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A dupla valoração do negócio simulado

No documento A simulação no código civil (páginas 105-111)

§ 4 A ILUSÃO NEGOCIAL

16. A dupla valoração do negócio simulado

Embora tenhamos empregado, até aqui, a expressão aparência enganadora, existe outra que poderia substituí-la, e seria mais apropriada. Aparência, enquanto imediatidade

do ser292, é algo que todo negócio jurídico possui. Por outro lado, a aparência que induz a um engano melhor se denominaria ilusão293.

A ilusão pode ser concebida de maneiras diferentes. Freud diz que ela decorre do desejo; o que não significa, necessariamente, a irrealidade. A jovem pode iludir-se crendo que um dia encontrará um príncipe encantado; não se exclui, porém, a possibilidade de que

                                                                                                                           

291 S.PUGLIATTI, La simulazione... cit. (nota 53), p. 542.

292 Esta percepção remete-nos a Platão, O Sofista cit (nota 276), XIII:

“Estrangeiro – E a arte que produz simulacros, não imagens, não seria mais acertado denominá-la ilusória? Teeteto – Certíssimo”.

293 G. W. F. HEGEL, Wissenschaft der Logik (1816), trad. port. de M. A. Werle, Ciência da Lógica (excertos),

isto venha a ocorrer, eventualmente294. Já Kant a descreve de modo diverso: corresponde (a ilusão transcendental) a uma percepção equivocada da realidade em si, que persiste ainda que se conheça a circunstância de tratar-se de um erro295. Um graveto que estivesse pela metade dentro de uma tigela cheia d’água pareceria angulado, aos olhos do observador; mesmo que este soubesse que tal efeito deriva da refração da luz, não haveria meios de enxergar o graveto em sua configuração correta enquanto permanecesse em tal condição. É neste segundo sentido que adotamos o termo ilusão, referindo-nos à simulação. Aquela ludibria a razão, e somente deixa de enganar quando o intérprete altera o ângulo pelo qual observa o negócio jurídico.

Na simulação, a criação voluntária da ilusão negocial torna-se possível em vista da consideração, pelas partes e pelos terceiros, respectivamente, de materiais

interpretativos mais amplos (os quais aderem com maior intensidade aos fatos históricos e

às circunstâncias concretas que subjazem ao estabelecimento da relação jurídica) e mais restritos (declarações e comportamentos dotados de maior aderência ao aspecto formal). O

                                                                                                                           

294 S. FREUD, Die Zukunft einer Illusion (1927), trad. port. de J. Salomão (dir.), O Futuro de Uma Ilusão in

Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XXI, São Paulo, Imago, 2006, p. 39-40: “Quando digo que todas essas coisas são ilusões, devo definir o significado da palavra. Uma ilusão não é a mesma coisa que um erro; tampouco é necessariamente um erro. A crença de Aristóteles de que os insetos se desenvolvem do esterco (crença a que as pessoas ignorantes ainda se aferram) era um erro; assim como a crença de uma geração anterior de médicos de que a tabes dorsalis constitui resultado de excessos sexuais. Seria incorreto chamar esses erros de ilusões. Por outro lado, foi uma ilusão de Colombo acreditar que descobriu um novo caminho marítimo para as Índias. O papel desempenhado por seu desejo nesse erro é bastante claro. Pode-se descrever como ilusão a asserção feita por certos nacionalistas de que a raça indo-germânica é a única capaz de civilização, ou a crença, que só foi destruída pela psicanálise, de que as crianças são criaturas sem sexualidade. O que é característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos. (...) As ilusões não precisam ser necessariamente falsas, ou seja, irrealizáveis ou em contradição com a realidade. Por exemplo, uma moça de classe média pode ter a ilusão de que um princípie encantado aparecerá e se casará com ela. Isto é possível, e certos casos assim já ocorreram”.

295 I.KANT, Kritik der reinen Vernunft (2ª ed., 1787), trad. port. de V. Rohden e U. B. Moosburger, Crítica

da Razão Pura, São Paulo, Nova Cultural, 1999, p. 231: “A ilusão lógica, que consiste na simples imitação da forma da razão (a ilusão dos silogismos sofísticos), surge unicamente de uma falta de atenção à regra lógica. Por isso, tão logo esta é concentrada sobre o caso em questão, a ilusão desaparece completamente. A ilusão transcendental, ao contrário, não cessa, embora tenha já sido descoberta e sua nulidade tenha sido claramente discernida pela crítica transcendental. (por exemplo, a ilusão na proposição: o mundo tem que ter um começo no tempo). A causa disso é que em nossa razão (considerada subjetivamente como uma faculdade cognitiva humana) encontram-se regras fundamentais e máximas do seu uso, as quais possuem completamente o aspecto de princípios objetivos e pelos quais possuem completamente os apecto de princípios objetivos e pelos quais acontece que a necessidade subjetiva de uma certa conexão de nossos conceitos em benefício do entendimento é tomada por uma necessidade objetiva de determinação das coisas em si mesmas. Trata-se de uma ilusão que de modo algum pode ser evitada, assim como tampouco podemos evitar que o mar pareça mais alto no meio que na praia porque no primeiro caso vemo-lo mediante raios luminosos mais altos que no segundo, ou mais ainda, assim como o próprio astrônomo não pode evitar que a lua ao surgir pareça maior, se bem que ele não seja enganado por esta ilusão.

A dialética transcendental contentar-se-á, portanto, em descobrir a ilusão dos juízos transcendentes e ao mesmo tempoimpedir que ela engane (...)”.

suporte fático ostensivo constitui-se de um conjunto de índices de uma realidade inexistente. Tomados em conjunto, portanto, formam um signo cujo sentido isolado contrasta com o sentido global296 do agir negocial. A característica da simulação, precisamente, é esta dúplice e separada relevância da aparência que ilude e da aparência (que se mantém velada) do real297.

A aparência jurídica298, em termos gerais, é o resultado de uma pesquisa em torno do sentido da declaração negocial orientada pela boa-fé que o público nela deposita. É necessário interpretar e qualificar o negócio, reconduzindo-o a uma das categorias legalmente previstas. Esta operação se processa com base no exame de comportamentos e circunstâncias consideradas relevantes pelo direito, e resulta na determinação dos efeitos jurídicos recognoscíveis por um terceiro de boa-fé, objetivamente imputáveis aos declarantes. A adoção do ponto de vista de um terceiro de boa-fé de normal diligência299 permite a reconstrução do suporte fático concreto, reconduzível a um dos esquemas abstratos contemplados pelo ordenamento normativo300.

No que tange à ilusão negocial, as partes deliberadamente criam a aparência com o propósito de ludibriar a razão da comunidade. Estabelecem uma estrutura negocial complexa, constituída de declarações verbalizadas e não verbalizadas (comportamento

                                                                                                                           

296 M. CASELLA (Simulazione (diritto privato) (verbete) in Enciclopedia del diritto, v. XLII, Milano, Giuffrè,

1990, p. 599) cogita de divergência entre significado e sentido.

297 M. CASELLA, Simulazione cit. (nota 296), p. 599.

298 Sobre o tema, v. F. CARNELUTTI, Teoria generale del Diritto (1951), trad. port. de A. C. Ferreira, Teoria

Geral do Direito, São Paulo, LEJUS, 1999, p. 392. Tem-se considerado a aparência como fonte de legitimação formal dos direitos. É um simulacro criado pela própria ordem jurídica, consistente na forma sensível da realidade jurídica, ou seja, o modo como ela se manifesta exteriormente (R. MOSCHELLA, Contributo... cit., nota 102, p. 37). Funda-se no princípio de publicidade, o qual fundamenta a relevância do direito como efetivamente se realiza nas relações usuais, não no modo como ele deveria ser, segundo uma abordagem puramente ideal (R. MOSCHELLA, Contributo..., cit., nota 102, p. 39). Com base neste princípio, defende-se que aquele que age negocialmente, confiando em um fato exterior que, por força da lei ou da opinião pública, representa a forma de manifestação de determinada situação jurídica, merece ser protegido, mormente quando a confiança tenha sido depositada na situação de fato criada por quem a proteção desta não interessa.

É complexa a estrutura da aparência, que, mais que um parecer, pressupõe um transaparecer algo diverso do que é. “A aparência não é um parecer opaco, um puro fato que revela apenas a si próprio, uma vez que um fenômeno que se limita a revelar a si próprio não pode nunca ser aparente: isso se dá por aquilo que é; somente quanto um fenômeno, além de si próprio, faz aparecer um outro fenômeno, e o faz aparecer como real enquanto seja irreal, surge a aparência”(A. FALZEA, Apparenza in Enciclopedia del diritto, v. II, Milano, Giuffrè, 1958, p. 685).

299 M. CASELLA, Simulazione cit. (nota 296), p. 599. Conforme observa A. FALZEA (Apparenza... cit., nota

298, p. 697), a aparência não pode ser recognoscível como tal. A ausência da escusabilidade do erro exclui a aparência. O erro é capaz de dar azo à aparência quando, segundo os usos e costumes vigentes, não possa ser evitado pela normal diligência do “cidadão médio”.

concludente). Mantêm, porém, uma parcela de suas condutas em sigilo, prevenindo, assim, a recognoscibilidade social de determinados atos e fatos. Os simuladores criam um signo que somente pode ser adequadamente compreendido se considerado em sua totalidade. Ilustrativamente, dizem “estrela”, remetendo, assim, ao corpo celeste assim denominado, mas omitem um complemento. A palavra “estrela” passa a ter um sentido completamente diferente se inserida no vocábulo composto “estrela-do-mar”; e assume um sentido diverso se empregada na frase “Elizabeth Taylor foi uma estrela”. A estrela-do-mar e a estrela do cinema não se confundem com o corpo celeste denominado “estrela”; esta palavra, porém, é fatalmente interpretada incorretamente se os elementos que permitiriam precisar o ser correto sentido e o seu adequado sentido são excluídos da relação comunicacional estabelecida entre o locutor e o interlocutor301.

                                                                                                                           

301 Uma interessante concepção sobre o mecanismo de ocultação de parte do comportamento negocial que

notabiliza a simulação é a proposta por J. A. S. DEL NERO (Conversão Substancial... cit., nota 142, p. 58 ss.; 396-397). Para compreendermos as proposições do autor, é importante passarmos, em revista, o seu ponto de vista sobre a formação gradual da relação jurídica com base em um processo deliberativo, o qual seria composto das seguintes etapas: (a) conhecimento dos fatos e do direito; (b) eleição do fim que pretende alcançar-se; e (c) escolha do meio adequado para atingir o fim almejado.

J. A. S. DEL NERO esclarece que nada impediria, porém, que houvesse processos deliberativos parciais e sucessivos, integrados em um único processo deliberativo total. Em cada processo deliberativo parcial haveria um fim e um meio, sendo certo que este fim constituiria o meio do processo deliberativo parcial seguinte. Para ilustrar este raciocínio, que o autor considera inspirado pela “lógica da análise funcional”, ele enuncia a seguinte situação hipotética: “Suponha-se que: a) Tício tenha interesse em adquirir o direito subjetivo de propriedade (...) que recai sobre uma coisa, pertencente a Mévio, com todas as outras consequências, não puramente jurídicas, senão, também, econômicas e sociais, associadas a tal aquisição, satisfazendo, assim, tal interesse; b) Mévio tenha interesse em adquirir a disponibilidade jurídica (...) de uma quantia em dinheiro, pertencente a Tício, com todas as outras consequências, não puramente jurídicas, senão, também, econômicas e sociais, associadas a tal aquisição, satisfazendo, assim, tal interesse; c) Tício e Mévio conheçam o artigo 1.122 do Código Civil, que trata de um certo modelo jurídico-negocial denominado ‘contrato de compra-e-venda’, e o sentido jurídico de ‘obrigação’ (...). Buscando satisfazer tais interesses e conhecendo o modelo jurídico do contrato de compra-e-venda, aquela norma jurídica e o sentido jurídico de obrigação, Tício ‘assegura’ a Mévio que lhe pagará o preço, em dinheiro, e Mévio ‘assevera’ a Tício que lhe transferirá o domínio da coisa. Posteriormente, Tício paga o preço, em dinheiro, a Mévio, e Mévio transfere o domínio da coisa a Tício, satisfazendo-se os interesses de ambos”.

Diante do exemplo acima descrito, seria possível constatar a cisão do processo deliberativo total de Caio e Tício em quatro processos deliberativos parciais e sucessivos (relações entre meios e fins), a seguir indicados:

(a) processo deliberativo parcial I:

i. fim: instituição de um ente jurídico-negocial correspondente ao contrato de compra e venda; ii. meio: intercâmbio de declarações cujo conteúdo consistiria em comprar e vender;

(b) processo deliberativo parcial II:

i. fim: estabelecimento de obrigações de pagar o preço e transferir o domínio da coisa;

ii. meio: instituição de um ente jurídico-negocial correspondente ao contrato de compra e venda (fim do processo deliberativo I);

(c) processo deliberativo parcial III:

i. fim: cumprimento das obrigações de pagar o preço e de transferir o domínio da coisa;

ii. meio: estabelecimento de obrigações de pagar o preço e transferir o domínio da coisa (fim do processo deliberativo II);

A construção acima apresentada aproxima-se, de certa maneira, do pensamento de Segrè, segundo o qual a declaração simulada seria emitida em uma linguagem

convencional. A partir do texto de D. 34, 5, 3302, o autor afirma que quem diz algo diverso daquilo que quer não diz o que a voz significa, porque não o quer, nem o que quer, porque a voz não o diz303. Em vista disso, a simulação não poderia ser explicada com base em um conflito entre vontade e declaração, pois resultaria, na verdade, de uma divergência de interpretação decorrente do emprego, pelas partes, de uma linguagem convencional: “[s]e as partes A e B concordaram em declarar a compra e venda das árvores da floresta de A, substituindo sob este nome os cavalos de seu estábulo, estes usaram uma linguagem

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   

(d) processo deliberativo IV:

i. fim: aquisição do direito subjetivo de propriedade relativo à coisa (Tício), e aquisição da disponibilidade jurídica da quantia correspondente ao preço (Caio);

ii. meio: cumprimento das obrigações de pagar o preço e de transferir o domínio da coisa (fim do processo deliberativo III).

Em vista da análise das conclusões extraídas do exemplo acima colacionado, seria possível constatar, com J. A.S.DEL NERO, que a satisfação dos interesses jurídico-privados dependeria do desenvolvimento de quatro processos deliberativos sucessivos, os quais se articulariam no bojo de um processo deliberativo total. O processo deliberativo parcial I teria como fim a instituição de um ente que correspondesse a um modelo jurídico-negocial, e como meio a ação que correspondesse a tal modelo jurídico-negocial; o processo deliberativo parcial II teria como fim a determinação de consequências jurídicas, e como meio a instituição do modelo jurídico negocial; o processo deliberativo parcial III teria como fim a concretização das consequências jurídicas, e como meio a determinação destas; e, por fim, o processo deliberativo parcial IV teria como fim a satisfação do interesse, e como meio a concretização das consequências jurídicas.

Em tal contexto, denominar-se-iam: (a) “declaração jurídico-negocial”, a ação que corresponde a algum modelo jurídico-negocial; (b) “negócio jurídico”, o ente correspondente ao modelo jurídico-negocial; (c) “fim prático”, a satisfação do interesse posto ou aceito como último; (d) “fim jurídico”, a determinação das consequências jurídicas típicas do modelo jurídico-negocial; (e) “meio jurídico”, o negócio jurídico; (f) “eficácia jurídica”, a idoneidade do negócio jurídico para, por si, determinar as consequências jurídicas típicas do modelo jurídico-negocial; (f) “efetividade” e “inefetividade” do negócio jurídico, respectivamente, a satisfação e a não satisfação do interesse, isto é, a consecução, ou não, do fim prático.

Nos negócios simulados, ou se elegeria um só fim prático, ou não se elegeria nenhum. Eleito um só fim prático, as partes escolheriam, porém, dois meios jurídicos diversos: (a) um, em que todos os fins e todos os meios das etapas “I”, “II”, “III” e “IV” estariam fundados no processo deliberativo, mas o meio da etapa “I” não se exteriorizaria e não se tornaria recognoscível pelo público, embora fosse conhecido pelas partes – seria o negócio dissimulado; e (b) outro, em que apenas o meio da etapa “I” se exteriorizaria e seria recognoscível por terceiros, permanecendo todos os fins das etapas “I”, “II”, “III” e “IV” alheios ao processo deliberativo – seria o negócio dissimulado. “Nessas circunstâncias, na simulação relativa, ao contrário do que usualmente se afirma, as partes ‘querem’ ambos os negócios jurídicos – o simulado e o dissimulado –, justamente para que um, o simulado, encubra o outro, o dissimulado; as partes não ‘querem’ a eficácia jurídica e a efetividade dos dois, mas apenas a de um – a do negócio jurídico dissimulado – e, portanto, no tocante ao negócio jurídico simulado, embora ‘querendo-o’, não ‘querem’ nem a instituição das suas conseqüências jurídicas (eficácia jurídica) nem a concretização delas (efetividade do negócio jurídico simulado)”.

302 “In ambiguo sermone non utrumque dicimus, sed id dumtaxat quod volumus: itaque qui aliud dicit quam

vult, neque id dicit quod vox significat, quia non vult, neque id quod vult, quia id non loquitur”.

303 G. SEGRÈ, In matéria di simulazione nei negozi giuridici in Temi Emiliana, 1924, agora in Scritti

convencional”304. A simulação implicaria, nestes termos, uma incompatibilidade entre o dois possíveis sentidos da declaração, de modo que o sentido correto somente poderia ser apreendido após uma operação de tradução: onde se lia “árvore”, passa-se a ler “cavalo”.

Mas a recondução da simulação ao emprego de uma linguagem convencional não exaure a descrição do fenômeno, pois, como bem aponta Carresi, nem sempre decorre deste expediente a criação de uma aparência305. Nada obstante, este pensamento tem o mérito de vincular a simulação a um defeito de recognoscibilidade306.

Desta ideia, aliás, valer-se-ia Betti ao afirmar que, no caso do negócio simulado, a

valoração que acompanha a consciência do significado do ato (que não se confundiria

com a vontade de conteúdo) não se reportaria ao significado objetivo da declaração, mas a outro significado, convencionado secretamente pelas partes. A declaração simulada submeter-se-ia a uma dupla e incongruente valoração: uma objetiva, e outra subjetiva. A conclusão do negócio jurídico viria acompanhada de uma duplex interpretatio, de um lado, fundada nos pressupostos da ordem jurídico-positiva, e de outro, dependente do sentido subjetivo atribuídos, pelas partes, ao regulamento de interesses entre si estabelecido307.

Para Betti, o emprego de uma linguagem convencional permitiria, aos simuladores, decifrar o verdadeiro sentido do comportamento negocial, em um procedimento análogo à interpretação autêntica308. A declaração simulada deveria, pois, ser apreciada à luz do intento simulatório como se fosse uma proposição indicativa ou

alusiva cujo significado seria esclarecido através de uma conexa convenção

interpretativa309.

Ao defender que a simulação pressupõe um problema hermenêutico derivado do reconhecimento, pelo público, de um significado incompatível com o sentido da declaração negocial, Betti tangencia o quid do fenômeno simulatório; é curioso notar, porém, que,

                                                                                                                           

304 “Se le parti A e B hanno d’accordo dichiarato di comprare e vendere gli alberi della foresta di A.,

sottintendendo sotto questo nome i cavalli della sua scuderia (...)esse hanno usato un linguaggio convenzionale” (G. SEGRÈ , In matéria di simulazione... cit., nota 303, p. 427).

305 F.CARRESI, Apparenza e realtà del contratto in Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, Milano,

1963, p. 499.

306 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 402. 307 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 399-400. 308 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 400; 405. 309 E. BETTI, Teoria generale... cit. (nota 53), p. 399.

para fazê-lo, ele se distancia dos paradigmas de uma teoria baseada na inadequação da causa. A recognoscibilidade do negócio jurídico é um elemento que concerne menos à interação entre causa e intento prático que à avaliação acerca da legitimidade daquele, sob a perspectiva da sociedade.

A importância desta passagem da teoria bettiana (cuja peculiaridade não seria ignorada pela doutrina310) encontra o seu ápice no momento em que o autor afirma que a incompatibilidade entre a causa e o escopo prático típico não seria exteriormente

constatável311. Por conta disso, apenas quando o intento simulatório fosse descoberto, ou revelado, seria possível extirpar o elemento discrepante (como um ramo seco), retificá-lo ou substituí-lo; tudo isto se operaria com base em um procedimento de interpretação

corretiva312.

O público não tem acesso à totalidade do negócio jurídico; é por isso que ele se torna simulado. “Caracteriza o fenômeno simulatório o defeito de recognoscibilidade (...) é própria da simulação, de fato, a antítese entre a não realidade inter partes do negócio simulado, e a valoração objetivamente apreciável deste como ato verdadeiro e real”313. Levando em conta os índices de significação314 manifestados pelos simuladores, a

comunidade forma uma convicção errada sobre o sentido jurídico do comportamento negocial; assim, o interpreta e/ou o qualifica inapropriadamente.

No documento A simulação no código civil (páginas 105-111)