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Abuso de direito

No documento A simulação no código civil (páginas 140-143)

A associação entre simulação e abuso de direito possui evidente inspiração na concepção bettiana da simulação como abuso da função instrumental do negócio jurídico. Vale notar, porém, que, o próprio Betti diferencia o abuso de direito do abuso do negócio. Para o autor, o negócio jurídico não se confundiria com o exercício de um direito subjetivo, pois tais figuras assentar-se-iam sobre postulados diversos. O negócio jurídico pressuporia interesses a regular nas relações com outros, mas não necessariamente relações jurídicas preexistentes a modificar. Assim, poderia haver negócio jurídico sem direito subjetivo a se exercer, como no caso da assunção de dívida. Por outro lado, o exercício de um direito subjetivo relacionar-se-ia a uma situação previamente criada; realizaria o estado de fato correspondente a uma preexistente proteção legal, com ou sem a cooperação de outrem. Em face disso, o abuso do direito não se confundiria com o abuso do negócio, ainda que se entendesse por “direito” qualquer “poder”, em sentido genérico401.

A esta opinião poder-se-ia contrapor o entendimento de que o abuso de direito, por constituir verdadeira cláusula geral, abrangeria, além dos direitos subjetivos, outras classes de poderes e liberdades402. Ao examinar o artigo 187, Boulos aduz que o instituto ali disciplinado seria um dos vetores da socialidade e, por isso, deveria ser interpretado da maneira mais ampla possível. Segundo o autor, o artigo 187 abrangeria os direitos subjetivos patrimoniais (direitos de crédito e direitos reais), os denominados direitos- deveres (poderes-deveres) ou poderes funcionais, as liberdades, os ônus jurídicos, os direitos potestativos, os poderes, as exceções, enfim, qualquer situação jurídica ativa ou permissão genérica de atuação403. De modo que, à luz do direito vigente, não seria absurdo cogitar-se de um abuso do negócio como sinônimo de abuso de direito.

Deve-se atentar, contudo, que o abuso de direito somente pode configurar-se quando o sujeito invoca um poder que, formal ou aparentemente, lhe pertence404. Por outras palavras, o particular somente logra abusar de um direito cuja titularidade tenha adquirido, muito embora não esteja autorizado a exercê-lo como bem entenda.

                                                                                                                           

401 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 75; 383.

402 A.MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, v. V, Coimbra, Almedina, 2011, p. 372-374. 403 D. M. BOULOS, Abuso do Direito no novo Código Civil, São Paulo, Método, 2006, p. 150-155.

404 D. M. BOULOS, Abuso do Direito... cit. (nota 403), p. 162. Também H. E HÖRSTER, A parte Geral do

A temática da titularidade do direito sempre foi problemática nos marcos da teoria do abuso. Afirmou-se que, se o exercício abusivo de um direito seria repelido pela ordem normativa, a situação que o caracterizaria já não constituiria um direito. Nestes termos, a figura do abuso de direito configuraria verdadeira contradictio in terminis405. Com vistas a superar este impasse, a doutrina passou a sustentar que a abusividade decorreria do exercício do direito de modo a colocá-lo em confronto com as diretrizes informativas do sistema jurídico. Seria um exercício assistemático – disfuncional406 – de uma posição

jurídica407. Esta abordagem programática, de jaez teleológico, teria o mérito de conciliar o direito com o abuso, uma vez que a assistematicidade não implicaria a desnaturação do direito, mas o choque deste com os princípios regentes da ordem jusprivatística.

Nesse contexto, parece ser ainda defensável a distinção, traçada por Josserand, entre os atos ilegais, ilícitos e excessivos. No caso dos primeiros não haveria direito a se exercer, pois o ato seria intrinsecamente incorreto. Quanto aos segundos, os particulares seriam titulares de posições jurídicas inicialmente legítimas a quais, no entanto, tornar-se- iam reprováveis em razão dos objetivos concretos a que fossem direcionadas; haveria, no caso dos atos ilícitos, uma desvirtuação do direito caracterizada pelo respeito à letra da lei, mas a infração ao seu espírito. Por fim, relativamente aos atos excessivos, não haveria nem ilegalidade nem ilicitude, mas uma externalidade negativa anormal, da qual poderia, eventualmente, decorrer a responsabilidade objetiva do agente. No âmbito deste sistema tripartite, o abuso de direito situar-se-ia entre os opostos representados pelos atos ilegais e pelos atos excessivos; a ilicitude atinente à abusividade resultaria da infração à finalidade da lei, não à sua literalidade408.

Levando em conta esta ordem de considerações, a aproximação entre o abuso de direito e a simulação somente poderia ser admitida acaso esta última fosse encarada por um ângulo que, como temos nos esforçado em demonstrar, não é o mais adequado. Se o procedimento simulatório pressupusesse a celebração do “negócio aparente”, e a simulação fosse um efeito decorrente de uma anomalia deste, bem se poderia crer que os simuladores

                                                                                                                           

405 V., a propósito de um exame crítico das teorias internas e externas do abuso, as ponderações de A.

MENEZES CORDEIRO, Tratado... cit. (nota 402), p. 351 ss.

406 A.MENEZES CORDEIRO, Tratado... cit. (nota 402), p. 366-369.

407 P.ROUBIER, Droits subjectifs et situations juridiques (1963), Paris, Dalloz, 2005, p. 47 ss.

408 L.JOSSERAND, De l’esprit des droits et leur relativitè – Théorie dite de l’abus des droits (1939), 2ª ed.,

abusariam da liberdade negocial, exercendo-a de maneira assistemática, contrariamente aos postulados basilares do ordenamento jurídico. Contudo, conforme buscamos evidenciar, o negócio simulado não se confunde com o “negócio aparente”; é a ilusão negocial um efeito da simulação, não o contrário409.

O negócio simulado é aquele que cria a aparência ou contém declaração não verdadeira; é a fonte da ilusão negocial, e, como tal, é intrinsecamente incorreto – logo, ilegal. Este o juízo de valor contido no artigo 167, o qual sanciona da simulação com a nulidade. Não é possível sujeitar o negócio simulado à disciplina do artigo 187 porque este dispositivo aplica-se sobre o ato a princípio legítimo410, que se torna ilícito em virtude do abuso. Não é este, contudo, o caso dos negócios nulos, ou daqueles taxativamente ilícitos, os quais, ainda que pudessem decorrer de um abuso cometido no momento pré-jurídico, são imediatamente captados pela ordem normativa como antijurídicos.

A confirmar este entendimento, é salutar notar que o abuso de direito pressupõe a existência de situações em que não há abuso. Com efeito, a ideia de abuso de direito pressupõe que a lei reconheça a relevância de uma posição jurídica, mas não admita que ela seja exercida para além de certos limites. Por conseguinte, somente poderia tornar-se ilícito, por força do artigo 187, o ato dotado da potencialidade de ser realizado legalmente e licitamente. Se esta potencialidade não existisse, o abuso tornar-se-ia simplesmente inimaginável, pois não existiria a posição jurídica de que se poderia abusar. E é isto, precisamente, o que sucede com o negócio simulado; é logicamente inconcebível o abuso, quanto a este, pois não há como celebrá-lo legalmente. O abuso e o não abuso são irrelevantes para o negócio simulado, que será sempre nulo; é, assim, impossível cogitar-se do abuso de direito em tal âmbito.

Percebe-se, assim, que a noção de abuso da autonomia privada deve ser concebida com temperamento. Como tivemos oportunidade de demonstrar411, a autonomia privada é um poder pré-jurídico, cujas manifestações o direito se limita a valorar, positivamente ou

                                                                                                                           

409 Considere-se um empréstimo simulado; em vista deste, poder-se-ia indagar se os particulares teriam o

direito de celebrar um empréstimo, o qual, por conta de características que lhe fossem adicionadas (e.g. a falta de vontade, ou uma correlata contradeclaração). Responder-se-ia, então, que sim, os particulares têm o direito de contratar empréstimos; seria abusivo, porém, torná-lo simulado. Este ponto de vista não se apercebe de que os simuladores não celebram qualquer empréstimo; celebram um negócio jurídico que se reveste da aparência de empréstimo.

410 D. M. BOULOS, Abuso do Direito... cit. (nota 403), p. 162. 411 V. tópico 11.

negativamente. O abuso de uma posição jurídica somente poderia ter por objeto um ato reconhecido e acolhido pela ordem jurídica, não uma conduta dotada, a priori, de relevância exclusivamente social. Por este motivo, não nos parece sustentável a suposição de que um ato de autonomia privada nulo412, como o negócio simulado, o qual se submete a uma imediata valoração negativa pela ordem jurídica, seja associado a um abuso da autonomia privada (assim como, analogamente, não se justificaria a alegação de que um negócio ilícito – e.g. compra e venda de entorpecentes – seria abusivo).

No documento A simulação no código civil (páginas 140-143)