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Negócio indireto e negócio fiduciário

No documento A simulação no código civil (páginas 143-148)

Majoritariamente, define-se o negócio indireto como o negócio típico do qual as partes se utilizam com vistas a atingir resultados atípicos, ou pertencentes a outro tipo. Segundo Ascarelli, no negócio indireto, “as partes recorrem a um determinado negócio jurídico, mas o escopo prático visado não é, afinal, ao normalmente realizado através do negócio adotado, mas um escopo diverso, muitas vezes análogo àquele de outro negócio ou sem forma típica própria no sistema jurídico”413. Para Rubino, o negócio indireto proporciona um resultado jurídico alheio ao negócio utilizado, o qual substitui no todo ou em parte o efeito típico daquele414. Seriam exemplos de negócios indiretos o mandato para fins de cessão, doação o venda; a representação para fins de associação em participação ou arrendamento; o negotium mixtum cum donatione; a venda, permuta ou transação entre coerdeiros para fins de divisão; a liquidação para fins de fusão, e, no mais, todas as “sociedades anômalas”415.

                                                                                                                           

412 Por outro giro, diríamos que o abuso da autonomia privada somente poderia ser constatado quanto aos

negócios jurídicos que, sob todos os aspectos, fossem considerados inicialmente válidos. Quanto a estes, a invalidade não seria imanente, mas decorreria do abuso de direito. Pensando deste modo, logra-se compatibilizar o conteúdo do artigo 187 com as regras dedicadas à disciplina das invalidades, as quais careceriam de toda utilidade se atribuíssemos envergadura mais ampla àquele dispositivo. Nessa esteira, o exercício da posição jurídica dos simuladores não se mostra assistemático – logo, abusivo – pois, num momento logicamente anterior a norma lhe retira a validade.

413 T.ASCARELLI, Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado (1945), Campinas, Bookseller,

2001, p. 156.

414 D.RUBINO, Il negozio giuridico indiretto (1937), trad. esp. de L. Rodriguez-Arias, El Negocio Jurídico

Indireto, Madrid, Revista de Derecho Privado, 1953, p. 25.

Também se incluem na classe dos negócios indiretos os chamados negócios

fiduciários416. Com o negócio fiduciário, as partes celebram, além do negócio jurídico, um pacto adjeto (“pactum fiduciæ”) que vincula a sua eficácia à consecução de uma finalidade específica. Os elementos caracterizantes da fidúcia são a efetividade da transmissão e a possibilidade do abuso do fiduciário417. Ajusta-se, por exemplo, que a transmissão da propriedade deve servir como instrumento a que o adquirente realize atos de administração no interesse do alienante; ou, ainda, que a propriedade permaneça sob a titularidade do adquirente apenas enquanto perdurar a sua relação creditícia com o alienante418. A característica distintiva do negócio fiduciário é a de que este acarreta uma transmissão de propriedade cujo efeito é parcialmente neutralizado por uma convenção entre as partes419. As partes pretendem alcançar um determinado resultado prático que não decorreria, naturalmente, dos instrumentos formais empregados; os contraentes convencionam subtrair-se da eficácia coercitiva do negócio jurídico, dando voluntário cumprimento a obrigações que não decorreriam da sua estrutura típica420. Este contraste entre a dimensão funcional e a estrutural reflete uma excedência do meio sobre os fins421.

Tradicionalmente, a distinção doutrinária entre a simulação e o negócio indireto é estabelecida com base na vontade. Diz-se, neste particular, que, no caso do negócio indireto, as partes realizariam o que querem, pois não deixariam de submeter-se à disciplina típica do negócio celebrado. Os contraentes não desdenhariam os efeitos típicos do negócio jurídico adotado, pois a produção destes seria pressuposta à realização dos

                                                                                                                           

416 T.ASCARELLI, Problemas... cit. (nota 413), p. 159. Contra: L. CARIOTA FERRARA, I negozi fiduciari –

trasferimento cessione e girata a scopo di mandato e di garanzia. Processo fuiduciario (1933), Padova, CEDAM, 1978, p. 40; N. DISTASO, La simulazione... cit. (nota 40), p. 118-120.

417 C. M.BIANCA,Diritto Civile cit. (nota 63), p. 712. Ocorrendo o abuso do fiduciário, não restaria, ao

fiduciante, outra solução que não o pleito da reparação pelas perdas e danos (L. CARIOTA FERRARA, I negozi fiduciari... cit., nota 416, p. 17).

418 A fidúcia, assim descrita, é a de ascendência romana; caracteriza-se por uma limitação do escopo prático a

que se presta a transmissão do direito mediante um vínculo obrigacional. Distancia-se, assim, da fidúcia germânica, caracterizada pela transmissão de um direito que, por si, já seria limitado (limitação real), por força de uma condição resolutiva. Como explica L . CARIOTA-FERRARA (I negozi fiduciari... cit., nota 416, p. 10-17), a concepção germânica do negócio fiduciário não poderia ser acolhida, pois se funda numa presunção de que toda operação desta espécie submete-se a uma condição resolutiva. Por conseguinte, dever- se-ia preferir a formulação romana, de base obrigacional. No direito brasileiro, diferentemente, a fidúcia germânica parece ter se tornado possível a partir da positivação do direito real de propriedade fiduciária (artigos 1361 ss.)

419 T.ASCARELLI, Problemas... cit. (nota 413), p. 159.

420 N. LIPARI, Il negozio fiduciario, Milano, Giuffrè, 1971. p. 176. 421 L. CARIOTA FERRARA, I negozi fiduciari... cit. (nota 416), p. 40.

efeitos indiretos422. “Na simulação as partes, para alcançar o fim visado, declaram o que não corresponde à vontade delas, regulando, no entanto, clandestinamente, as próprias relações jurídicas de modo conforme à vontade real; no negócio indireto, ao contrário, o fim prático visado pelas partes é alcançado justamente por meio do negócio adotado e declarado”423. Sustenta-se, ademais, que a simulação não se prestaria a explicar a frequente extralegalidade (atipicidade) do escopo indireto; no que tange às hipóteses em que o resultado indireto fosse dotado de tipicidade (i.e. correspondesse aos efeitos de outro negócio típico), não haveria razões para crer-se que o negócio-meio não seria querido, pois quem quisesse os resultados indiretos também haveriam de querer os meios necessários alcançá-lo424.

Relativamente ao negócio fiduciário, a doutrina diverge. Para alguns, o negócio fiduciário seria uma espécie de negócio simulado, uma vez que a limitação imposta à transmissão efetuada evidenciaria que ele jamais teria sido querido425. Em sentido oposto, postula-se que a diferença entre o negócio fiduciário e o negócio simulado residiria na vontade, presente no primeiro, mas ausente no segundo; o negócio fiduciário seria real, porque querido, ao passo que o negócio simulado seria irreal, pois carente de vontade426. Do ponto de vista da teoria da declaração, o confronto em tela dar-se-ia com fulcro no momento em que ocorreria a “destruição” da declaração ostensiva; enquanto na simulação esta se daria ab initio – excluindo toda a efetividade da transmissão ajustada –, no negócio fiduciário ela se processaria em momento posterior, assumindo a feição de uma modificação ex nunc dos termos convencionados427. Aduz-se, ainda, que a alteridade do negócio fiduciário em face do negócio simulado decorreria da irrelevância externa do “pactum fiduciæ”, o qual não impediria a efetividade da transmissão efetuada em favor do fiduciário, o qual tornar-se-ia, erga omnes, titular do direito real atinente ao bem que lhe fosse conferido428.

Diante desse rico quadro doutrinário, parece-nos que a distinção entre a simulação, de um lado, e os negócios indireto e fiduciário, de outro, possa ser estabelecida

                                                                                                                           

422 T.ASCARELLI, Problemas... cit. (nota 413), p. 179. 423 T.ASCARELLI, Problemas... cit. (nota 413), p. 179.

424 D.RUBINO, Il negozio giuridico indiretto cit. (nota 414), p. 76-77. 425 G.STOLFI, Teoria del Negocio Jurídico cit. cit. (nota 20), p. 154, nota 3. 426 M. A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral... cit. (nota 20), p. 175-179. 427 L. CARIOTA FERRARA, I negozi fiduciari... cit. (nota 416), p. 43-51. 428 N. DISTASO, La simulazione... cit. (nota 40), p. 127-131.

com base naquele elemento que, segundo temos defendido, constitui a essência da simulação: a ilusão negocial.

A produção de efeitos indiretos por um negócio jurídico poderia bem implicar a atipicidade da sua causa concreta, ou, a depender da gravidade do desvio, justificar a requalificação. No primeiro caso, somente, caberia falar de negócio indireto, sendo certo que a denominação assim empregada não passaria de um rótulo dado a situações manejáveis mediante técnicas hermenêuticas. No segundo caso, a designação original do negócio jurídico perderia relevância em virtude da nova qualificação jurídica que lhe seria atribuída, razão pela qual seus resultados práticos já não se poderiam considerar indiretos. Dessa feita, em vista do atual estado da doutrina, pode-se dizer que o negócio indireto, propriamente dito, reduz-se a uma espécie de negócio atípico.

É de se notar que os autores que se debruçaram sobre o tema do negócio indireto, no passado, recorrentemente descreviam o fenômeno com base em uma incongruência entre o escopo prático e o negócio “adotado” pelas partes. Ora, o que seria o negócio “adotado”? Seria aquele indicado no título ou no preâmbulo do instrumento? Ainda que se pudesse crer, no passado, que a denominação do negócio jurídico, ou mais precisamente, a estipulação literal do tipo, realizada pelas partes, fosse suficiente para a “adoção” de um determinado esquema negocial, deve-se reconhecer que tal entendimento encontra-se superado pela civilística moderna. Como salienta Santoro-Passarelli, os fins ulteriores perseguidos pelas partes do negócio indireto não justificam o caracterização deste como categoria jurídica autônoma429. Com inatacável precisão, Bianca sublinha que os referidos fins ulteriores agem sobre a causa concreta, tornando-a incompatível com a causa abstrata eleita pelos contraentes. Esta incompatibilidade, porém, não dura muito tempo pois, como se sabe, a causa concreta orienta a qualificação da relação jurídica, logo, determina o seu enquadramento típico. Por conseguinte, é forçosa a conclusão de que, se o negócio indireto desempenha a função prático-individual de outro negócio jurídico típico, é ao tipo deste que deverá ser reconduzido; haveria, em tais circunstâncias, mera falsa qualificação. Por outro lado, se os resultados práticos buscados pelos particulares fossem absolutamente

                                                                                                                           

inovadores, o negócio indireto haveria de reputar-se simplesmente atípico, diante da denominação indicada no instrumento430.

Como se extrai da descrição precedente, o negócio indireto não é capaz de iludir a fé pública. Não há, aí, engano ou falta de recognoscibilidade. O mesmo, assinale-se, ocorre com o negócio fiduciário431. Enquanto o alienante simulado permanece titular do direito de que aparenta dispor, o alienante fiduciário efetivamente perde a condição de proprietário432. A eficácia da transmissão efetuada pelo fiduciante é temperada por um componente obrigacional cuja operatividade compõe a causa concreta. O fiduciário é proprietário dos bens que lhe são transferidos; contudo, não pode usar, fruir, e gozar de tais bens, de maneira discricionária. Encontra-se obrigado a exercer tais faculdades segundo diretivas previamente definidas. O uso, gozo, e fruição, permanecem típicos; o que torna o negócio, como um todo, atípico, é o “pactum fiduciæ”433.

Vale registrar, por fim, que a despeito da distinção acima traçada, não é impossível que o negócio simulado tenha por fim dissimular o negócio indireto ou o negócio fiduciário. Isto ocorre sempre que os fins ulteriores ou o “pactum fiduciæ” não se tornem imediatamente recognoscíveis pelo público. Neste particular, Bianca ressalta que “é usual que as partes não qualifiquem abertamente a alienação como fiduciária, mas a mascarem sob o esquema da venda , simulando a prestação do preço”434. Quando isto sucede, a comunidade encontra-se fadada a identificar um negócio jurídico absolutamente típico, sem ter condições de identificar o pacto fiduciário dissimulado. Mutatis mutandis, é possível que o negócio indireto ou o negócio fiduciário sejam simulados, absoluta ou relativamente, bastando que as partes explicitamente formalizem o negócio jurídico sob tais roupagens, mantendo, contudo, em sigilo, a causa concreta de um negócio típico, ou atípico, que não coincida com a causa abstrata (indireta ou fiduciária) submetida à apreciação do público.

                                                                                                                           

430 C. M.BIANCA, Diritto Civile cit. (nota 63), p. 486.

431 A. VON TUHR, Der allgemeine Teil des deutschen bürgerlichen Rechts, trad. esp. de T. Ravà, Derecho

Civil – Teoria General del Derecho Civil Aleman (1910-1918), v. II – Los Hechos Jurídicos, Madrid, Marcial Pons, 2005, p. 506.

432 C. M.BIANCA, Diritto Civile cit. (nota 63), p. 713.

433 Observe-se, porém, que tal atipicidade não surge nos negócios fiduciários legalmente previstos, como, por

exemplo, a alienação fiduciária em garantia (tipificada e regulada pelo Decreto-Lei nº 911/69); naqueles, a tipicidade é integral.

No documento A simulação no código civil (páginas 143-148)