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A simulação e a função social do contrato

No documento A simulação no código civil (páginas 64-78)

§ 2 A SIMULAÇÃO NO QUADRO DA AUTONOMIA PRIVADA

11. A simulação e a função social do contrato

A proposição segundo a qual o negócio simulado configura uma manifestação de autonomia privada deve, ainda, ser testada em face de outro potencial obstáculo ao seu acolhimento: a função social do contrato.

O artigo 421 estabelece que “[a] liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. A doutrina tem-se ocupado, prioritariamente, de examinar o conteúdo programático da norma, afirmando que se trata de um comando que subordina a liberdade de contratar à promoção de determinados valores180. Esta liberdade, ademais, vem sendo associada a duas subespécies: a liberdade de decidir a respeito da

celebração do contrato e a liberdade de estipular o conteúdo contratual. Ainda que seja

questionável a possibilidade de a primeira destas sofrer limitações, parece indubitável que

                                                                                                                           

177 F. DI MARZIO, Interposizione reale di persona, simulazione, frode alla lege nei contratti in Giustizia

civile, Milano, v. LI, Ottobre, 2001, p. 440.

178 G.B.FERRI, Causa e tipo... cit. (nota 66), p. 371. 179 C. M.BIANCA, Diritto Civile cit. (nota 63), p. 472-473.

180 Ver, dentre outros: H. THEODORO JÚNIOR, O Contrato e sua Função Social, 3ª ed., Rio de Janeiro,

Forense, 2008, p. 73 ss.; M.Y.BIERWAGEN, Princípios e Regras de Interpretação dos Contratos no Novo Código Civil, 3ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 59 ss.; C. L.BUENO DE GODOY, Função Social do Contrato, 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012, p. 169 ss.; ARRUDA ALVIM, A Função Social dos Contratos no Novo Código Civil in Revista dos Tribunais 815, São Paulo, 2003, p. 11 ss.; C. SALOMÃO FILHO, Função Social – Primeiras Anotações in Revista dos Tribunais 823, São Paulo, 2004, p. 67 ss.

a função social do contrato, tal qual positivada pelo Código Civil, figura como condicionante do exercício da autonomia privada181.

Particularmente interessante ao estudo da simulação se mostra a questão sobre o sentido da limitação prevista no artigo 421. Mais especificamente, discute-se a respeito do seu caráter endógeno ou exógeno. Do ponto de vista endógeno, a função social seria o fundamento constitutivo da autonomia privada; quanto ao aspecto exógeno, ela representaria uma restrição ao alcance, predeterminado, da autonomia privada. Tais antagônicas perspectivas são bem sumarizadas por Judith Martins-Costa, com base nos ensinamentos de Canotilho182:

(a) limite endógeno: os direitos e respectivos limites seriam imanentes a qualquer posição jurídica; o conteúdo definitivo de um direito seria, precisamente, o conteúdo que resultasse dessa compreensão do direito “nascido” com limites; e

(b) limite exógeno: os direitos e as restrições seriam dimensões separadas; as restrições seriam desvantagens impostas externamente aos direitos; o âmbito de proteção de um direito seria mais extenso do que a garantia efetiva, pois

                                                                                                                           

181 Tem-se afirmado que o artigo 421 não seria aplicável a todos os negócios jurídicos, senão apenas aos

contratos. G. L. BRANCO (Função Social dos Contratos – interpretação à luz do Código Civil, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 276) sustenta, a respeito, que o legislador não teria criado uma regra sobre a função social dos atos de autonomia privada, em geral; a funcionalização dos negócios jurídicos, distintos dos contratos, não decorreria daquele dispositivo, mas da aplicação de outras normas (como os artigos 50 e 187), segundo as quais o exercício dos direitos, em geral, deveria obedecer finalidades socialmente típicas. Este entendimento se mostra questionável, não apenas por conta de tratar-se, o artigo 421, de uma cláusula geral, como, ainda, da possibilidade de obter-se, por esta via interpretativa, uma solução inconciliável com a integridade sistemática do Código Civil. De fato, a depender do sentido que se atribua à expressão “liberdade de contratar”, e considerando-se os valores que se encontram à base da codificação vigente (eticidade, socialidade e operabilidade), seria indefensável a tese de que o legislador teria restringido a obrigação de exercer a autonomia privada, segundo a função social, a apenas certa categoria de atos (contratos). Uma discriminação deste gênero somente seria passível de acolhimento se fosse possível identificar uma (boa) razão que a justificasse. Entre adotar uma concepção anti-isonômica, e outra isonômica, poderia, o intérprete, preferir a primeira, certificando-se de que a desigualdade seria meramente nominal; isto é, se a atribuição de tratamentos distintos a situações que, sob um particular ponto de vista, fossem equivalentes (não há como negar que o contrato é uma espécie de ato de autonomia privada, dentre tantas outras), tendesse a privilegiar outros valores prestigiados pela ordem jurídica, a quebra de isonomia não seria efetiva, mas meramente instrumental (um meio para a consecução de um fim legítimo; o “tratar desigualmente os desiguais”). O problema aqui enfrentado consiste em que, inclinando-se a doutrina a identificar, no artigo 421, uma limitação à autonomia contratual, entendida como manifestação da autonomia privada, não parece existir qualquer explicação racional à suposição de que o legislador teria decidido submeter apenas o contrato à disciplina disposta neste artigo.

182 Judith MARTINS-COSTA, Reflexões sobre o Principio da Função Social do Contrato in Revista Direito

aos direitos sem restrições seriam apostos limites que diminuem o âmbito inicial de proteção.

Logo se nota que, acaso se acolhesse o entendimento de que a função social do contrato define internamente os limites da autonomia privada, seria forçoso concluir que o negócio simulado não pertenceria àquele domínio. Daí a necessidade de examinarmos a questão de maneira detida.

As poucas opiniões já manifestadas sobre o tema parecem buscar uma solução de

compromisso, segundo a qual os limites derivados da cláusula geral da função social do

contrato não seriam meramente exógenos. Afirma-se, neste sentido, que a norma do artigo 421 veicularia, mais que uma restrição externa à operatividade da autonomia privada, um dado estruturante, que determinaria, ab interno, o teor e o alcance daquela, de modo a prevenir que o negócio jurídico fosse desvirtuado enquanto instrumento empregado para a satisfação de interesses socialmente apreciáveis183.

Ao dissertar sobre o tema, Custódio da Piedade Ubaldino Miranda deduz a ambivalência (normatividade endógena/normatividade exógena) da cláusula geral da função social do contrato a partir da oposição das expressões “em razão” e “nos limites”, ambas constantes do artigo 421.

Segundo o autor, a norma, ao estatuir que a liberdade de contratar seria exercida

em razão da função social do contrato, teria estabelecido uma imposição de caráter positivo, atinente aos dois sentidos da liberdade de contratar, a saber, a iniciativa de contratar e a liberdade de estruturar o conteúdo do contrato. No que se refere ao primeiro

destes sentidos, a expressão “em razão” indicaria que a função social do contrato deve orientar a formação da relação negocial; desse modo, o contrato que não apresentasse, em sua expressão, mínima função social, haveria de ser rejeitado pela ordem jurídica. Relativamente ao segundo dos aludidos sentidos, a função social, enquanto razão determinante da atividade contratual, deveria levar os particulares a promoverem interesses socialmente relevantes, como o melhoramento do meio ambiente, a instauração da livre concorrência e um melhor atendimento ao consumidor. Não bastaria, para o atendimento

                                                                                                                           

do comando legal em comento, abster-se de contrariar interesses socialmente relevantes; seria necessário efetivamente contribuir com a realização destes184.

Especificamente quanto aos contratos empresariais, Custódio da Piedade Ubaldino Miranda explica que o exercício da liberdade de contratar em razão da função social do contrato pressuporia a lembrança de que, embora o objetivo primordial da sociedade capitalista seja o lucro, a busca deste resultado não pode dar-se em prejuízo do impulso ao desenvolvimento social. Tal exigência, no entanto, deveria ter aplicação mitigada no terreno dos contratos que visam primordialmente a consecução de interesses privados, como, por exemplo, a locação de bem móvel ou imóvel; ainda que tais contratos pudessem, por vias reflexas, afetar negativamente interesses mais amplos de um grupo social, a sua razão determinante naturalmente residiria no âmbito de uma relação intersubjetiva185.

A seu turno, a previsão de que a liberdade de contratar deveria exercitar-se nos

limites da função social do contrato visaria a prevenir a estipulação de cláusulas que de

algum modo, direta ou indiretamente, viessem a conflitar com interesses socialmente relevantes. Neste caso, a limitação aplicar-se-ia a todos os contratos, inclusive aqueles destinados primordialmente ao atendimento de interesses privados. Não se trataria, neste caso, de restringir a formação do vínculo contratual, mas de disciplinar o alcance de seu conteúdo e a sua operatividade concreta, isto é, o modo como as partes dariam cumprimento às obrigações contraídas e exerceriam os diretos obtidos em razão do contrato186.

Para Custódio da Piedade Ubaldino Miranda, o preceito positivo correspondente à expressão “em razão”, sobretudo no que se refere ao estabelecimento e cláusulas que promovam interesses socialmente relevantes, revelaria a normatividade endógena da cláusula geral da função social do contrato. Em nota de rodapé inserta exatamente na passagem em que comenta o citado preceito positivo, o autor diz: “[n]esta medida, nos parece também que tanto quanto uma ‘funcionalidade exógena’ haverá uma ‘normatividade endógena’ na exigência da função social do contrato, não se limitando tal

                                                                                                                           

184 Custódio da Piedade Ubaldino MIRANDA, Comentários ao Código Civil, v. 5 – Dos Contratos em Geral

(Arts. 421 a 480), São Paulo, Saraiva, 2013, p. 32-34.

185 Custódio da Piedade Ubaldino MIRANDA, Comentários... cit. (nota 184), p. 35-36. 186 Custódio da Piedade Ubaldino MIRANDA, Comentários... cit. (nota 184), p. 38-48.

normatividade aos princípios de boa-fé e de autonomia privada. (...) A jurisprudência tem- se valido, em larga medida, para integrar os contratos de prestação de serviços de saúde, médico-hospitalar com cláusulas não previstas neles, ou até em contrário das previstas, obrigando as prestadoras de tais serviços a fornecer tratamento e/ou equipamento médico- hospitalar necessário, recorrendo à norma da função social do contrato”. Por outro lado, o autor identifica um limite exógeno à liberdade de contratar a partir da expressão “nos limites”, a qual incidiria sobre o momento da vigência do contrato: “[a] função social do contrato constitui-se também, para além da razão de contratar, em um limite externo, ‘exógeno’, à liberdade de contratar. Ela aparece assim, no espírito da lei, com um duplo objetivo: o de presidir à formação dos contratos e o de limitá-los na irradiação de seus

efeitos (...)”187.

Vale notar, todavia, que o autor estabelece, relativamente à abrangência da normatividade endógena da cláusula geral da função social do contrato, uma distinção entre as classes dos contratos que envolvem interesses institucionais e aqueles que se reportam a interesses eminentemente privados. Nesse diapasão, somente os primeiros, assim como, em certa medida, os contratos empresariais, estariam sujeitos à observância da regra derivada da expressão “em razão”188.

Em vista da solidez das conclusões formuladas por Custódio da Piedade Ubaldino Miranda, não nos resta alternativa senão subscrevê-las, ressalvando, contudo uma possível divergência quanto ao sentido da normatividade endógena atribuída à cláusula geral da função social do contrato, da qual devemos tratar por interessar ao estudo que ora desenvolvemos.

Conforme se depreende da leitura das páginas escritas pelo eminente Professor da Academia de Direito do Largo de São Francisco, a chamada “funcionalidade endógena” não chegaria a excluir o ato privado do plano da autonomia privada. Tanto assim que a consequência da infração ao artigo 421, por ato imputável às partes, seria, “in extermis a

                                                                                                                           

187 Custódio da Piedade Ubaldino MIRANDA, Comentários... cit. (nota 184), p. 33, nota 24; p. 36.

188 Custódio da Piedade Ubaldino MIRANDA, Comentários... cit. (nota 184), p. 36. Confira-se, in verbis, como

se expressou o autor, neste particular: “Mais precisamente, quando a lei fala, sucessivamente, na primeira parte do dispositivo, em liberdade de contratar em razão da função social do contrato e, na segunda parte, em exercer essa liberdade nos limites impostos pela função social do contrato, deve o intérprete encarar a função social como referida a diferentes tipos de contratos. Naquele primeiro sentido, estarão em linha os contratos que envolvem interesses institucionais e, em certa medida, os contratos empresariais (...). No segundo sentido, estarão todos os contratos, incluindo os que têm a ver com interesses meramente privados”.

nulidade do contrato, nos termos do art. 166, VII, in fine, que considera nulo o negócio jurídico cuja prática a lei proíbe sem cominar sanção (...)”189. O autor, com efeito, não chega a cogitar da inexistência do contrato em decorrência da aplicação da cláusula geral da função social do contrato.

Em vista dessas considerações, parece-nos oportuno precisar a abrangência que a ideia de normatividade endógena assuma no campo de estudo do artigo 421. Cumpre distinguir, de um lado, a autonomia privada como liberdade social, e de outro, a liberdade de contratar como poder jurídico.

A doutrina tem defendido, recorrentemente, que a autonomia privada corresponde a uma poder pré-jurídico.

A noção de autonomia da vontade, fortemente influenciada pelos ideais pandectistas, tendia a atribuir, ao ânimo psíquico do particular, a capacidade de criar o direito. Este discurso se colocava acima do mecanismo suporte fático/efeito, com base no qual, até hoje, costuma-se explicar a incidência da norma jurídica. A vontade determinaria e produziria os efeitos, não enquanto elemento do suporte fático legalmente prescrito, mas como força originária, apta a regular e extinguir relações jurídicas190.

Este vocabulário, predominante na passagem do direito comum ao direito codificado, sofreria severas críticas, entrando em decadência a partir de 1935, quando os autores principiam a cogitar de outras fórmulas, como regulamento de interesses, ato

preceptivo, ato de autonomia privada. Destacam-se, neste contexto, as contribuições de

Betti191.

Segundo o autor, o negócio surgiria como fato social, em razão do exercício de um poder pré-jurídico. Os interesses que o direito privado disciplina existiriam na vida social independentemente da intervenção do direito; os particulares, em suas relações recíprocas, estabeleceriam diretrizes aptas a satisfazerem suas necessidades, elegendo, termos sob os quais dar-se-ia a troca de bens e de serviços192. Os atos pelos quais se

                                                                                                                           

189 Custódio da Piedade Ubaldino MIRANDA, Comentários... cit. (nota 184), p. 45-46, nota 51. 190 N.IRTI, Letture bettiane sul negozio giuridico, Milano, Giuffrè, 1991, p. 6.

191 Autor este, aliás, citado por Custódio da Piedade Ubaldino MIRANDA, Comentários... cit. (nota 184),

p. 32-33.

expressaria a iniciativa privada, gênese social do negócio jurídico, permitiriam, por si, que os indivíduos regulassem suas atividades, e por conseguinte compusessem os seus interesses da maneira que melhor lhes aprouvesse. Seriam atos de autonomia privada, isto é, instrumentos de autodeterminação e autorregulamentação193.

O cerne desta teoria consiste, precisamente, na descrição da interação que se estabeleceria entre o ato de autonomia privada e a ordem jurídico-positiva. Para Betti, a passagem do plano social para o jurídico dar-se-ia mediante uma operação de

reconhecimento da regulamentação privada, à qual se conferiria tutela jurídica (como algo adicionado e logicamente posterior). Em virtude de tal reconhecimento, os negócios da

vida privada assumiriam a condição de negócios jurídicos, e se tornariam instrumentos que o direito colocaria à disposição dos particulares para disciplinar os próprios interesses na vida de relação194.

A característica essencial do negócio jurídico seria o conteúdo preceptivo da declaração ou do comportamento. As condutas reguladas pelo direito privado poderiam ter conteúdos variados; todavia, somente seria negócio jurídico o ato que tivesse por conteúdo um preceito de autonomia privada, o qual, uma vez reconhecido (ou recepcionado) pelo ordenamento estatal, tornar-se-ia imediatamente operativo dos efeitos jurídicos correspondentes à sua função econômico-social195. Seria, a eficácia jurídica, um produto da lei; isto, porém, não prejudicaria a circunstância de a vinculatividade do ato de autonomia privada mostrar-se atuante desde o terreno social. O preceito de autonomia privada figuraria, pois, como o pressuposto fático de incidência da norma jurídica196.

Na fase de recepção, o direito poderia impor restrições ao alcance das finalidades miradas pelas partes. Instaurar-se-ia, assim, um controle da autonomia privada, operada por meio da valoração da função prática que caracteriza o tipo. Com este crivo, a ordem normativa poderia considerar que os interesses particulares não demandariam tutela, ignorando-os; identificar, naqueles, uma função socialmente relevante, que justificaria a concessão da proteção jurídica legalmente prevista; ou, por fim, reputar o regulamento de interesses reprovável, sujeitando-o a consequências contrárias ao escopo visado pelas

                                                                                                                           

193 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 46. 194 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 47. 195 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 154-155. 196 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 50-51.

partes. Em qualquer destes casos, o controle da autonomia privada seria externo; o que estaria em jogo, neste momento, não seria a caracterização do ato de autonomia privada, mas a possibilidade do seu reconhecimento pela ordem jurídica197.

Em vista disso, é necessário ter cautela ao interpretar-se a proposição de Betti segundo a qual os particulares seriam titulares de uma competência dispositiva. Segundo o autor, competiria aos indivíduos determinar, nas relações entre eles, os escopos práticos a perseguidos e a via a seguir para ordenar os próprios interesses; seria de competência da ordem jurídica distinguir e valorar as categorias de interesses e os escopos práticos visados pelos indivíduos, prescrevendo aos seus atos a modalidade e os requisitos de validade e de eficácia198. Isto, porém, não significaria que a competência dos particulares seria concedida pelo direito, ou neste encontraria o seu fundamento. Betti di-lo com todas as letras: “Mas o ponto saliente é que, com respeito à iniciativa privada, a ordem jurídica exerce uma função apenas negativa, limitadora e disciplinadora”199. A competência dos particulares não seria jurídica, mas social, e, como tal, não seria concedida, mas simplesmente reconhecida pelo direito.

Tais construções dogmáticas seriam acolhidas e aprimoradas por Scognamiglio, para quem o substrato real do negócio jurídico seria o fenômeno da autonomia privada200. A afirmação, embora pareça singela, possui um significado mais profundo, que o autor logo destacaria: a autonomia privada, vista como atitude do indivíduo tendente a impor regras aos próprios interesses, seria confrontada e disciplinada pelo direito posto; consistiria, por assim dizer, no substrato material sobre o qual a norma jurídica incidiria201. Os indivíduos poderiam impor-se regras em variados campos da vida: religioso, moral, profissional, cultural etc. Sempre que isto ocorresse, estaria em evidência a autonomia. Contudo, a autonomia privada propriamente dita – autonomia negocial – teria, como terreno fértil, exclusivamente o plano das relações econômico-sociais. Poder-se-ia

                                                                                                                           

197 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 47-54. 198 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 85-86.

199 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 86. Tradução livre; no original: “Ma il punto saliente é che,

rispetto all’iniziativa privata, l’oirdine giuridico non ha che una funzione negativa, limitatrice e disciplinatrice”.

200 R.SCOGNAMIGLIO, Contributo... cit. (nota 114), p. 83. 201 R.SCOGNAMIGLIO, Contributo... cit. (nota 114), p. 83-84.

dizer, então, que a autonomia privada assume o seu significado próprio na realidade

social202.

A premissa de que o ato de autonomia privada seria um fenômeno extrajurídico203 conduziria, naturalmente, à discussão sobre o intercâmbio estabelecido entre a realidade social e aquela própria do direito. A este propósito, Scognamiglio explica que o ordenamento jurídico reconheceria o ato de autonomia privada em sua essência real. A autonomia negocial, apreendida em sua dimensão dinâmica, operaria no mundo do direito do mesmo modo que o faria no plano social. O direito não conferiria, aos particulares,

uma liberdade, ou um poder novo; nem poderia, porque esta capacidade de agir, regulando

os seus próprios interesses, já lhes competiria em virtude da consciência social. A lei, portanto, limitar-se-ia a atribuir relevância jurídica ao ato de autonomia privada, consentindo o surgimento, na esfera normativa, de um fenômeno dotado, mutatis mutandis, de natureza idêntica àquele. Disso derivaria a noção de negócio jurídico como ato de autonomia privada dotado de relevância jurídica204.

A nosso ver, a concepção da autonomia privada como poder pré-jurídico encontra guarida no Código Civil. A prova disso encontra-se no artigo 166, que, ao descrever as hipóteses de nulidade, em momento algum dá e entender que o negócio poderia ser inexistente em razão da gravidade do vício que o acometesse. Pense-se no caso do negócio com objeto impossível; a impossibilidade ali referida abrange não apenas a física, como a também jurídica. Caio e Tício ajustam a compra e venda de um terreno na lua. Tal contrato, evidentemente, não cumpriria qualquer função socialmente relevante, e, mesmo assim, seria apenas nulo, não inexistente. O que dizer, então, do negócio animado por motivo comum determinante ilícito? Diga-se que Caio tenha contratado Tício para cometer um crime, por exemplo, furtar destruir determinado bem do patrimônio de Mévio. A

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