele seria inexistente, acaso se considerasse que a declaração não conteria nenhuma vontade ou que a declaração ostensiva, contrariada por outra, perderia a condição de veículo da vontade privada (como sugeria Köhler, que descrevia o negócio simulado como um “nichtgeschäft”).

A bem se ver, se o legislador entendeu ser necessário a sua expressa intervenção com vistas a cominar a sanção de nulidade ao negócio simulado, isto somente pode ter uma explicação: o negócio simulado seria, a princípio, válido; para romper com este natural estado de coisas, fez-se necessário uma intervenção explícita na ordem normativa, determinando-se a nulidade como consequência arbitrária apta a proporcionar a solução ótima aos conflitos de interesse que girassem em torno da simulação. O raciocínio orientado a valores permite concluir que não fosse pelo artigo 167, o negócio simulado seria válido. A validade originária e a nulidade arbitrária são expressões de juízos de valor que o legislador comunica mediante o modo como abordou a disciplina da simulação.

Esta interpretação demonstra, ainda, que a lei brasileira encontra-se em plena harmonia com o posicionamento predominante na doutrina contemporânea. Já na década de 1960, Auricchio esclarece que o negócio simulado seria estruturalmente perfeito. O acordo, entendido como fato histórico da formação do contrato, não se poderia considerar ausente, pois neste não se manifestaria o desacordo, ou seja, o dissenso sobre a declaração137. A causa também estaria presente pois o negócio simulado assumiria, perante o público, a sua relevância típica. A forma seria certamente atendida pois, sem ela, a criação da aparência enganadora afigurar-se impossível138. E, por fim, a existência do objeto, entendido como matéria do regulamento de interesses seria um pressuposto lógico da aplicação da norma sobre a simulação, pois um negócio sem objeto não poderia dar origem a uma relação jurídica aparente139.

                                                                                                                           

137 A. AURICCHIO, La simulazione... cit. (nota 19), p. 85. 138 A. AURICCHIO, La simulazione... cit. (nota 19), p. 86. 139 A. AURICCHIO, La simulazione... cit. (nota 19), p. 86.

A percepção da perfeição estrutural do negócio simulado coloca em xeque as teses tradicionais da simulação, amparadas, todas elas, na equivocada premissa de que a aparência seria um resultado da inadequada formação da relação negocial.

A tese voluntarista, como relatamos140, pretende descrever a simulação a partir da falta da regular declaração da vontade. No entanto, a superação do dogma da vontade exclui a subsistência desta abordagem dogmática141. O negócio simulado é querido142, assim como os seus efeitos, especificamente no que diz respeito à criação da aparência143. Precisamente porque as partes declaram o que querem, também não é pertinente falar-se de um conflito entre a vontade e a declaração144. A vontade transcendental (vontade real), tal qual o númeno kantiano, é ininteligível; a norma capta e valora um único fenômeno, qual seja, a manifestação de vontade. Por conseguinte, o único confronto de que caberia cogitar seria o da manifestação de vontade com ela própria, e do qual, à evidência, não haveria como decorrer qualquer discrepância145. A bem da verdade, a experiência mostra que raramente as partes têm tanta consciência sobre a vontade que manifestam e os resultados que perseguem, quanto a que mostram possuir quando celebram o negócio simulado146.

É oportuno notar que a associação da simulação à ausência de vontade assume a premissa de que o negócio simulado e o “negócio aparente” seriam fenômenos equivalentes. Por esse prisma, mostrar-se-ia consistente a afirmação de que as partes não quereriam os efeitos do negócio simulado. A doutrina mais recente, ao se insurgir contra o paradigma voluntarista, esforçou-se em demonstrar que o procedimento simulatório seria animado por uma específica vontade, a vontade de simular147. Esta formulação, porém, somente passa a apresentar a consistência pretendida na medida em que se reconheça que o negócio simulado é ontologicamente distinto do “negócio aparente”; enquanto o primeiro instrumentaliza a simulação (sendo, pois, animado pela vontade de simular), o segundo é o

                                                                                                                           

140 V. tópico 4.

141 R.SACCO, Simulazione (verbete) in Enciclopedia giuridica, v. XXXIII, Roma, Istituto della Enciclopedia

Italiana, 1992, p. 1. Tradução livre; no original: “Ma, quando poi la dottrina del negozio come volontà fu abbandonata, la simulazione non potè più essere presentata come una divergenza fra volontà e dichiarazione”.

142 J. A. S. DEL NERO, Conversão Substancial do Negócio Jurídico, Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 397. 143 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 397-398.

144 G. FURGIUELE, Della simulazione di effetti negoziali, Padova, CEDAM, 1992, p. 37-38.

145 A.GENTILI, Simulazione in M. BESSONE (dir.), Trattato di diritto privato, t. V – Il contratto in generale,

Torino, Giappichelli, 2002, p. 521.

146 G.CONTE, La simulazione del matrimonio... cit. (nota 130), p. 366.

fim da simulação, materializando-se na medida em que o engano ultime-se instalado. Realmente, a vontade de simular não pode ser vista como inspiração volitiva do “negócio aparente”, o qual não deixa de remeter a vontade diversa (e.g. a vontade de comprar e vender, de prestar e tomar serviços, de locar e alugar um bem). A vontade relativa ao “negócio aparente”, com efeito, não é manifestada pelos contraentes; mas nem deveria ser. A aparência enganadora limita-se a revestir, ab externo, o complexo regulamento de interesses estabelecido entre os simuladores (i.e. o negócio simulado, que “aparenta” ou “contém declaração não verdadeira), o qual, por seu turno, não carece, em absoluto, de uma vontade devidamente formada e manifestada.

Poder-se-ia arguir, contrariamente ao que acabamos de defender, que o artigo 404, inciso I, do Código de Processo Civil chancelaria a tese voluntarista porquanto disponha ser lícito à parte inocente provar com testemunhas, nos contratos simulados, a “divergência entre a vontade real e a vontade declarada”148. Tal alegação, contudo, mostrar-se-ia frágil; aliás, ainda durante a vigência do Código Civil de 1916, foi cabalmente refutada por Custódio da Piedade Ubaldino Miranda: “[e]mbora se empreguem nesse texto legal as palavras clássicas com que a doutrina tradicional conceitua a simulação, não se pode ver em um dispositivo isolado da lei adjetiva, concernente à prova testemunhal, fundamento bastante para a construção de um conceito do fenômeno simulatório”149.

O autor sustenta que o referido dispositivo da lei processual teria um escopo bastante limitado, a saber, o de validar uma corrente jurisprudencial que vinha admitindo a alegação e a prova da simulação por iniciativa da parte economicamente mais fraca nos negócios simulados que dissimulavam a violação à lei da usura150. Desse modo, o artigo 404, inciso I, do Código de Processo Civil prestar-se-ia a evidenciar a inadequação da aplicação irrestrita do artigo 104 do Código Civil de 1916, o qual vedava a alegação da simulação pelos contraentes do negócio simulado151.

                                                                                                                           

148 H. T. TÔRRES, Simulação... cit. (nota 52), p. 320-321.

149 Custódio da Piedade Ubaldino MIRANDA, A Simulação no Direito Civil Brasileiro, São Paulo, Saraiva,

1980, p. 39.

150 Custódio da Piedade Ubaldino MIRANDA, A Simulação... cit. (nota 149), p. 39. 151 Custódio da Piedade Ubaldino MIRANDA, A Simulação... cit. (nota 149), p. 40.

A tese declaracionista, como vimos152, tende a identificar na simulação uma discrepância entre declarações. O acolhimento deste ponto de vista, se fosse o caso, não deveria implicar a conclusão de que a estrutura do negócio simulado seria imperfeita. Deve-se notar, antes de mais, que a simulação não se mostra apta a instaurar um conflito entre declarações, mas entre fragmentos de uma só de declaração. A declaração ostensiva e a oculta, ainda que formalizadas em instrumentos distintos, formam uma unidade.

O fragmento mostrado ao público, na verdade, é uma não declaração. “Declaração simulada não é mais real que declaração imaginária (...). Declaração simulada, imaginária, falsificada, não são espécies do gênero declaração, se declaração quer dizer ‘declaração existente, verdadeira e real’(...)”153. Nada distingue aquilo que se diz ostensivamente, daquilo que se dispõe veladamente; o que se simula não é jamais uma declaração inteira, mas um fragmento que, embora não o sendo, parece uma declaração completa154. Entre o fragmento ostensivo e o oculto não há contradição, pois a incompatibilidade entre os seus sentidos não surge na instância das partes, mas na dos terceiros. A harmonia que caracteriza o comportamento total dos simuladores é uma imposição lógica, semelhante à coerência que se observa no confronto entre a elaboração de um projeto e a sua fiel execução155.

Nessa esteira, ainda que se considere que a contradeclaração exclui os efeitos do fragmento aparente156, a declaração, em sua totalidade, não perde a habilidade de exteriorizar a vontade dos contraentes (mesmo que esta vontade não seja imediatamente recognoscível pelo público). Por conseguinte, não se mostra adequado supor que o negócio simulado careça de uma declaração íntegra; precisamente porque a declaração e a contradeclaração afiguram-se incindíveis157, formam um todo unitário e orgânico cuja relevância jurídica não pode ser questionada.

                                                                                                                           

152 V. tópico 5.

153 R. SACCO – G. DE NOVA, Il contratto, t. 1, 3ª ed., Torino, UTET, 2004, p. 647. Tradução livre; no

original: “[U]n aggetivo, aggiunto ad un nome, può essere incompatibile con l’esistenza e la realtà dell’entità indicata dal nome. Dichiarazione simulata non è più reale che dichiarazione immaginaria (...). Dichiarazione simulata, immaginaria, falsificata non sono specie del genere dichiarazione, se dichiarazione vuol dire ‘dichiarazione esistente, vera e reale’ .”

154 R. SACCO – G. DE NOVA, Il contratto cit. (nota 153), p. 646. 155 G. FURGIUELE, Della simulazione... cit. (nota 144), p. 41. 156 R. SACCO – G. DE NOVA, Il contratto cit. (nota 153), p. 646. 157 R. SACCO – G. DE NOVA, Il contratto cit. (nota 153), p. 653.

Questão mais complexa refere-se à causa do negócio simulado. Embora o Código Civil de 2002 – a exemplo de seu antecessor – não aponte a causa dentre os elementos essenciais do negócio jurídico, não a ignora completamente. O artigo 166, inciso III, “quando se refere ao motivo determinante, comum a ambas as partes, reconhece a inadmissibilidade de causa ilícita, distinguindo-a do objeto ilícito, vedado no inciso II do mesmo artigo”158. Tem-se defendido, ademais, com fundamento no artigo 421 – que consagra a cláusula geral da função social do contrato – que “a posição anticausalista torna-se ainda mais inadequada”159.

Consoante expusemos anteriormente160, a noção de causa passou por sensíveis transformações, especialmente no período sucessivo à queda dos regimes totalitários europeus. Ao dessa evolução dogmática, constata-se que a causa propriamente dita, ou seja, a causa concreta, não integra o suporte fático do negócio jurídico, como elemento adicional; trata-se, na realidade, do concreto modo de expressão do regulamento de interesses, que orienta a qualificação e a valoração do negócio jurídico. O negócio jurídico apresenta duas diferentes, mas inseparáveis dimensões: a estrutura e a regra. É a primeira, consistente no conjunto de acontecimentos, fatos, atividades, comportamentos, declarações etc., que as partes criam e organizam para dar um válido direcionamento aos seus interesses, vale dizer, para “poder por a regra”161. A estrutura determina a regra; mas é a operabilidade desta que demarca a função prático-individual perseguida pelos contraentes. Já a função econômico-social extraída da previsão legal abstrata, geralmente denominada “causa típica”, não caracteriza, propriamente, o perfil funcional do negócio jurídico, mas o esquema normativo (o modelo regulativo) que notabiliza o “tipo”.

A tese causalista da simulação desenvolveu-se com base na noção de causa típica. No entanto, para concluírem que a causa típica do negócio simulado seria viciada, os autores forçosamente recorreram ao confronto entre esta e outro elemento, de caráter mais concreto, o qual representaria (como faz a causa concreta) a pontual funcionalidade de cada negócio jurídico singular. Betti, por exemplo, tentou explicar a simulação com base na contraposição entre causa típica e escopo prático. Para o autor, na simulação, o escopo

                                                                                                                           

158 Custódio da Piedade Ubaldino MIRANDA, Teoria Geral... cit. (nota 51), p. 115.

159 M. C. BODIN DE MORAES, A Causa dos Contratos in Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro,

v. 21, 2005, p. 96.

160 V. tópico 6.

prático (que também mereceria a qualificação de “típico”) seria incompatível com a causa típica.

Nada obstante, o próprio Betti reconhece que o escopo prático seria responsável pela determinação causal normal do querer162; seria a dimensão subjetiva da causa, que refletiria um interesse individual163 e se imbricaria com a função econômica típica, formando com esta uma só cadeia psicológica164. A causa, entendida como síntese funcional dos elementos essenciais do negócio jurídico, integraria a estrutura do ato165 e seria determinada por uma vontade final direcionada à causa166, cuja expressão consubstanciar-se-ia no escopo prático.

Em vista dessas premissas, é impossível não indagar: qual a efetiva diferença entre o escopo prático, a que alude Betti, e a vontade real, em que se funda a tese voluntarista? Se a causa é determinada por uma “vontade final”, onde reside a novidade deste ponto de vista? Diante de tão desconcertantes questões, mostra-se oportuna a crítica de Scognamiglio no sentido de que o preceito concebido por Betti não se distinguiria da vontade enquanto fato pré-jurídico criador do direito; por meio de um jogo de palavras, Betti teria simplesmente proposto uma oposição entre preceito (no lugar da vontade) e declaração167.

Não há como deixar passar que a construção bettiana segundo a qual a simulação seria capaz de excluir toda verdadeira correspondência entre a causa típica do negócio e a determinação causal168 entra em choque com seus próprios fundamentos. Ora, se entre o escopo prático e a causa há uma relação de implicação, como poderia existir uma

                                                                                                                           

162 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 393. 163 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 174. 164 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 386.

165 G.CONTE, La simulazione del matrimonio... cit. (nota 130), p. 564.

166 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 184. Em outra passagem (p. 67), o autor esclarece: “E é que

o regulamento pré-escolhido pelas partes deve, tanto quanto possível, responder à sua conveniência privada: conveniência de que é índice a determinação causal daquelas, dirigida a um resultado prático, o seu intento prático. Se tal intento, no caso específico, é viciado, pode-se arguir que o regulamento pré-escolhido não responde à concreta conveniência, assim como vem, por essas partes, valorada”. Tradução livre; no original: “Ed è che il regolamento prescelto dalle parti deve per quanto è possibile rispondere alla loro convenienza privata: convenienza, di cui è indice la loro determinazione causale rivolta a un risultato pratico, il loro intento pratico. Se tale intento nel caso specifico è viziato, ciò fa arguire che il regolamento prescelto non risponde alla concreta convenienza, così come venne da esse parti valutata”.

167 R. SCOGNAMIGLIO, Contributo... cit. (nota 114), p. 69-72. Em sentido semelhante: G. CONTE, La

simulazione del matrimonio... cit. (nota 130), p. 357; 360.

incompatibilidade entre estes termos? Por imperativo lógico, a consideração de que a “vontade final” determinaria a causa somente poderia resultar na perfeita harmonização entre esta e o escopo prático169.

Os sucessores de Betti buscariam aprimorar os seus ensinamentos, cada qual à sua maneira. De acordo com Pugliatti, a causa típica seria destruída ou modificada pelo acordo simulatório; em vista disso, a simulação continuaria sendo um vício ligado à estrutura do negócio jurídico, merecendo, indiscriminadamente, a qualificação de inexistente e nulo170. Romano, por seu turno, conceberia a causa em sua acepção dinâmica; por conseguinte, o problema da simulação não mais diria respeito à estrutura negocial – que permaneceria íntegra – mas à possibilidade de conservação de uma relação jurídica incompatível com o comportamento executivo dos contraentes171.

Muito embora tais teorias representem valiosas contribuições ao estudo da simulação, elas não levam em consideração que, considerado em bloco, o negócio simulado possui causa (concreta), e, ademais, reconduz-se a um tipo (i.e. apresenta causa típica). Como bem observa Conte, ao se perceber que a causa, mais que um esquema subsuntivo de perfil abstrato, relaciona-se a uma função prático-individual, torna-se difícil sustentar que o negócio simulado dela careceria172. Disso decorre que, se o negócio simulado possui causa concreta, não haveria razões para não possuir uma específica causa típica; bastaria, para tanto, que a lei descrevesse a operação simulatória como um tipo, ou seja, mediante uma descrição sumária de seus traços essenciais.

O “negócio aparente” certamente não tem causa, mormente porque não possui nada além da própria aparência; mas o negócio simulado, que desta aparência se reveste, tem uma clara – e por que não dizer, óbvia – função: a de criar a aparência. Aqui se vê que intuição de Pugliatti representou, na história da dogmática da simulação, um importante avanço; se o acordo simulatório poderia ser dotado de uma peculiar causa típica, por que não dizer o mesmo do próprio negócio simulado? Porquanto, como demonstramos acima, o acordo simulatório ultima-se absorvido pelo negócio simulado, a operação típica que o

                                                                                                                           

169 U.LA PORTA, Il problema della causa del contratto – I. La causa ed il trasferimento dei dirrito, Torino,

Giapicchelli, 2000, p. 25-26.

170 S. PUGLIATTI, La simulazione... cit., (nota 53), p. 546. 171 S. ROMANO, Contributo esegetico... cit. (nota 53), p. 39.

legislador capta e disciplina não é a transformação de um negócio real em aparência, mas a criação da própria aparência, que já nasce como tal.

Nestes termos, a função de autonomia privada desempenhada pelo negócio simulado – a “causa simulandi em sentido estrito” – dirige a vontade de declarar a constituir, do contrato, apenas a forma enganadora. Por isso, não é correto considerar o negócio simulado carente de causa, uma vez que este irradia a imagem da voluntária conclusão – apenas formal, logo enganadora – do negócio jurídico. Nisto consiste a causa típica do negócio simulado173.

Não é difícil perceber que o artigo 167, a pretexto de definir a simulação, enuncia os caracteres de tipos negociais, assim como fazem, por exemplo, os dispositivos que descrevem os diversos tipos contratuais. A referida norma não se limita, como o nº 1 artigo 240º do Código Civil português (“Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado”), a indicar os caracteres de um vício do negócio jurídico; no direito brasileiro, o negócio se torna simulado por dar azo a uma das operações enumeradas nos incisos do § 1º do artigo 167: aparentar conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; conter declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; informar, por meio de instrumento particular, data diversa daquela em que tenha sido celebrado.

O Código Civil, ao relacionar a simulação a situações típicas, reconhece e disciplina a causa simulandi em sentido estrito. Trata-se de uma causa peculiar, a qual se resolve na forma da sua existência fenomênica174. A simulação, a teor do artigo 167, não é a imitação de uma forma pressuposta como real, mas uma forma de realidade175. As partes acordam sobre a oportunidade de ofertar aos terceiros um ou mais índices com base nos quais sejam induzidos a considerar que determinados efeitos negociais tenham sido produzidos. A simulação funda-se, pois, sobre a atuação conjunta das partes em prol da manifestação destes índices176.

                                                                                                                           

173 G. A. NUTI, La simulazione del contratto nel sistema del diritto civile, Milano, Giuffrè, 1986, p. 64-65. 174 A. PELLICANÒ, Il problema della simulazione nei contratti, Padova, CEDAM, 1988, p. 54-55.

175 A.PELLICANÒ, Il problema... cit. (nota 174), p. 6-8. 176 G. FURGIUELE, Della simulazione... cit. (nota 144), p. 59.

Nessa linha de raciocínio, deve-se investigar a simulação a partir da causa concreta do negócio jurídico177. Isto não significa, em absoluto, que o negócio simulado seria caracterizado por um descompasso entre a causa típica e a causa concreta. A causa concreta identifica a vocação do negócio jurídico; presta-se a sintetizá-lo em sua

globalidade178, e ao assim fazê-lo, determina a causa típica179. Em razão disso, há, no negócio simulado, perfeita correspondência entre a causa concreta e a causa simulandi em sentido estrito.

Diante das ponderações precedentes, concluímos que o negócio simulado apresenta-se estruturalmente perfeito, razão pela qual o quid da simulação não deve ser associado a um atributo (estático) da relação negocial, mas ao dinamismo de sua peculiar funcionalidade. Reitera-se, desse modo, a consideração do negócio simulado como

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