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Atos não negociais

No documento A simulação no código civil (páginas 184-188)

CAPÍTULO II – AS MANIFESTAÇÕES DA SIMULAÇÃO

33. Atos não negociais

A questão referente à simulabilidade dos atos não negociais torna-se relevante em vista do artigo 185, segundo o qual “[a]os atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título anterior”. O “Título anterior” a que se refere este dispositivo, é o “Título I” (do “Livro III”), dedicado ao negócio jurídico. Neste se inclui o artigo 167, que faz referência, apenas, ao negócio simulado.

Muito já se discutiu sobre os fatores que diferenciariam o negócio jurídico dos atos não negociais. Em geral, afirma-se que enquanto a eficácia do negócio jurídico seria

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   

SERVIÇOS. EMISSÃO IRREGULAR. SIMULAÇÃO. INOPONIBILIDADE DAS EXCEÇÕES PESSOAIS A ENDOSSATÁRIOS DE BOA-FÉ. NÃO-APLICAÇÃO. VÍCIO FORMAL INTRÍNSECO. 1. O que o ordenamento jurídico brasileiro veda - e isso desde o Decreto nº 2.044/1908, passando-se pelo Código Civil de 1916 e, finalmente, chegando-se à Lei Uniforme de Genebra - é a oposição de exceções de natureza pessoal a terceiros de boa-fé, vedação que não abarca os vícios de forma do título, extrínsecos ou intrínsecos, como a emissão de duplicata simulada, desvinculada de qualquer negócio jurídico e, ademais, sem aceite ou protesto a lhe suprir a falta. 2. Em relação à Duplicata - é até ocioso ressaltar -, a Lei nº 5.474/68 condiciona a sua emissão à realização de venda mercantil ou prestação de serviços, bem como a aceitação do sacado ou, na ausência, o protesto acompanhado de comprovante da realização do negócio subjacente, sem os quais estará configurado o vício de forma intrínseco, o qual poderá ser oposto pelo sacado a qualquer endossatário, ainda que de boa-fé. 3. Recurso especial conhecido e improvido”.

No voto condutor do aresto, o relator, Ministro Luis Felipe Salomão, assevera: “Deveras, o que o ordenamento jurídico brasileiro veda – e isso desde o Decreto nº 2.044/1908, passando-se pelo Código Civil de 1916 e, finalmente, chegando-se à Lei Uniforme de Genebra – é a oposição de exceções de natureza pessoal a terceiros de boa-fé, vedação que não abarca os vícios de forma do título, extrínsecos ou intrínsecos, como a emissão de duplicata simulada, desvinculada de qualquer negócio jurídico e, ademais, sem aceite ou protesto a lhe suprir a falta. Em realidade, tal prática foi erigida há muito a ilícito penal (Art. 172 do Código Penal - Emitir fatura, duplicata ou nota de venda que não corresponda à mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou ao serviço prestado).

Em relação à Duplicata – é até ocioso ressaltar –, a Lei nº 5.474/68 condiciona a sua emissão à realização de venda mercantil ou prestação de serviços, bem como a aceitação do sacado ou, na ausência, o protesto acompanhado de comprovante da realização do negócio subjacente, sem os quais estará configurado o vício de forma intrínseco, o qual poderá ser oposto pelo sacado a qualquer endossatário, ainda que de boa-fé. (...)

No caso ora em exame, a toda evidência, cuida-se de duplicatas simuladas, sem lastro em nenhuma venda mercantil ou prestação de serviços, constituindo tal vício óbice à própria perfectibilização do título como cambiariforme”

autônoma (pois surgiria já no tráfico social, e seria tão somente reconhecida ou recepcionada pela ordem jurídico-positiva), a eficácia dos atos não negociais seria heterônoma, pois decorreria exclusivamente da juridicização do respectivo suporte fático540.

Segundo Mirabelli, os atos não negociais podem ser de três espécies541:

(a) atos exteriores: são atos captados, pela ordem normativa, como meros fatos, isto é, com total desprezo a qualquer inclinação psicológica que possa estar à sua base; são exemplos, dentre outros: a especificação, a invenção de tesouro, a instauração da posse, a presença, a ausência, e a convivência;

(b) atos de expressão de um elemento interior: são atos apreciados, pela lei, não somente como fatos, mas como expressão de um elemento psíquico interior; são exemplos, dentre outros: a fixação e a transferência de domicílio, a apreensão, o ato devido (adimplemento), e a gestão de negócios; e

(c) atos de participação: são atos que comunicam um pensamento do declarante a outrem; bipartem-se entre as participações de representação (que expressam eventos passados) e as participações de vontade (que veiculam eventos futuros); são exemplos, dentre outros: a notificação, a oferta, o convite, e a confissão.

Para Mirabelli, a simulação não seria compatível com os atos não negociais. No que tange aos atos exteriores, um acordo tendente a modificar os efeitos previstos em lei seria plenamente operante, independentemente da aplicação da disciplina própria da simulação. Quanto aos atos que expressam um elemento interior, o acordo simulatório implicaria, simplesmente, a ausência do conteúdo psíquico do ato, e, portanto, o desnaturaria por completo. Nas participações, se estas fossem inexatas, reputar-se-iam ineficientes, razão pela qual um acordo que tivesse por escopo assinalar uma aparência diversa àquelas não seria concebível.

                                                                                                                           

540 Sobre o tema, v. A.FALZEA, L’atto negoziale nel sistema dei comportamenti giuridici in Rivista di diritto

civile, Padova, 1ª parte, 1996, p. 1-55.

Poderia, contudo, admitir-se que as partes convencionassem atribuir, à participação, um efeito diverso do legal; a tal acordo não caberia negar eficácia, embora este implicasse (semelhantemente ao que ocorreria no caso dos atos exteriores) a modificação direta dos efeitos (e da natureza) do ato, não a criação de uma dissociação entre o aparente e o real. “Dizer, por exemplo, que é simulado um ato de constituição em mora, no caso em que o credor acorde com o devedor no sentido de que ele emitirá a intimação para fazer crer, aos terceiros, que ele provoca a atuação do seu direito, mas considerará não verificados, no que diga respeito a este último, os efeitos da mora, significa dizer que ao ato falta a intenção do agente de dar a conhecer a outrem uma própria exigência (...)”542.

Diversamente, Dagot defende que a simulação de “fatos jurídicos”, desde que se tratem de fatos jurídicos voluntários. Para reforçar sua convicção, o autor se vale do elucidativo exemplo da fixação da sede de uma sociedade: “[u]ma sociedade, para afastar a jurisdição de um tribunal, ou para adquirir uma nacionalidade, ou ainda para se beneficiar de reduções fiscais concedidas pelo governo a empresas cuja sede estava nas colônias, pode usar dois procedimentos jurídicos: realmente instalar sua sede social no lugar e nos países listados nos estatutos, e a operação será irrepreensível; ou instalar um conjunto mínimo de corpos administrativos, mantendo a gestão da empresa em outro lugar, onde então será a sede social real, não passando, o lugar especificado nos estatutos, de uma sede social fictícia” 543.

No mesmo sentido, Pontes de Miranda entende que os atos não negociais podem ser simulados. Aduz, o autor, que a comunicação da outorga de poder, a denúncia, a

                                                                                                                           

542 G. MIRABELLI, L’atto non negoziale... cit. (nota 499), p. 433-435. Tradução livre; no original: “Dire, ad

esempio, che viene simulato un atto di costituzione in mora, nel caso che il creditore si accordi con il debitore nel senso che egli emetterà l’intimazione per far credere ai terzi che egli provoca l’attuazione del suo diritto, ma riterrà non verificatisi, per quanto lo concerne, gli effetti della mora, significa dire che nell’atto manca l’intenzione dell’agente di far conoscere all’altro una propria esigenza (...)”.

543 M. DAGOT,La simulation... cit. (nota 50), p. 230-231. Tradução livre; no original: “Une société, pour

écarter la compétence d’un tribunal, ou pour acquérir telle nationalité, ou encore pour bénéficier des réductions d’impôt accordées par le gouvernement aux sociétés dont le siège social était aux colonies, peut utiliser deux procédés juridiques : soit installer effectivement son siège social au lieu, et dans le pays indiqués par les statuts, et l’opération est irréprochable, soit n’y installer qu’un minimum d’organes d’administration, les organes de direction de la société se trouvant en un autre lieu ou se trouve alors le vrai siège social ; le lieu indiqué dans les statuts comme siège social n’est plus alors qu’un siège social fictif”.

derrelição544 e a transmissão da posse longa manu poderiam ser anuladas por conta da simulação545.

Diante desse embate doutrinário, quid juris, à luz do artigo 167?

Para solucionar este dilema, ao que nos parece, não precisamos fazer grande esforço: a resposta que buscamos encontra-se na literalidade da lei. Como demonstramos acima546, a confissão é ato não negocial, e, explicitamente, vem prevista como um dos possíveis alvos da simulação. Portanto, concluímos, ao lado de Pontes de Miranda, que, no direito brasileiro, os atos não negociais podem ser simulados.

Neste passo, é oportuno retomar uma passagem da obra de Mirabelli em que ele reconhece que a formação de um acordo tendente a modificar a natureza, e consequentemente a eficácia, dos atos não negociais, poderia induzir o público ao engano. Ao tratar da voluntária modificação das participações, o autor afirma que os terceiros que extraíssem conclusões inexatas da conclusão do ato poderiam ser tutelados apenas nos limites da eventual relevância da sua boa-fé547. O engano decorrente da manipulação da eficácia de um ato não negocial poderia ser esclarecido por um exemplo dado pelo próprio autor: Caio é proprietário de um terreno no qual se encontram materiais de construção de propriedade de Tício; Caio acorda com Tício que utilizará os referidos materiais de construção, e que, uma vez concluída a obra, a propriedade desta não lhe seja transferida, mas permaneça sob a titularidade de Tício. Eles acordam, ainda, que este pacto deve ser mantido em segredo, para que terceiros possam acreditar que Caio tenha se tornado proprietário do prédio548.

Nesta hipótese, as partes conseguiriam modificar a eficácia de um ato exterior transformando-o em um ato material contratualmente disciplinado. Os efeitos que a lei prevê somente seriam produzidos enquanto o ato não tivesse formado objeto de uma contratação entre os sujeitos interessados. Quando o ato fosse precedido de um acordo que regulasse os seus efeitos, este perderia a natureza de ato com efeitos legais e se

                                                                                                                           

544 Atualmente disciplinada pelo artigo 1276.

545 F. C. PONTES DE MIRANDA, Tratado... cit. (nota 220), p. 522-523. 546 V. tópico 28.

547 G. MIRABELLI, L’atto non negoziale... cit. (nota 499), p. 343-435. 548 G. MIRABELLI, L’atto non negoziale... cit. (nota 499), 147-148.

transformaria em ato material, ao qual se coligariam efeitos contratuais549. Mirabelli reconhece, nestes termos, que a autonomia privada possuiria força determinante também em um campo do qual parecia ter sido absolutamente excluído, isto é, aquele dos atos com eficácia legal550. A despeito da consistência de suas formulações, o autor nega que haveria, na espécie, simulação.

Tal conclusão, no entanto, somente poderia ser acolhida com base em uma concepção do fenômeno simulatório diversa da que defendemos. Uma vez que se entenda que a simulação é fruto de uma operação negocial voltada a iludir a confiança do público, não há como deixar de vislumbrar, numa situação como a acima referida, o acima demonstrado, o engano que constituiria o escopo do negócio simulado.

Demais disso, torna-se ainda mais evidente a distinção que traçamos, em diversas passagens deste trabalho, entre o negócio simulado e ao “negócio aparente” (i.e. aparência que reveste o primeiro). O contrato que, segundo aduz Mirabelli no excerto acima reproduzido, altera a natureza do ato não negocial, é o próprio negócio simulado; aquele que, como diz a lei, “aparenta”, afigura-se “não verdadeiro”. O negócio simulado, com seu peculiar conteúdo convencional, converte o ato não negocial em mero índice de significação, induzindo, deste modo, o público a formar uma equivocada representação da realidade.

Bem se vê, portanto, que a proteção que o legislador de 2002 buscou conferir às vítimas da ilusão criada pela simulação do ato não negocial vai além daquela reconhecida por Mirabelli. Estes podem, com efeito, pleitear a declaração de nulidade do ato, ou, se lhes for conveniente, a manutenção dos efeitos derivados da aparência criada.

No documento A simulação no código civil (páginas 184-188)