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Sociedade: o debate em torno da simulabilidade

No documento A simulação no código civil (páginas 197-200)

CAPÍTULO II – AS MANIFESTAÇÕES DA SIMULAÇÃO

35. Sociedade: o debate em torno da simulabilidade

A simulação da sociedade tem suscitado acirrados debates.

Na Itália, a doutrina se divide. Parte dos autores entende que a sociedade não poderia ser simulada pois a criação da pessoa jurídica pressuporia a intervenção de uma autoridade pública. “[M]esmo supondo que os contraentes não tenham a intenção de realizar o acto e queiram simplesmente produzir a sua aparência, o oficial público ignora as suas secretas resoluções e a elas se conserva extranho, pelo que o acto tem plena eficácia, existindo somente uma dupla reserva mental, não uma simulação, que exigiria um acordo de todas as partes na ficção posta em prática”576. Diante do conflito entre a vontade de praticar a simulação e a vontade de praticar o ato societário, esta última preponderaria, razão pela qual, com a completude do ato constitutivo da sociedade, mediante os trâmites requeridos à sua publicidade, o seu surgimento seria inevitável577.

Segundo esta vertente teórica, o direito positivo consideraria necessária e suficiente, a integrar a causa típica do contrato de sociedade a declaração de dois ou mais sujeitos de querer exercitar uma atividade econômica com fim de lucro. Em contrapartida, não se requereria que a declaração correspondesse, na realidade concreta, à realização da referida causa. A intervenção da autoridade pública no procedimento complexo de constituição da sociedade seria determinante para a sua existência. A criação de um novo sujeito de direito, à qual daria ensejo o registro dos atos constitutivos da sociedade, não poderia ser eliminada por um pacto extra-social, como o acordo simulatório. Deveras, a autoridade não teria condições de verificar, no ato da inscrição, se efetivamente o quanto declarado pelos sócios fundadores poderia ser desnaturado pela existência de uma contradeclaração dirigida em sentido oposto, com a consequência que, privilegiando os

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   

60-61. Contra: F. FERRARA, A simulação... cit. (nota 20), p. 143 ss; N. DISTASO, La simulazione... cit. (nota 40), p. 301 ss.

575 G. GIAMPICCOLO, La dichiarazione recettizia cit. (nota 558), p. 54-58. 576 F. FERRARA, A simulação... cit. (nota 20), p. 125-127.

577 P. GRECO, Le società di “comodo”e il negozio indiretto in Rivista del diritto commerciale e del diritto

ideais de certeza e previsibilidade, o direito preferiria excluir a priori uma semelhante eventualidade578. As partes não poderiam simular a vontade de constituir a sociedade senão querendo efetivamente a sua conclusão formal e aparente. No caso de simulação do ato constitutivo, a situação jurídica aparente seria precisamente representada pela constituição a sociedade579.

Por outro lado, uma respeitável parcela da doutrina italiana sustenta a possibilidade da simulação da sociedade, tanto a de pessoas, como a de capital. Segundo

                                                                                                                           

578 L. SANTA MARIA, Società e simulazione, società e comunione di godimento in Rivista trimestrale di diritto

e procedura civile, Milano, n.1, Marzo, 1995, p. 212.

579 L. SANTA MARIA, Società e simulazione... cit. (nota 578), p. 213ss. Para ilustrar seu ponto de vista, L.

SANTA MARIA lança mão de dois exemplos. O primeiro deles é o da chamada “sociedade de prateleira”: duas secretárias de um escritório de comercialistas constituem uma sociedade, com a observência de todas as formalidades pertinentes, para que possa acolher, como futuros e efetivos sócios, clientes do mencionado escritório579. O segundo exemplo a que alude o autor é o da chamada “sociedade de deleite”: duas ou mais

pessoas constituem uma sociedade que adquire a titularidade de bens imóveis entregues, por um dos sócios, a título de integralização de capital, e limita-se a dá-los em locação ao referido sócio, o mais das vezes sem prestar quaisquer serviços complementares.

De acordo o autor, tais situações não dariam azo à simulação, pois, quando duas pessoas concordassem em dar vida, segundo as disposições da lei, a uma sociedade, tornar-se-ia totalmente inócua a vontade de que isto não ocorresse. Uma vez constituída, a sociedade concretamente existiria, e se os sócios quisessem extingui- la, deveriam deliberar a sua dissolução. No exemplo da sociedade de deleite, as partes pretenderiam realizar a gestão de um bem sob a forma de sociedade, logo, quereriam os efeitos desta. Haveria, aí, uma espécie de negócio indireto, pois o contrato de sociedade resultaria querido, e, consequentemente, não poderia ser tachado de aparente.

O autor assinala, ainda, que a divergência entre a atividade declarada e a atividade desempenhada não obstaria à validade do registro. O que interessaria, para a existência e a validade da sociedade, seria o objeto indicado no estatuto, não aquele efetivamente exercitado. Desse modo, apenas a atividade declarada perante o registro de comércio que importaria para a constituição da sociedade.

A divergência entre a atividade declarada e a atividade desempenhada não obstaria à validade do registro. O que interessaria, para a existência e a validade da sociedade, seria o objeto indicado no estatuto, não aquele efetivamente exercitado. Desse modo, apenas a atividade declarada perante o registro de comércio que importaria para a constituição da sociedade.

Na obstante, o fato de a sociedade ter sido legalmente constituída não impediria que o intérprete procedesse à superação da personalidade jurídica em particulares condições. Quando a sociedade fosse constituída instrumentalmente, com o fim precípuo (não declarado) de eludir direitos de terceiros, a sua existência não seria obstáculo a que o intérprete procurasse uma solução alternativa, capaz de privilegiar os interesses de terceiros.

Para explicar como isto se daria, o autor se vale de outro exemplo. Um tal Sr. White seria titular de 94% das ações da sociedade de capital “X” (a qual teria capital social de 5 milhões de dólares), e da totalidade das ações da sociedade de capital “Z&B” (cujo capital social remontaria a 200 mil dólares) As duas sociedades teriam como presidente e administrador o Sr. White, seriam sediadas no mesmo endereço, e contariam com o mesmo grupo de empregados. A sociedade “X” teria adquirido um lote edificável, e sucessivamente, teria contratado a sociedade “Z&B” para construir o prédio. Todos os pagamentos devidos a fornecedores de materiais para a obra seria realizados com recursos disponibilizados pela sociedade “X”, sem que surgisse a necessidade, da sociedade “Z&B”, de recorrer a empréstimos bancários. Por fim, uma parte dos débitos da sociedade “Z&B” não seria paga, e um dos credores pretenderia que a sociedade “X” arcasse com a dívida inadimplida, sustentando que, na realidade, a sociedade “Z&B” teria sido constituída com o objetivo de limitar a sujeição patrimonial da sociedade “X”.

Neste caso, a fraude perpetrada pela sociedade “X” autorizaria a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade “Z&B”. Não seria possível alegar-se a simulação, pois a desconsideração da personalidade jurídica seria a solução cabível diante do abuso da constituição da sociedade.

esta linha de raciocínio, a participação da autoridade pública no processo de criação da pessoa jurídica teria caráter meramente declaratório, e como tal, não passaria de um requisito imposto à regularidade do contrato de sociedade. A sociedade surgiria em virtude da manifestação da vontade dos sócios fundadores, razão pela qual o registro dos seus atos constitutivos teria mero caráter declarativo. Por conseguinte, seria possível a simulação, sendo certo que o registro do contrato social, ou do estatuto, não sanaria eventuais vícios que ele apresentasse580.

Nesse sentido, Schermi assevera que não haveria razões que impedissem o reconhecimento da simulação da sociedade. Poder-se-ia aduzir, perante o juízo, que, simuladamente, teria sido constituída a organização ordenante societária – ou, até mesmo, um grupo de sociedades. Seria possível demonstrar, se fosse o caso, que a atividade empreendedora, indicada no ato constitutivo, seria exercitada por uma única pessoa (empresário individual), o qual haveria de responder ilimitadamente pelas obrigações assumidas no exercício daquela atividade. Seria cabível, ainda, atestar que sócios aparentes não exerceriam qualquer atividade empresarial em comum, sendo, porém, coproprietários de um direito real sobre um ou mais bens Diante desse quadro, não haveria razões que impedissem o reconhecimento da simulação da sociedade. Poder-se-ia aduzir, perante o juízo, que, simuladamente, teria sido constituída a organização ordenante societária – ou, até mesmo, um grupo de sociedades. Seria possível demonstrar, se fosse o caso, que a atividade empreendedora, indicada no ato constitutivo, seria exercitada por uma única pessoa (empresário individual), o qual haveria de responder ilimitadamente pelas obrigações assumidas no exercício daquela atividade. Seria cabível, ainda, atestar que sócios aparentes não exerceriam qualquer atividade empresarial em comum, sendo, porém, coproprietários de um direito real sobre um ou mais bens581.

                                                                                                                           

580 A. BUTERA, Della simulazione... cit. (nota 20), p. 136 ss.; N. DISTASO, La simulazione... cit. (nota 40), p.

283 ss.

581 A. SCHERMI, Simulazione e gruppi di società in Giustizia civile, Milano, v. XLVII, Giugno, 1997, p. 335

ss. Para o autor, não seria correto dizer que os sujeitos que estipulassem um contrato de sociedade pretenderiam realizar e conservar ao menos um dos seus efeitos – a constituição de uma pessoa jurídica –, ainda que por um limitado arco de tempo.O contrato seria um acordo voltado ao desempenho de uma função concreta; uma autorregulamentação de interesses divergentes ou convergentes caracterizado e individualizado pela sua causa concreta. A causa concreta do ato constitutivo de uma sociedade seria a criação de uma organização que, efetivamente, proporcionasse o exercício de uma atividade empreendedora. Apenas se esta causa concreta se tornasse operativa entre as partes poder-se-ia atribuir, ao contrato, a qualificação e a disciplina jurídica típicas do contrato de sociedade. Em suas palavras:

Na França, a doutrina majoritária582 reconhece a possibilidade da simulação da sociedade, tanto a de pessoas como a de capital. Segundo Dagot, uma vez admitida a natureza contratual da sociedade, a simulação deve reputar-se viável; demais disso, a opinião contrária não poderia ser defendida com base na necessidade de proteger os direitos de terceiros, pois o regime próprio da simulação seria suficiente para preservar as posições jurídicas baseadas na aparência maliciosamente criadas pelos pretensos sócios. A hipótese mais frequente de “société fictive” seria aquela em que falta a affectio

societatis583. Sobre o tema, são esclarecedoras as palavras de Dubois-de Luzy584: Mesmo que a realidade seja diferente, a sociedade fictícia apresenta-se à plena luz jurídica como real: as formalidades de constituição, incluindo e publicidade, foram concluídas, o nome e a sede foram selecionados, os órgãos da sociedade agem em seu nome. No entanto, a empresa fictícia na verdade não existe (...) Nestes fantasmas legais, a vontade de participar de uma empreitada comum para compartilhar os benefícios que disto podem resultar é completamente ausente: não há affectio societatis.

A sociedade seria simulada com vistas a, artificialmente, proporcionar a separação de parte do patrimônio dos sócios, ou, ainda, para dissimular a presença de um outro contrato, como o contrato de prestação de serviços ou de trabalho585. Segundo Abeille, a simples exteriorização, desacompanhada da materialização, tornaria a sociedade instrumento de um ilusão de ótica. Haveria de se distinguir, de um lado, a constituição legal, e, de outro, a constituição real da sociedade; se faltasse a segunda, a sociedade seria apenas aparente. Isto implicaria a conclusão de que a realidade do contrato, como do ente moral, seria distinta da sua validade586.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   

“A mim parece, porém, que o ordenamento jurídico opera na realidade social, sobre posições e vicissitudes humanas: operatividade, do ordenamento jurídico, receptiva (prévia valoração positiva), qualificadoras e regulamentadoras das posições e vicissitudes humanas. E então a gênese, no âmbito social, de uma organização ordenanente efetivamente existente, é pressuposto necessário da operatividade qualificadora do ordenamento jurídico consistente na atribuição de personalidade jurídica à oganização ordenante complexa. Então, se a organização não surge na vida social, é mera aparência, logo, pode haver simulação”.

582 O testemunho disso nos é dado por M. DAGOT, La simulation... cit. (nota 50), p. 64; 260. 583 J. ABEILLE, De la simulation... cit. (nota 374), p. 165.

584 A.DUBOIS-DE LUZY (Interposition de personne cit., nota 469, p. 93-94). Tradução livre; no original:

“Alors même que la réalité est autre, la société fictive se présente à pleine lumière juridique comme réelle : les formalités de constitution, e compris de publicité, ont été accomplies, l’appellation et le siège social ont été choisis, les organes de la société agissent en son nom. Pourtant, la société fictive n’existe pas réellement (...) Dans ces fantômes juridiques, la volonté de s’associer à une œuvre commune en vue de partager le bénéfice qui pourrait en résulter fait complément défault : il n’y a aucune affectio societatis”.

585 M. DAGOT, La simulation... cit. (nota 50), p. 64 ss. 586 J. ABEILLE, De la simulation... cit. (nota 374), p. 165 ss.

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