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A natureza e a autonomia do acordo simulatório

No documento A simulação no código civil (páginas 87-93)

§ 3 O ACORDO SIMULATÓRIO

13. A natureza e a autonomia do acordo simulatório

Confirmado o caráter convencional da simulação, cabe perquirir a respeito da natureza do acordo.

Antes de mais, é importante esclarecer que o objeto de tal avença não pode ser a destruição ou modificação do negócio simulado (mais precisamente, do “negócio aparente”). Lembre-se que a aparência somente pode ser assim descrita se corresponder a uma imagem carente de realidade, um simulacro que somente surge em razão de uma equivocada apreciação dos fatos por parte do observador. O “negócio aparente” jamais é celebrado pelos simuladores; a aparência já surge, como tal, em razão do programa negocial estabelecido entre eles246. Com efeito, seria contrário à realidade das coisas conceber que as partes teriam querido, num primeiro momento, o negócio cuja validez rechaçariam logo depois, ao celebrar o acordo simulatório (os momentos aqui referidos são logicamente, não temporalmente distintos). Também seria contrário à economia do negócio supor que existiria um outro negócio quando, na realidade, o primeiro não fosse querido desde o começo247. Uma compra e venda simulada não é real antes de se tornar aparente; é

                                                                                                                           

246 F. MARANI, La simulazione negli atti unilaterali, Padova, CEDAM, 1971, p. 143.

247 P. S. CODERCH, Simulación Negocial... cit. (nota 120), p. 49; G. D. KALLIMOPOULOS, Die Simulation... cit.

(nota 124), p. 41. Para ilustrar seu entendimento, este último autor vale-se do seguinte exemplo: o empresário “A” quer demitir seus funcionários do escritório, com exceção de sua secretária “B”, e contratar nova força de trabalho; antes da demissão, ele conta a “B” sua intenção e, a fim de evitar potenciais comentários por parte dos funcionários demitidos, conta-lhe que ela também receberá uma carta demissional; a demissão será apenas encenada, “B” deixará temporariamente o cargo, mas receberá um salário completo e o tempo até sua “readmissão” será computado como férias. “B” declara sua concordância com o que lhe fora exposto e tudo corre conforme planejado. Nesso exemplo, depara-se com um caso típico de declaração de vontade simulada,

um negócio real que se reveste da aparência de compra e venda (por isto, simulado). O acordo simulatório, portanto, visa a criar a aparência, não a destruir a realidade.

Isto posto, vê-se que o acordo simulatório encerra o momento em que as partes estabelecem a simulação positivamente248. Aquele, portanto, necessariamente possui

conteúdo negocial, sobretudo porque, como demonstramos linhas acima, o negócio

simulado instaura um complexo regulamento de interesses.

A conclusão diversa não se chegaria à luz das ponderações da mais recente doutrina alemã sobre o tema. Na Alemanha, o § 117 do Código Civil, embora não faça menção ao acordo simulatório (“Simulationsabrede”), cita expressamente o consentimento da contraparte da declaração (“Einverständnis”). Em vista disso, tem-se reconhecido que a simulação pode surgir em razão do intercâmbio de consentimentos (hipótese em que surgiria um contractus de simulando), mas isto não seria obrigatório. Seria suficiente, à caracterização da simulação, que o declaratário ofertasse o “de acordo” em face das intenções do declarante, ainda que tal conduta se restringisse a aceitá-las sem manifestar qualquer oposição249. Note-se bem: consentimento não seria sinônimo de mera ciência. Nesse estado de coisas, ainda que não fosse requerido um contrato específico para a perpetração da simulação, parece inegável que a vontade de um simulador teria de ser acolhida pela vontade de outro sujeito, o qual, aderindo àquela, também se tornaria simulador. A concordância, nestes termos, não deixaria de ter caráter negocial, ainda que o ato fosse unilateral, pois o anuente não se restringiria a autorizar a simulação, mas prestaria imprescindível colaboração à concretização desta.

Deveras, a causa da simulação250 é associativa251; tal qual ocorre num contrato de sociedade, os simuladores reúnem esforços para a consecução de um objetivo comum.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   

de cuja nulidade não se pode duvidar. A concordância de “B” foi expressada antes da demissão, através da carta demissional, de modo que, não se pode falar de um acordo posterior do caráter simulado. Se “A” tivesse obtido a concordância de B só após a realização da demissão através da carta demissional, aí a demissão seria sem dúvida válida, e a concordância posterior de “B” levaria a uma anulação posterior da demissão, demissão esta ex tunc. Nesse caso não se trataria de uma simulação, mas sim de uma reserva mental cerrada (caso “A”, com a carta demissional, quisesse confundir temporariamente “B”), ou de uma declaração de vontade inteiramente normal, que mais tarde seria revogada retroativamente através de um acordo entre os interessados.

248 L.CARIOTA FERRARA, Il negozio giuridico... cit. (nota 34), p. 524-525. 249 G. D. KALLIMOPOULOS, Die Simulation... cit. (nota 124), p. 41-43. 250 V. tópico 10.

Seria ingênuo crer que, durante o iter simulatório, os contraentes manter-se-iam absolutamente desvinculados, no que tange à empreitada conjuntamente assumida. A experiência mostra que quem se dispõe a assumir a condição de simulador espera contar com a adesão da contraparte; entre os partícipes da simulação surge, portanto, uma relação de mútua confiança252. Assim, ao ajustarem o regulamento de interesses voltado à criação da ilusão negocial, as partes assumem obrigações; não se trata da promessa de celebrar o “negócio aparente”253 (como a que decorreria de um negócio preliminar), mas do dever de cumprir o negócio simulado como tal (levando a efeito a difusão dos índices de que depende a disseminação da ilusão negocial)254.

É precisamente daí que decorre a impossibilidade de se atribuir autonomia ao acordo simulatório, pois, em última instância, ele se confunde com o regramento privado

estabelecido pelos simuladores, sendo, portanto, descabida a sua valoração isolada255. Admitir-se o contrário seria equivalente a ver algum sentido, quanto a um contrato de compra e venda, em cogitar-se de um autônomo “acordo compraveditório”; tal suposição, além de redundante e inócua, não possuiria qualquer fundamento técnico.

Em sintonia com esta leitura, Furgiuele defende que o acordo simulatório seria fruto de uma abstração do comportamento concludente das partes, as quais, no decorrer de um procedimento, criariam os índices necessários a enganar os terceiros, assim como atestariam a sua condição de parte de um aparato criador da aparência negocial. O acordo simulatório, segundo o autor, seria uma fusão simbiótica de motivo comum determinante e

convenção: aquele relacionar-se-ia à realização de uma atividade – a simulação; esta, por

sua vez, reconduziria os atos praticados a um sentido compatível com a atividade que os originaria. Enquanto o motivo comum determinante geralmente precederia a simulação, a convenção deveria ser duradoura, pois dela dependeria a permanência do sentido da simulação enquanto tal256.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   

251 Sobre a distinção entre causa de troca e causa associativa, v. F.GALGANO, Il negozio giuridico cit. (nota

119), p. 199 ss.

252 F.MESSINEO, Il contratto in genere cit. (nota 88), p. 454; S. PUGLIATTI, La simulazione... cit., (nota 53),

p. 548.

253 Bem observa S. PUGLIATTI, La simulazione... cit., (nota 53), p. 548.

254 F. ANELLI, Simulazione e interposizione cit. (nota 132), p. 582; F.MESSINEO, Il contratto in genere cit.

(nota 88), p. 454.

255 G.CONTE, La simulazione del matrimonio... cit. (nota 130), p. 387. 256 G. FURGIUELE, Della simulazione... cit. (nota 144), p. 72 ss.

A associação da dimensão volitiva da simulação ao motivo comum determinante, como destacamos acima, já houvera sido prenunciada por Romano. Ocorre, porém, que, na medida em que o motivo comum determinante insere-se no regulamento de interesses estabelecido pelas partes, assume especial relevância jurídica, passando a identificar-se com a finalidade negocial257. Demais disso, a pactuação quanto ao sentido das declarações emitidas não parece ser mais que um natural desdobramento da conversão daquele impulso pré-jurídico em conteúdo do quadro negocial.

Por conta disso, não é possível restringir o acordo simulatório ao entendimento firmado na fase pré-negocial, como fez Auricchio. Embora as tratativas possam orientar a interpretação do negócio jurídico e dar origem a deveres colaterais ou anexos em virtude da incidência do princípio da boa-fé objetiva, estas não perdem a condição de situação de

fato; por conseguinte, não se mostram capazes de determinar o cerne da regra posta pelo

negócio jurídico. Se o negócio é simulado, isto não resulta de uma preliminar de fato, mas do próprio teor da relação jurídica colocada em vigor.

O programa da futura simulação ultima-se absorvido pelo ajuste convencional próprio do negócio simulado. Nessa linha de raciocínio, Majello chega a sugerir que o acordo simulatório não passaria de um cláusula acessória do negócio simulado, com estrutura semelhante à da condição258. A intuição é feliz, mas imperfeita, pois a intenção comum de simular integra-se ao núcleo dispositivo do negócio simulado, determinando-lhe a causa concreta259. Mais precisa é a afirmação do autor de que a simulação ter fonte no acordo somente pode significar que ela encerra a função total do negócio jurídico, quando absoluta, e a função parcial deste, quando relativa260.

A tese acima defendida poderia ser alvo de objeções. Uma delas extrair-se-ia de um desafiador exemplo narrado por Cipriani: o proprietário de um bem ajusta, com outrem, a transferência deste; combina, ainda, com a contraparte, que a avença deveria ser mantida em sigilo, de modo que não fosse possível identificar-se a mudança de titularidade ocorrida. “Em um suporte fático do gênero, embora a situação final criada não fosse diferente daquela decorrente de um ato translativo absolutamente simulado, o que se

                                                                                                                           

257 J. GHESTIN, Causa de l’engagement... cit. (nota 56), p. 127. 258 U. MAJELLO, Il contratto simulato... cit. (nota 105), p. 647.

259 N. CIPRIANI, La simulazione di effeti giuridici... cit. (nota 107), p. 7. 260 U. MAJELLO, Il contratto simulato... cit. (nota 105), p. 645.

simula é um ‘não efeito’, enquanto a operação translativa, querida pelas partes, é dissimulada”261. Outro possível questionamento poderia decorrer da arguta observação de Furgiuele de que a simulação poderia persistir a despeito da resolução do negócio simulado. Poderia existir simulação – adverte o autor – no caso em que as partes resolvessem resilir um contrato de maneira sigilosa, embora ajustassem, entre si, continuar comportando-se como se o contrato ainda estivesse em vigor262.

As situações acima relatadas poderiam insinuar que, ao menos sob certas condições, o reconhecimento da autonomia do acordo simulatório seria inevitável.

Não se deve ignorar, contudo, que o exemplo ventilado por Cipriani não chega a guardar identidade com a simulação. Causaria espécie, de fato, associar-se a este instituto a representação de um “não efeito”; a aparência negocial, por imperativo da norma, é elemento necessário do fenômeno. A ocultação de uma relação jurídica efetiva corresponderia, acaso se acolhesse o ponto de vista do autor, a uma dissimulação pura, hipótese que não foi contemplada pelo legislador, a uma, porque não haveria negócio jurídico a ser declarado nulo, e, a duas, porque os eventuais interesses de terceiros preteridos pela eficácia do contrato confidencial seriam protegidos pelas normas relacionadas à inoponibilidade263, nos limites em que esta se encontra prevista.

                                                                                                                           

261 N. CIPRIANI, La simulazione di effeti giuridici... cit. (nota 107), p. 11. 262 G. FURGIUELE, Della simulazione... cit. (nota 144), p. 69-70.

263 Cite-se, por exemplo, o artigo 129 da Lei nº 6.015/73:

“Art. 129. Estão sujeitos a registro, no Registro de Títulos e Documentos, para surtir efeitos em relação a terceiros:

1º) os contratos de locação de prédios, sem prejuízo do disposto do artigo 167, I, nº 3;

2º) os documentos decorrentes de depósitos, ou de cauções feitos em garantia de cumprimento de obrigações contratuais, ainda que em separado dos respectivos instrumentos;

3º) as cartas de fiança, em geral, feitas por instrumento particular, seja qual for a natureza do compromisso por elas abonado;

4º) os contratos de locação de serviços não atribuídos a outras repartições;

5º) os contratos de compra e venda em prestações, com reserva de domínio ou não, qualquer que seja a forma de que se revistam, os de alienação ou de promessas de venda referentes a bens móveis e os de alienação fiduciária;

6º) todos os documentos de procedência estrangeira, acompanhados das respectivas traduções, para produzirem efeitos em repartições da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios ou em qualquer instância, juízo ou tribunal;

7º) as quitações, recibos e contratos de compra e venda de automóveis, bem como o penhor destes, qualquer que seja a forma que revistam;

8º) os atos administrativos expedidos para cumprimento de decisões judiciais, sem trânsito em julgado, pelas quais for determinada a entrega, pelas alfândegas e mesas de renda, de bens e mercadorias procedentes do exterior.

O exame da afirmação de Furgiuele, por seu turno, deve dar-se com atenção ao correto ângulo de apreciação do fenômeno simulatório. Conforme demonstramos, o negócio simulado não corresponde ao parecer, mas ao instrumento negocial que dá origem à aparência (ou melhor, que dela se reveste). Como consequência disso, a resolução de um negócio não simulado, acompanhada da manutenção da aparência da relação jurídica preexistente, não significa que o negócio simulado tenha perdido vigência, permanecendo eficaz apenas o acordo simulatório, pois o ajuste de interesses surgido nestes termos corresponde, ele próprio, à totalidade do negócio simulado: uma relação jurídica dotada de aparência ilusória. Por outras palavras, o negócio não simulado extinto cederia lugar ao negócio simulado, não a um isolado acordo simulatório; a criação da aparência enganadora a partir da resolução de um negócio jurídico preexistente, portanto, não é mais que uma das maneiras pelas quais poder-se-ia desenrolar o procedimento simulatório. O exemplo de Furgiuele, ao contrário de justificar a concepção do acordo simulatório como negócio autônomo, reforça o entendimento de que aquele identifica-se com a conteúdo dispositivo do negócio simulado.

Vale, por fim, registrar que o acordo simulatório não se confunde com a chamada

contradeclaração. Enquanto o primeiro possui caráter dispositivo, a segunda veicula uma

declaração de ciência (declaração de verdade), servindo tão somente como prova pré- constituída da simulação264.

Ante o exposto, apenas para fins didáticos conseguimos atribuir valor próprio à figura do acordo simulatório. Certamente o enlace volitivo dos simuladores consiste no momento decisivo, característico e indefectível do procedimento simulado, no qual se dá a preordenação da aparência265. Isto não difere, porém, do que ocorre com qualquer contrato: na compra e venda, por exemplo, o enlace volitivo das partes consiste no momento decisivo, característico e indefectível da atividade contratual, no qual se dá a preordenação da iminente troca da coisa pelo preço; mas não há – repita-se – um “acordo compravenditório” autônomo.

                                                                                                                           

264 G. BIANCHI, La simulazione, Padova, CEDAM, 2003, p. 201-202. 265 N. DISTASO, La simulazione... cit. (nota 40), p. 200.

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