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O problema da definição legal de simulação

No documento A simulação no código civil (páginas 37-46)

§ 2 A SIMULAÇÃO NO QUADRO DA AUTONOMIA PRIVADA

7. O problema da definição legal de simulação

É corriqueiro principiar-se o estudo da simulação buscando defini-la com base no sentido ordinário deste vocábulo. Ferrara, por exemplo, chega a afirmar que a simulação não perderia sua natureza ao deslocar-se para o plano normativo85. Já Distaso postula que a

                                                                                                                           

84 Custódio da Piedade Ubaldino MIRANDA, Teoria Geral... cit. (nota 51), p. 116-117. 85 F. FERRARA, A simulação... cit. (nota 20), p. 50.

simulação disciplinada pelo direito civil guardaria perfeita correspondência com aquela descrita nos dicionários; simular, portanto, equivaleria a imitar, fingir, falsear etc.86

A abordagem empírica ao instituto da simulação, todavia, tem sido duramente criticada. Auricchio destaca que a elaboração de uma noção metajurídica de simulação com recurso ao bom senso ou à tradição seria um esforço em vão. Segundo o autor, a suposição, baseada no senso comum, de que o negócio simulado é um negócio “fingido”, afastaria o intérprete de uma elaboração científica relativa aos traçar os limites entre realidade e aparência.87 No mesmo sentido, Messineo observa que a noção empírica de simulação não poderia transpor-se para o campo do direito; neste, aquela assumiria um significado próprio, totalmente distinto do indicado nos dicionários ou apreensível a partir da experiência comum88.

A nosso juízo, a fixação de um ponto de partida extrajurídico para o desenvolvimento do estudo da simulação (como, aliás, para qualquer categoria jurídica) deve ser evitada. De fato, não seria improvável que o intérprete que pretendesse examinar o negócio simulado com base em dicionários (da linguagem corrente) chegasse a conclusões distorcidas ou incoerentes.

                                                                                                                           

86 N. DISTASO, La simulazione... cit. (nota 40), p. 58-64.

87 A. AURICCHIO, La simulazione... cit. (nota 19), p. 21-22: “O primeiro problema, preliminar a um estudo

sobre a simulação, é a precisa individualização do objeto desta pesquisa; as discussões da doutrina, de fato, versam não apenas sobre a valoração da atividade dos simuladores, mas antes, sobre a atividade material que vem valorada para uma exata reconstrução do instituto. Anunciada esta questão, revela-se logo inadequado o método de adotar um conceito empírico de simulação, ainda que de modo provisório, com a intenção de sucessivamente atribuir-lhe noções jurídicas. Para ilustrar com um exemplo significativo os perigos de tal método, considere-se que da adoção do significado vulgar de simulação deriva, a guisa de corolário, um primeiro princípio: negócio simulado é negócio fingido. Ora, longe de negar ao instituto qualquer relação com o fenômeno da aparência, pode-se bem dizer, pelo contrário, que o escopo da pesquisa sobre o assunto é precisamente o de traçar os limites entre realidade e aparência, e, portanto, de elaborá-los de modo científico: mas é exatamente por isto que parece duvidoso considerar já resolvido o problema assinalado a partir do significado comum do termo ‘simulação’”. Tradução livre; no original: “Primo problema, preliminare ad uno studio sulla simulazione, è la precisa individuazione dell’oggetto stesso dell’indagine; i dissensi della dottrina, infatti, vertono non solo sulla diversa valutazione dell’attività dei simulanti ma ancor prima sull’attività materiale che va valutata per una esatta ricostruzione dell’istituto. Sollevata questa questione, si rivela subito inadeguato il metodo di adottare un concetto empirico di simulazione, sia pure in modo provvisorio, con intenzione di corredarlo successivamente di nozioni giuridiche. Per illustrare, con esempio significativo, i pericoli di un simile metodo, si consideri che dall’adozione del significato volgare di simulare deriva, a guisa di corollario, un primo principio: negozio simulato è negozio finto. Ora, lungi dal negare all’istituto della simulazione ogni rapporto con il fenomeno dell’apparenza, si può ben dire invece che scopo di un’indagine sul l’argomento è proprio quello di tracciare i limiti tra realtà ed apparenza e quindi di elaborarli in modo scientifico; ma è proprio per questo che sembra dubbio considerare già risolto il problema segnalato nel significato comune del termine ‘simulazione’”.

Dentre as diversas definições dadas a “simulação” por um certo dicionário, encontram-se, por exemplo, as seguinte: “[r]epresentação do funcionamento de um sistema, processo ou fenômeno para treinamento (esp. para enfrentar situações de perigo) ou diversão (simulação de voo/incêndio)”; “[e]nsaio, teste ou experiência (simulação eleitoral/de vestibular)89. Em outro dicionário, a palavra simulação vem definida, dentre outras coisas, como: “Disfarce, dissimulação”90. Ora, o vestibulando realiza um exame

simulado com o objetivo de preparar-se para o teste de ingresso à universidade, e o

aspirante a piloto submete-se a treinamentos em simuladores de voo; seria possível associar este significado à simulação jurídica? Seria a simulação disciplinada pelo direito civil o produto de um treinamento ou ensaio para a celebração futura de um negócio jurídico? Evidentemente que não. E quão grave não seria se o intérprete confundisse simulação e dissimulação, como sugerido em um dos léxicos; a interpretação do caput do artigo 167 tornar-se-ia impossível.

Pensamos, pois, que a definição do termo “simulação” deve ser buscada em um único e específico lugar: na lei. Trata-se de um termo técnico-jurídico, não empírico91.

                                                                                                                           

89 Simulação (verbete) in Dicionário on line Caldas Aulete, disponível em

<http://aulete.uol.com.br/simulação> (acesso em 05/01/2014).

90 Simulação (verbete) in Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, disponível em

<http://michaelis.uol.com.br > (acesso em 05/01/2014).

91 De fato, a aproximação entre a simulação jurídica e a empírica não é capaz de refletir a “transformação

teleológica” mediante a qual o direito capta os dados da experiência. A atividade legislativa é de segundo grau, ou seja, lida com redefinições (A. BELVEDERE, Il problema delle definizione nel codice civile, Milano, Giuffrè, 1977, p. 67 ss.). Neste mister, G. RADBRUCH (Rechtsphilosophie, 8ª ed., 1993, trad. port. de M. Holzhausen, Filosofia do Direito, 2ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 2010, p. 176) refere-se ao conceito de “filoxera”, o qual, aparentemente, seria igualmente abrangente, para o direito e a zoologia; uma análise mais cuidadosa, contudo, mostraria que o termo apresentaria alcances distintos para as duas ciências: “seu caráter daninho para os vinhedos, essencial para a ciência jurídica, é totalmente inessencial para a zoologia”.

Em vista disso, cabe assinalar que a simulação a que alude o artigo 167 somente pode ser concebida mediante uma operação conjectural. É, sobretudo, com a construção de tipos jurídico-estruturais que se concretiza o chamado pensamento conjectural. A conjectura tem lugar sempre que o legislador vê-se forçado a abandonar a lógica que normalmente orienta nossa compreensão sobre a realidade, abrindo espaço para a configuração de modelos funcionais (Miguel REALE, O Direito como Experiência (Introdução à Epistemologia Jurídica), São Paulo, Saraiva, 1968,p. 177-178). A preterição da causalidade natural (poder-se-ia dizer: a maquinação de uma nova causalidade, peculiar ao direito) deve-se ao fato de a norma destinar-se, em última instância, a conferir realizabilidade a certos valores. O ato de conjecturar presta-se a superar aquilo que não se pode apreender do real. A razão, aliada à imaginação criadora, visa a ir além da experiência, formulando suposições plausíveis lastreadas na experiência, mas sem o compromisso de refleti-la com fidelidade. Sobre o tema, Miguel REALE (Verdade e Conjetura, São Paulo, Nova Fronteira, 1983, p. 48-49) ensina: “[e]nganam- se, pois, aqueles que reduzem o pensamento conjetural a um jogo quimérico ou arbitrário de imagens: o seu domínio não é o dos conceitos, é certo, mas é o das idéias. O termo do discurso conjetural não são formas imediatas ou mediatas de categorização do real, mas são perspectivas ou vetores de sentido que compõem o leque das idéias, aptas a atuar como coordenadas sistemáticas ou reguladoras das experiências das quais partimos por julgá-las insuficientes a apagar nossa natural ansiedade de compreensão total”.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   

Tome-se, como exemplo, a pessoa jurídica. Esta não pode ser apreendida diretamente da experiência; não há um conceito que a sintetize a partir da realidade. Há, porém, uma ideia plausível de pessoa jurídica – a conjectura. A pessoa jurídica, ao contrário do que defendem os adeptos da corrente nominalista, não apresenta caráter artificial, ilusório, ou arbitrário. Ela capta o teor funcional intrínseco a toda atividade humana mediante um esquema regulativo de um sistema de relações sociais (centro de interesses socialmente estruturados)91. Existe, pois, uma correspondência remota entre o modelo da personalidade jurídica (fato

jurídico) e os centros de interesses socialmente estruturados (fato social) (Miguel REALE,O Direito... cit., supra, p. 150-157).

O caráter conjectural da simulação jurídica pode ser confirmado por meio de um exemplo trivial de uso da palavra “simulação” em seu sentido ordinário: simula-se um incêndio em um edifício a fim de realizar-se o treinamento da evacuação dos diversos pavimentos, para o caso de uma concreta emergência. Seria possível conceber o emprego do termo “simulação” com idêntico sentido ao deste exemplo, porém, reportando-se ao negócio jurídico?

A resposta é negativa. Isto decorre do caráter alográfico do negócio jurídico. Não há como simular o negócio jurídico do modo como se simula um incêndio em um edifício. Pela via reversa, se a simulação de incêndio ocorresse como a de um negócio jurídico, o edifício seria efetivamente consumido por chamas.

Eros Roberto GRAU (Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito, 5ª ed., São Paulo, Malheiros, 2009, p. 30-31; 81-82) diz que o direito é alográfico porque o texto normativo não se completa apenas com o sentido nele impresso pelo legislador. É necessária a intervenção do intérprete, que, desvencilhando a norma do seu invólucro, opera a sua inserção na vida. A circunstância de o direito ser alográfico traz outra consequência: não pode ser imitado, fingido ou falsificado.

Para chegar à conclusão de que o direito é alográfico, Eros Roberto GRAU estabelece a distinção entre artes alográficas e autográficas. Este tema foi examinado detidamente por N. GOODMAN (Languages of Art, 2ª ed., Indianapolis, Hackett, 1976, p. 116) que se propôs a solucionar o seguinte dilema: por que seria possível falsificar um quadro de Rembrandt, mas seria impossível falsificar uma sinfonia de Haydn? A resposta residiria no fato de as artes alográficas (como a música) fundarem-se em uma linguagem definida, que permite identificar o original simplesmente confrontando cada elemento da sua notação (letra, nota, número) com aqueles presentes no exemplar avaliado. Se uma suposta cópia apresentasse um desvio com relação ao original, tratando-se de uma arte alográfica, não se diria estar-se diante de uma imitação; quando muito, deparar-se-ia com uma cópia errada, ou, então, de um novo original. As artes autográficas não se encontram nesta situação, pois não se expressam em uma notação definida. A identidade da obra de arte somente pode precisar-se com recurso ao fato histórico da sua criação. Lucrécia não seria, pois, apenas o quadro que retrata a jovem romana que tragicamente se suicidara, mas a obra criada por Rembrandt em dado e específico momento histórico. Esta referência espaço-temporal não apenas seria necessária para tornar o trabalho único, como implicaria a possibilidade da sua falsificação ou imitação.

A manifestação de vontade negocial não perde sua natureza, nem se despe de relevância jurídica, em razão de as partes intencionarem fingi-la. Na tentativa de simular o negócio jurídico (em termos empíricos), os particulares infalivelmente dão-lhe vida. Encarar a simulação jurídica empiricamente é, por isso, uma tarefa inviável, que esbarra numa necessária imbricação entre o fictício e o real91. J. BAUDRILLARD (Simulacres et

simulation, 1981, trad. port. de M. J. Costa Pereira, Simulacros e Simulação, Lisboa, Relógio d’Água, 1991, p. 30) contribui com a compreensão desta ideia ao cogitar da hipótese de um assalto simulado: “Por exemplo: seria interessante ver se o aparelho repressivo não reagiria mais violentamente a um assalto simulado que a um assalto real. (...) A simulação é infinitamente mais perigosa, pois deixa sempre supor, para além do seu objecto, que a própria ordem e a própria lei poderiam não ser mais que simulação. Mas a dificuldade está à altura do perigo. Como fingir um delito e prová-lo? Simule-se um roubo numa grande loja: como convencer o serviço de segurança de que se trata de um roubo simulado? Nenhuma diferença “objetiva”: são os mesmos gestos, os mesmos signos que para um roubo real, ora os signos não pendem nem para um lado nem para o outro. Para a ordem estabelecida são sempre do domínio do real. Organize-se um falso assalto. Verifique-se bem a inocência das armas e faça-se o refém mais seguro que nenhuma vida humana fique em perigo (pois aí cai-se sob a alçada do direito penal). Exija-se um resgate e proceda-se de maneira que a operação tenha toda a repercussão possível – em suma, imite-se o mais possível a “verdade” a fim de testar a reacção do aparelho a um simulacro perfeito. Não será possível: a rede de signos artificiais vai-se imbricar inextrincavelmente com os elementos reais (um policial vai realmente disparar à vista; um cliente do banco vai desmaiar e morrer de ataque cardíaco; vai ser realmente pago o resgate fingido), em suma, ser-se-á devolvido imediatamente, sem o querer, ao real, uma das funções do qual é precisamente devorar toda a tentativa de simulação, reduzir tudo a real – a ordem estabelecida é mesmo isso, bem antes da entrada em cena das instituições da justiça”.

A resolução de recorrer-se ao texto normativo para buscar o significado de simulação vem, contudo, acompanhada por ulteriores complicações. É que, a bem se ver, o artigo 167 não define a simulação. O caput do dispositivo estabelece que o negócio simulado é nulo; por seu turno, o § 1º do referido artigo, ao dizer que “[h]averá simulação nos negócios jurídicos quando (...)”, não enuncia os caracteres da simulação, enquanto categoria jurídica, mas suportes fáticos aos quais deve ser aplicada a disciplina descrita no artigo; são eles: [os negócios jurídicos que] aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem (inciso I); [os negócios jurídicos que] contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira (inciso II); e [os negócios jurídicos cujos] instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados (inciso III). Tais suportes fáticos, logo se nota, são espécies (melhor dizer, como veremos, tipos) de negócios simulados; a simulação, em si, seria uma qualidade comum àqueles três suportes fáticos, a qual, no entanto, a norma não chega a definir.

É elucidativa, neste mister, a comparação do artigo 167 com o nº 1 do artigo 240º do Código Civil português, o qual, a pretexto de definir o negócio simulado, traça os contornos característicos da própria simulação: “Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado”. A partir desta dicção legal, não se mostraria despropositado vislumbrar a definição de simulação como divergência entre vontade e declaração resultante de um acordo entre declarante e destinatário da declaração. No direito brasileiro, diversamente, esta dedução não se mostra viável, razão pela qual a simulação, citada no § 1º do artigo 167, assume a feição de

ferramenta de apresentação.

Como explica Ross, trata-se, a ferramenta de apresentação, do conceito jurídico que, conquanto desprovido de referencial semântico, desempenha um papel importante na estruturação do sistema normativo, interligando fatos condicionantes a consequências

jurídicas92. O tema foi explorado com desenvoltura num simpático artigo que o autor intitulou Tû-Tû. Esta seria uma expressão utilizada pelos integrantes da tribo Aisat-Naf, instalada nas Ilhas Oasuli, para se referir à circunstância (ao estado de coisas) surgida

                                                                                                                           

92 A. ROSS, On law and justice (1958), trad. port. de E. Bini, Direito e Justiça, São Paulo, Edipro, 2003, p.

quando um determinado tabu fosse violado (e.g. um homem tivesse um encontro com a sogra, ou alguém matasse um animal totêmico). Quem se investisse em tû-tû seria considerado ameaçado por uma força sobrenatural perigosa, e por isso haveria de submeter-se a um ritual de purificação93. Tomando esta interessante história como inspiração, Ross sugere que dois tipos de proposição poderiam ser elaborados com relação a tû-tû94:

(a) proposição descritiva: quem quebra um tabu está tû-tû; e

(b) proposição prescritiva: quem está tû-tû deve submeter-se ao ritual de purificação.

Em nenhuma de tais proposições, porém, tû-tû teria um sentido próprio. Para apreender com maior clareza as conclusões de Ross, reproduzamos o seu raciocínio tomando como exemplo a suposta definição legal de simulação. Partindo-se do disposto, por exemplo, no caput e no inciso III do § 1º do artigo 167, seria possível formular duas diferentes proposições:

(a) proposição descritiva: sempre que houver antedata em instrumento particular de um negócio jurídico, haverá simulação; diga-se, haverá tû-tû – doravante, “fato 1”; e

(b) proposição prescritiva: se o negócio jurídico contém tû-tû, deve ser declarado nulo – doravante, “fato 2”.

No cenário que se descortina, o que significaria tû-tû? Após algumas tentativas e erros, descobrir-se-ia que a única resposta não absurda seria obtida substituindo fato 1 por fato 2 nas proposições antes elaboradas95. O resultado seria algo do tipo: sempre que

houver antedata em instrumento particular de um negócio jurídico → o negócio jurídico deve ser nulo.

Como se nota, ao tentar-se descobrir o significado de tû-tû, constatar-se-ia que esta expressão não possui qualquer importância que não a realização da cópula entre o

                                                                                                                           

93 A. ROSS, Tû-Tû (1957), trad. port. de E. Bini, Tû-Tû, São Paulo, Quartier Latin, 2004, p. 13-14. 94 A. ROSS, Tû-Tû cit. (nota 93), p. 17-20.

fato 1 e o fato 2. Com este raciocínio, Ross demonstrou que diversos conceitos utilizados pelo legislador são desprovidos de significação própria. Poderiam ser descartados, não fosse sua inegável utilidade como ferramenta de apresentação, isto é, como meio de correlação entre fatos condicionantes e consequências jurídicas96. O conceito de

propriedade, por exemplo, não passaria de um aparato conceitual oco, embora fosse útil;

tal qual um organizador, enfeixaria certos fatos em torno das consequências jurídicas correspondentes, facilitando a aplicação da norma. Algo semelhante parece suceder com a simulação a que faz referência o § 1º do artigo 167.

Contra esta linha de argumentação, poder-se-ia defender que o legislador brasileiro teria formulado uma definição denotativa (ou extensiva) de simulação. Por meio desta técnica, a delimitação do definendum dá-se mediante a enumeração dos objetos, ou de exemplos de objetos, por ele denotados97. A palavra metal, por exemplo, poderia ser definida, denotativamente, aludindo-se a ferro, cobre, prata, manganês, mercúrio, etc.

Deve-se observar, contudo, que a definição denotativa requer que os termos que definem as espécies sejam notáveis, isto é, possuam significado unívoco e facilmente apreensível98. Assim, para definir a palavra compositor, poder-se-ia mencionar nomes como os de Mozart, Beethoven, Tchaikovsky e Mahler; ficaria evidente, neste caso, o traço em comum entre os diversos elementos do definens. Isto, porém, não sucede com as supostas instâncias denotativas contidas nos incisos do § 1º do artigo 167, pois cada uma delas descreve um suporte fático complexo, cujas semelhanças não são óbvias. Além disso, a definição denotativa não pode ser adotada quanto a termos que não possuam referencial denotativo, como unicórnio99. Se a ferramenta de apresentação é identificada exatamente

                                                                                                                           

96 Confira-se o que o autor diz a respeito (Tû-Tû cit., nota 93, p. 32-34): “Dessa maneira – é preciso admiti-lo

– nossa terminologia e nossas idéias apresentam uma considerável semelhança estrutural com o pensamento mágico primitivo, com respeito à invocação de potências sobrenaturais, as quais, por sua vez, são convertidas em efeitos fáticos. (...) Creio que esse é o caso, e tomarei como ponte de partida o conceito de propriedade. As normas jurídicas que dizem respeito à propriedade podem, sem dúvida, ser expressas sem necessidade de empregar essa palavra. Em tal caso haveria de formular um grande número de normas, que ligam diretamente as consequências jurídicas individuais com os fatos jurídicos individuais. Por exemplo: Se uma pessoa adquiriu licitamente uma coisa mediante compra, deverá ser acolhida a ação que, para obtenção de sua entrega, essa pessoa instaure contra outros que a retêm em seu poder. Se uma pessoa herdou uma coisa, deverá ser acolhida a ação por perdas e danos que essa pessoa mova contra outros que, por negligência, causaram danos à coisa”.

97 I. M. COPI, Introduction to Logic, trad. port. de A. Cabral, Introdução à Lógica, 2ª ed., São Paulo, Mestre

Jou, 1978, p. 123-124.

98 A.BELVEDERE, Il problema delle definizione... cit. (nota 91), p. 92. 99 Cf. I. M. COPI, Introdução à Lógica cit. (nota 97), p. 124.

por carecer de um referencial semântico, logo não há como defender que ela poderia ser objeto de uma definição denotativa.

Na realidade, mais adequado que cogitar-se de uma definição denotativa seria buscar vislumbrar, no artigo 167 uma definição condicional, assim entendida aquela que alude ao definendum por intermédio do emprego de condições impostas à utilização de

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