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Títulos de crédito

No documento A simulação no código civil (páginas 180-184)

CAPÍTULO II – AS MANIFESTAÇÕES DA SIMULAÇÃO

32. Títulos de crédito

A doutrina é praticamente unânime ao asseverar a impossibilidade de simular-se o título de crédito. Variam as justificativas: alguns dizem que isto decorreria da abstração do título de crédito523; outros entendem que a circunstância de o título de crédito ser espécie de negócio unilateral não receptício impediria a formação do acordo simulatório524.

Consoante expusemos acima, o simples fato de o negócio jurídico ser unilateral não constitui óbice à simulação. Sendo o título de crédito um documento (constitutivo) destinado à circulação, nesta consiste a causa de sua emissão, e, em vista dela, aquele deve responder, para a justa tutela do tráfico jurídico, a inderrogáveis exigências de certeza e segurança. O atendimentos de tais exigências é assegurado através de um processo de simplificação do suporte fático, mediante o qual o documento adquire uma função de legitimação no exercício do direito; a promessa se desvincula do destinatário e o direito incorporado no título de crédito torna-se autônomo no confronto com a relação fundamental. O formalismo jurídico dos títulos525 de crédito expressa-se em razão de seus caracteres fundamentais: a literalidade, a autonomia e a abstração526.

Tem prevalecido, atualmente, o entendimento de que o título de crédito surge por força da sua criação. A declaração cambiária é perfeita com a simples criação do título; que ele saia das mão do devedor é simples fator de eficácia da obrigação, mas o negócio é perfeito desde a criação do documento, e, portanto, as exceções relativas à emissão não podem ser opostas ao terceiro possuidor de boa-fé. Nesse sentido, o artigo 16 do Anexo I da Lei Uniforme em matéria de Letras de Câmbio e Notas Promissórias (incorporada ao

                                                                                                                           

522 F.CARRESI, Apparenza e realtà... cit. (nota 305), p. 499-500.

523 T.ASCARELLI, Teoria Geral dos Títulos de Crédito, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1969, p. 108. 524 S. PUGLIATTI, La simulazione... cit., (nota 53), p. 580-583.

525 FranMARTINS, Títulos de Crédito, 15ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2010, p. 12-13. 526 N. DISTASO, La simulazione... cit. (nota 40), p. 309.

direito brasileiro por meio do Decreto nº 57.663/1966), reconhece que mesmo quando ocorra extravio o furto da letra ou da nota, o portador considera-se seu legítimo proprietário: “(...) Se uma pessoa foi por qualquer maneira desapossada de uma letra, o portador dela, desde que justifique o seu direito pela maneira indicada na alínea precedente, não e obrigado a restitui-la, salvo se a adquiriu de má-fé ou se, adquirindo-a, cometeu uma falta grave”.

Pode-se dizer, nesta toada, que a criação do título de crédito implica uma “duplicação” da declaração, em virtude da qual a declaração fundamental separa-se da declaração cartular, a qual assume plena autonomia527. A obrigação se materializa, enquanto fato juridicamente relevante, pelo simples fato da sua consubstanciação no documento previsto e descrito na lei (pelo que, ademais, deixa de coincidir com a obrigação resultante da relação fundamental528). Tal documento é o suporte fático suficiente e, mais que isto, exclusivo, do ato jurídico que representa. O título de crédito não se mostra apto a servir como índice de significação de uma situação jurídica que lhe seja distinta. A simulação do conteúdo do título de crédito é inviabilizada pela exigência de

forma interna529 para a própria existência daquele530. A natureza abstrata e formal dos negócios cambiais cria uma realidade única; logo, não há simulação possível531.

Nessa linha de ideias, tem-se reconhecido que as chamadas “firmas e favor” não implicam a simulação da letra. Muito frequentemente são apostas assinaturas em cambiais não tendo, quem assina, a menor intenção de pagar no vencimento. O objetivo da assinatura consiste, no mais das vezes, apenas em facilitar a circulação da cambial no interesse de um outro obrigado, que se compromete, perante ao signatário de favor, a evitar que este – apesar da sua assinatura – ultime-se compelido a efetivar o pagamento. O favor consiste justamente na aposição da firma como um fim em si mesmo (a “relação de favor”).

Em tais circunstâncias, o negócio cambiário não é simulado; quem assina por favor assume, exata e conscientemente, o risco de pagar a cambial; o caráter de favor da

                                                                                                                           

527 T.ASCARELLI, Teoria Geral... cit. (nota 523), p. 30; 44. 528 T.ASCARELLI, Teoria Geral... cit. (nota 523), p. 57. 529 Ver tópico 30.

530 T.ASCARELLI, Teoria Geral... cit. (nota 523), p. 23. 531 N. DISTASO, La simulazione... cit. (nota 40), p. 320.

firma decorre de uma convenção extracartular, cujos sujeitos não são os da relação cartular. As partes se propõem a criar uma realidade jurídica, a obrigação cambiária, que deve valer e operar no mundo externo com todos os efeitos próprios da obrigação que nela se expressa e se incorpora. Assim, longe de criar uma aparência contrária à realidade, a subscrição de favor desenvolve todas as funções normais532. Fosse o caso de se identificar, na espécie, a ocorrência da interposição fictícia, seria necessário que o credor tivesse originário conhecimento da relação de favor; mesmo assim, contudo, não caberia falar-se de simulação, pois a cambial continuaria apta a circular como consequência da definitiva validade resultante de sua criação.

Cumpre registrar, por oportuno, que a aposição de assinatura falsa (falsidade material ou contrafação) não prejudica a validade da letra ou nota, nem causa a insubsistência das demais obrigações cartulares incorporadas no mesmo documento. O sujeito que tiver a assinatura falsificada não será compelido a efetuar o pagamento simplesmente por não ter participado da relação cambial. A propósito, o artigo 7º do Anexo I da Lei Uniforme em matéria de Letras de Câmbio e Notas Promissórias estatui que “[s]e a letra contém assinaturas de pessoas incapazes de se obrigarem por letras, assinaturas falsas, assinaturas de pessoas fictícias, ou assinaturas que por qualquer outra razão não poderiam obrigar as pessoas que assinaram a letra, ou em nome das quais ela foi assinada, as obrigações dos outros signatários nem por isso deixam de ser válidas”. A falsidade da assinatura pode surgir de maneiras diversas, por exemplo: pode o primus (sacador) assinar com o nome de terceiro, com ou sem o consentimento deste; pode, ainda, o primus a apor a assinatura de aceita, com vistas a obrigar o secundum (aceitante); o pode, por último, o secundum (aceitante) adulterar o documento, para que a assinatura do primus (sacador) pareça ser de tertius (beneficiário-endossante). Em todo caso, o último signatário da cadeia de endossos permanecerá obrigado perante o portador, a despeito da eventual falsidade das assinaturas e figurantes anteriores. Dessa feita, se a assinatura viciada for a do primus (sacador), e o título tiver de ser aceito e circulado, o portador, conquanto não possa exigir o pagamento daquele que tiver a assinatura falsificada, poderá fazê-lo em face do avalista, dos eventuais endossantes e dos respectivos avalistas; mutatis mutandis, se a assinatura falsificada for a do secundum (aceitante), o título de crédito não terá devedor

                                                                                                                           

532 T.ASCARELLI, Teoria Geral... cit. (nota 523), p. 107-108; N. DISTASO, La simulazione... cit. (nota 40), p.

principal, embora todos os demais que nele tenham comparecido continuem vinculados pela obrigação; e, por fim, se o endossante tiver a assinatura falsificada, apenas contra ele o portador não poderá demandar o pagamento533.

Também não induz a simulação do título de crédito a antedata ou pós-data. Neste mister, a Lei do Cheque (Lei nº 7.357/1985) assinala, no parágrafo único do artigo 32, que “[o] cheque apresentado para pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação”534. Nessa direção, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que “[a] emissão de cheque pós-datado, popularmente conhecido como cheque pré- datado, não o desnatura como título de crédito, e traz como única consequência a ampliação do prazo de apresentação”535.

Por fim, uma advertência mostra-se pertinente: tudo o que acima foi dito sobre a simulação do título de crédito não deve conduzir à conclusão, que seria errada, de que a relação fundamental não pode ser simulada. Como salienta Ascarelli, o título de crédito pode ser criado com vistas a difundir a percepção de que a relação fundamental existiria536. Tal situação, em regra, produziria consequências apenas entre os figurantes da relação fundamental, mas poderia implicar a nulidade do próprio título de crédito acaso este fosse

causal. Nos títulos causais, o direitos cartulares são decorrentes de um negócio declaratório; por conseguinte, na valoração destes, deve-se levar em conta, dentre as

exceções cartulares, as derivadas de vícios da relação objeto da declaração, assim como eventuais divergências entre a relação fundamental e o que é manifestado com a declaração cartular537.

Nesta sede, é importante notar que a simulação da relação fundamental prejudicaria indiretamente a validade do título de crédito, pois este mostrar-se-ia, em última instância, carente de causa. Costuma-se considerar um exemplo deste tipo de ocorrência a emissão da chamada “duplicata simulada”. Tal denominação, no entanto, tem sido empregada indiscriminadamente aos casos em que a relação fundamental inexista538

                                                                                                                           

533 L.E.F.ROSA JR., Títulos de Crédito, 5ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2007, p. 161-165. 534 FranMARTINS, Títulos de Crédito cit. (nota 525), p. 306-307.

535 Recurso Especial nº 612.423, Nancy Andrighi (relatora), DJ de 26/06/2006. 536 T.ASCARELLI, Teoria Geral... cit. (nota 523), p. 108.

537 T.ASCARELLI, Teoria Geral... cit. (nota 523), p. 129.

538 V., por exemplo, o acórdão do Superior Tribunal de Justiça relativo ao Recurso Especial nº 774304/MT,

(e.g. “A” saca duplicata em face de “B” sem que qualquer operação comercial tenha ocorrido) e àqueles em que a relação fundamental seja efetivamente simulada (e.g. “A” e “B” celebram simuladamente contrato de fornecimento de mercadorias, e, com base nisto, “A” saca a duplicata em face de “B”). Em qualquer dos casos, a executoriedade da duplicata ultimar-se-ia excluída; porém, apenas na segunda das referidas haveria simulação539, e, ainda assim, não seria da duplicata, mas da relação fundamental.

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