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O ponto de relevância hermenêutica do negócio simulado

No documento A simulação no código civil (páginas 99-105)

§ 4 A ILUSÃO NEGOCIAL

15. O ponto de relevância hermenêutica do negócio simulado

Para que um comportamento privado seja objeto de interpretação jurídica, é necessário que ele apresente a forma requerida à sua qualificação como negócio jurídico. Seria inútil pretender interpretar, juridicamente, um comportamento que sequer remetesse a um ato dotado de relevância normativa. Mas, se ao menos a imagem do negócio subsiste, sujeita-se à interpretação o comportamento privado exteriormente recognoscível no mundo social, não a vontade psicológica que não tenha sido adequadamente objetivada. Quando se fala de recognoscibilidade social, deve-se entender que o negócio jurídico seja recognoscível por aqueles em face dos quais ele deve ser tido como juridicamente relevante. Em geral o negócio jurídico deve tornar-se recognoscível à contraparte do declarante, ou à comunidade que o cerca, quando não haja uma contraparte. Existe, portanto, um ponto de relevância para o tratamento interpretativo – ponto de relevância

hermenêutica –, a qual o hermeneuta deve investigar com vistas a identificar a sede em que

deve assentar-se a eficácia do negócio jurídico278.

Relativamente ao negócio simulado, existe, por certo, uma dimensão do comportamento negocial que interessa às partes, notadamente a convenção associativa que tem por objeto a difusão da aparência enganadora. Nada obstante, o ponto de relevância hermenêutica a ser considerado para o diagnóstico da simulação não se limita à

                                                                                                                           

277 G. FURGIUELE, Della simulazione... cit. (nota 144), p. 58.

278 E.BETTI, Interpretazione della legge e degli atti giuridici (teoria generale e dogmatica), 2ª ed., Milano,

recognoscibilidade, pela contraparte, da declaração simulada emitida pelo declarante. Como vimos acima, a dissociação entre o irreal e o irreal depende do engano do público; consequentemente, a investigação em torno do fenômeno simulatório deve levar em conta, igualmente, a (não) recognoscibilidade, pelos terceiros, do efetivo conteúdo do regulamento de interesses estabelecido entre os contraentes. Dizendo de outro modo, a interpretação do negócio simulado, direcionada a atestar esta sua qualidade, deve se orientada, de um lado, pela recognoscibilidade, pelos figurantes, do programa simulatório entre eles convencionado; e, de doutro lado, pela não recognoscibilidade, pelo público, deste mesmo programa.

A relevância do ponto de vista dos terceiros para a qualificação do engano que caracteriza a simulação é confirmada pelo direito positivo. O artigo 167 descreve o negócio simulado como não verdadeiro. No negócio simulado, o juízo deôntico formulado pelas partes se afigura descolado da verdade279.

Tem-se assinalado, contudo, que o negócio jurídico, enquanto expressão de um

dever-ser, não se sujeita ao tribunal da verdade. Isto é, o negócio jurídico não expressa

                                                                                                                           

279 A verdade, numa conpeção nominal, consiste no acordo do conhecimento com o objeto (I. KANT, Logik –

Ein Handbuch zu Vorlesungen, trad. port. de F. Castilho, Manual dos cursos de Lógica Geral, 2ª ed., Campinas, Unicamp, 2002, p. 101 ss.) Esta dimensão da verdade denomina-se material, pois depende das notas particulares do objeto, ou seja, de sua essência real. É impossível formular enunciados universais sobre a verdade material, a qual deve ser sempre verificada e testada caso a caso. Entende-se por essência real, pois, o conjunto de notas características que se extrai e se conjuga em confronto com a experiência.

A verdade material (adaequatio rei et intellectus) é estabelecida por um juízo, mas pode derivar da conformidade da mente ao objeto (adaequatio intellectus ad rem), ou da conformidade das coisas à mente (adaequatio rei ad intellectus). Na primeira hipótese, o pensamento amolda-se ao existente; o ideal acopla-se ao real, de modo que a inteligência torne-se apta a descrever que o que é é, e o que é assim é assim. Na segunda hipótese, depara-se com uma modelação da realidade ao pensamento; esta, igualmente, docorre da razão, porém, o caminho é inverso ao pressuposto pela concepção clássica, antes descrito. A inteligência possui uma precompreensão acerca da realidade, e, posteriormente, compara-a com o objeto particular; a conformidade surgirá se a coisa for aquilo que dela se tiver pensado. Este encontro leva o sujeito a afirmar que a coisa é verdadeira, e.g. um verdadeiro amigo, um verdadeiro heroi, um verdadeiro gênio. A primeira verdade poder-se-ia denominar gnoseológica; a segundo, ontológica. (A. JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negócio Jurídico e Declaração Negocial (Noções gerais e formação da declaração negocial), Tese (Titularidade) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986, p. 169-170).

Condição de todo conhecimento, inclusive daquele fundado na verdade material, é a verdade formal. É desta, que abstrai completamente o conteúdo do objeto, que trata a Ciência Lógica, e seus enunciados universais, como os princípios da identidade, da razão suficiente, e do terceiro excluído (I. KANT, Manual... cit., supra,

p. 105). “No campo da Lógica formal, o que importa é a consequência rigorosa das proposições entre si, e não a adequação de seus enunciados com os objetos a que se referem” (M. REALE, Filosofia do Direito, 20ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 28). Tanto a verdade formal, quanto a verdade material, a princípio, consistem em uma relação da qual faz parte o conhecimento; relação com ele próprio (verdade formal), ou com o objeto (verdade material). Não é a verdade, portanto, um juízo de valor, mas a expressão de uma relação objetiva.

uma relação objetiva passível de ser qualificada como verdadeira ou falsa280. Não são poucos – reconheça-se – os esforços realizados em prol da submissão do direito aos ditames da lógica modal deôntica281. Nada obstante, o fato de a norma jurídica não comunicar um estado de coisas (i.e. não conter uma asserção), mas estabelecer uma

prescrição, em geral, sob a forma de um juízo hipotético (Se A é, B deve ser), tem

frustrado a pretensão da maioria dos lógicos, que, até o presente, esbarram nos óbices impostos pela lei de Hume282 e pelo dilema de Jørgensen283. A lógica das normas, apesar

                                                                                                                           

280 A. GENTILI, Il contratto simulato... cit. (nota 47), p. 257: “Longe de ser um contrato aparente (rectius uma

aparência de contrato), o negócio simulado é, como todo juízo dispositivo, insuscetível de verificação (verdadeira ou falsa potendo ser a asserção da sua realidade histórica, mas não ou valor que lhe é atribuído, catalogável apenas em termos de validade). A sua pretensa ‘aparência’, em corretos termos lógicos e jurídicos, não exprime mais que um vício subjacente ao valor específico do contrato, ou melhor, e mais precisamente, a inadequação que aquele juízo revela com respeito aos interesses das partes. O engano implícito na feliz fórmula do contrato aparente cai tão logo a aparência se refira à realidade incontroversível do juízo”. Tradução livre; no original: “Lungi dall’essere un contratto apparente (rectius un’aparenza di contratto) il negozio simulato è, come ogni giudizio dispositivo, insuscettibile di verificazione (vera o falsa potendo essere l’asserzione della sua realtà storica, ma non il valore attribuitole, catalogabile solo in termini di validità). La sua pretesa ‘apparenza’, in corretti termini logici e giuridici non esprime altro che un vizio sotteso al valore specifico del contratto, ovvero e più precisamente, l’inadeguatezza che quel giudizio dispositivo rivela rispetto agli interessi delle parti. L’inganno implicito nella fortunata formula del contratto apparente cade subito, solo che l’apparenza si riferisca alla realtà incontrovertibile del giudizio”.

Assinala, ainda, a propósito, R.SCHREIBER, Logik des Rechts (1962), trad. esp. de E. Valdés, Lógica del Derecho, Fontamara, Ciudad de México, 1991, p. 121-122: “Las normas jurídicas, sin embargo, no pueden ser valoradas de la misma manera que las proposiciones indicativas, es decir como verdaderias o falsas. Las normas jurídicas no puden ser verificadas recurriendo directamente a la realidad. Para saber si una proposición es jurídicamente debida, habrá que tener en cuenta el procedimiento especial según el cual las normas jurídicas obtienes validez”.

No mesmo sentido, A.ROSS, Directives and Norms, trad. esp. de J. S.-P. Hierro, Lógica de las normas, Madrid, Tecnos, 1971, p. 98: “Es obvio, y hasta donde alcanza mi conocimiento aceptado, que los directivos carecen de valor de verdad (no son verdaderos ni falsos), en la mayoría de los casos con seguridad. No puedo imaginar que alguien diga que la orden ‘Pedro, cierra la puerta’ o la regla de ajedrez ‘En un solo movimiento el rey sólo puede moverse un puesto’ puede ser verdadera o falsa. De la regla de ajedrez puede decirse que existe (o está vigente) en una cierta comunidad de dos jugadores; esta afirmación será verdadera o falsa. Pero, como es obvio, esto no es lo mismo que adscribir valores de verdad a las normas mismas, igual que no puede decirse que los cisnes negros tengan un valor de verdad simplemente porque la afirmación de que existen cisnes negros tenga un valor de verdad”.

281 Sobre o tema, v. T. MAZZARESE, Logica deontica e linguaggio giuridico, Padova, CEDAM, 1989, passim;

G. KALINOWSKI, La logique des normes (1972), trad. esp. de J. R. Capella, Logica del discurso normativo, Madrid, Tecnos, 1975, passim, especialmente p. 20 ss.

282 D. HUME, A Treatise of Human Nature (1739), trad. port. de D. Danowiski, Tratado da Natureza Humana

– Uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais, 2ª ed., São Paulo, UNESP, 2009, p. 498; 509: “A razão é a descoberta da verdade ou da falsidade. A verdade e a falsidade consistem no acordo e no desacordo seja quanto à relação real de idéias, seja quanto à existência e aos fatos reais. Portanto, aquilo que não for suscetível desse acordo ou desacordo será incapaz de ser verdadeiro ou falso, e nunca poderá ser objeto de nossa razão. Ora, é evidente que nossas paixões, volições e ações são incapazes de tal acordo ou desacordo, já que são fatos e realidades originais, completos em si mesmos, e não implicam nenhuma referência a outras paixões, volições e ações. É impossível, portanto, declará-las verdadeiras ou falsas, contrárias ou conforme à razão. (...) Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só

dos notáveis avanços observados no campo da lógica jurídica, parece não ter ido muito além da lógica das proposições normativas, como profetizara o último Kelsen284.

Dessa feita, quanto ao negócio jurídico, expressão de um dever-ser, não se pode estabelecer qualquer relação de verdade – ou inverdade –, seja formal ou material. Nada obsta, porém, a que se formule um juízo descritivo sobre o negócio jurídico, segundo o qual se possa afirmar tratar-se, por exemplo, de um verdadeiro contrato de compra e venda ou de um falso contrato de compra e venda. Esse tipo de proposição seria o que, normalmente, o público formularia diante de um negócio jurídico, e, como tal, poderia ser verdadeiro ou falso. Enquanto as partes diriam que deve-ser, o público diria que é285.

A distinção entre o negócio jurídico tomado pela perspectiva das partes e do público coincide, de certo modo, com a diferenciação traçada por Kelsen entre norma e

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   

proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece totalmente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes”.

283 Sobre o tema, v. A. ROSS, Lógica... cit. (nota 280), p. 130-131: “Por una parte, se concibe

tradicionalmente que la lógica se ocupa de sentencias en la medida en que expresan proposiciones, y especialmente de la relación entre los valores de verdad de las diferentes proposiciones. Las conectivas lógicas se definen por medio de tablas de verdad que determinan sin ambigüedad el valor de verdad de una expresión molecular como función de sus expresiones atómicas constituyentes. Por tanto, inferir lógicamente significa poner en relación el valor de verdad de una sentencia con el valor de verdad de otra u otras sentencias. (Por simplicidad, y puesto que es usual aunque no correcto, hablaré de 'sen- tencias' en lugar de 'proposiciones', expresadas por sentencias.) Inferir lógicamente S2, a partir de S1, significa que si S1 es verdadera, S2 también es verdadera. Cualquier inferencia lógica puede formularse como un juicio hipotético de la forma: Si las premisas P1, P2, ..., Pn, son verdaderas, entonces la conclusión C también es verdadera. De lo que se sigue que una secuencia de sentencias puede considerarse como una inferencia lógica solamente a condición de que las premisas consistan exclusivamente en sentencias que posean valor de verdad, y que, por tanto, sean o verdaderas o falsas. Puesto que los directivos no tienen valor de verdad (...), tal condición no se cumple si entre las premisas hay sentencias que expresen directivos, lo que significa que las inferencias deónticas quedan excluidas. Ciertamente, es posible construir reglas de transformación según las cuales se pueda decir que un directivo D2 se ha inferido a partir de otro directivo D1. Pero, puesto que D1 y D2 son sentencias que carecen de valor de verdad, no es posible interpretar esas reglas ni explicar qué quiere decir que D2 se sigue de D1. (...) Dicho brevemente, el dilema consiste en esto: por el modo como tradicionalmente

se entiende el concepto ‘inferencia lógica’, parece que no tiene sentido hablar de ‘inferencia deóntica’; pero, por otra parte, parece obvio que tales inferencias tienen lugar”.

284 H. KELSEN, Allgemeine Theorie der Normen (1979), trad. port. de J. F. Duarte, Teoria Geral das Normas,

Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris, 1986, p. 207.

285 Precisas, a respeito desta questão, são as palavras de A.ROSS (Lógica... cit., nota 280, p. 99): “La cuestión

de si un directivo puede tener valor de verdad es independiente de la cuestión de si es posible tener un conocimiento de las cualidades de validez morales. Que un directivo no puede tener valor de verdad se sigue analíticamente del significado de ‘directivo’ y de ‘valor de verdad’. La diferencia fundamental entre una proposición y un directivo se halla, como hemos visto, a nivel semántico. Ambos describen un tema (en el caso del directivo, una ideacción) que la proposición concibe como real (‘así es’) y el directivo presenta como forma de conducta (‘así debe ser’). Decir de una expresión que es verdadera es, precisamente, aceptar que ‘así es’. Por tanto, sólo las proposiciones pueden ser verdaderas”.

enunciado. Tal discriminação parte da separação entre a significação de um ato de vontade

e a significação de um ato de pensar. “A proposição cuja significação é um enunciado,

descreve alguma coisa. É verdadeira ou falsa; quer dizer: corresponde ou não ao que ela

descreve. A proposição cuja significação é uma norma pre-screve alguma coisa. Nem é verdadeira nem falsa”. A função do enunciado é a de transmitir um saber; a da norma é a de submeter a vontade286.

Embora pensar e querer sejam funções diferentes, podem encontrar-se interligados. Toda proposição cujo sentido é uma norma (um dever-ser) precisa, antes de ser estabelecida, ser pensada. O ato de pensamento é anterior ao ato de vontade287. Do mesmo modo, um ato de pensamento surge na esfera psíquica do destinatário da norma, que, antes de aderir àquela (reconhecendo sua validade), deve entender a sua específica significação normativa. “[Q]uando recebo uma ordem posso constatar, por auto- observação, que percebo interiormente a declaração de outrem a mim dirigida, i.e. escuto certas palavras pronunciadas, vejo um gesto ou caracteres impressos ou escritos, e que,

além disso, acontece algo em mim que é diferente desse ouvir e desse ver, a saber: entendo

a declaração ouvida ou vista, e precisamente entendo como ordem e não como enunciado; isto significa que apreendo o sentido que foi expresso como o enunciado, o sentido: que eu

devo conduzir-me de um determinado modo”288.

Ocorre que, para o destinatário da norma, o enunciado, fruto do ato de pensar, dá origem a uma prescrição autônoma (“devo fazer isto”). Este processo psíquico, porém, não poderia ser observado quanto àqueles que, não sendo destinatários diretos da norma, limitassem-se a formar uma representação mental acerca da significação da declaração emitida. Assim parece suceder com os que ocupam a posição de terceiro com relação a um específico negócio jurídico, os quais, tomando conhecimento da declaração formulada por outrem, identificam o seu caráter deôntico mediante a formulação de um enunciado, isto é, um ato de pensamento, não de vontade. Concluem, assim, que “Caio e Tício celebraram um contrato de compra e venda”. Esta proposição, de sentido meramente indicativo, é um juízo da ordem do ser dirigido à existência ideal do juízo deôntico estabelecido entre Caio

                                                                                                                           

286 H. KELSEN, Teoria Geral... cit. (nota 284), p. 208. 287 H. KELSEN, Teoria Geral... cit. (nota 284), p. 211. 288 H. KELSEN, Teoria Geral... cit. (nota 284), p. 45.

e Tício. Aquele enunciado, embora tenha por objeto a validade do negócio jurídico, pretende ser verdadeiro, não válido.

A verdade, enfatiza Kelsen, é uma qualidade do enunciado; não se equipara, pois, à validade da norma, que não é uma qualidade desta, mas a sua própria existência. Um enunciado pode ser falso, e, mesmo assim, não deixar de ser enunciado. Isto não ocorre com a norma, que, sem validade, perde sua juridicidade. O enunciado sobre uma norma é verdadeiro se a norma vale; será falso se não valer289; aquele pode, pois, ser verificado, na medida em que se disponha de provas de que a norma foi posta e não teve sua validade cessada por um ato de derrogação.

Em vista do exposto, a inverdade que o artigo 167 atribui ao negócio simulado pode ser concebida da seguinte maneira: é falso o enunciado formulado pelo público acerca da existência ideal do negócio jurídico. Não será falso o negócio simulado em si, porque não pode ser predicado como tal; nem faltará verdade ao enunciado formulado pelos simuladores, previamente à prática do ato de vontade, pois este corresponderá precisamente ao estabelecimento de um dever-ser direcionado à criação da aparência negocial, i.e. à promoção de uma incorreta representação da realidade na dimensão psíquica do público. Em face disso, uma vez celebrado o negócio jurídico, a significação deôntica que ele encerra não corresponderá ao sentido indicativo que o correlato enunciado, formulado pelo público, expressa.

Neste passo, percebe-se que a tese declaracionista de viés semiótico, defendida sobretudo por Gentili290, requer um adendo. Tal construção baseia-se na suposição de que, no negócio simulado, coexistiriam duas regras, uma destinada a valer entre as partes, outra destinada a valer perante terceiros. Seria equivocado, contudo, admitir que o negócio jurídico pudesse ser fonte de regras que, conquanto compartilhassem de um só

âmbito interno de validade (a relação jurídica entre as partes), afigurassem-se antagônicas.

Nem seria correto conceber que uma regra pudesse ser criada para valer apenas perante terceiros, pois o que vale para estes (rectius: influencia a sua esfera de direito) é sempre

                                                                                                                           

289 H. KELSEN, Teoria Geral... cit. (nota 284), p. 228: “Se um manual que descreve o Direito Penal do Estado

X contém a proposição: ‘Se um homem prometeu casamento a uma mulher, e não cumpriu sua promessa, e se além do não-cumprimento da promessa não reparou os prejuízos causados à mulher, segundo o Direito do Estado X, deve ser dirigida execução forçada (...)”, então esta proposição é verdadeira se vale uma norma deste conteúdo, e ela vale se foi estabelecida pela via legislativa ou do Costume”.

aquilo que vale para os contraentes. A eficácia externa do negócio jurídico não é mais que um desdobramento da sua eficácia interna, pois os terceiros são destinatários indiretos da declaração.

Em face disso, as regras criadas pelos simuladores não seriam dos tipos R1= S1

não deve a S2 e R2 =S1 deve a S2, mas apenas perante terceiros, em que “R” significa

regra, e “S” significa sujeito; mas dos tipos tipo R1= S1 não deve a S2 e R2= S1 deve

aparentar dever a S2. Entre estas regras não haveria antinomia, pois possuiriam conteúdos

distintos, que não se contraporiam, mas se complementariam291. No curso da simulação, porém, surgiria uma terceira proposição, não mais uma regra, mas um enunciado: E=É fato

que S1 deve a S2. Tal enunciado seria formulado pelo público, com base no material

interpretativo trazido ao seu conhecimento, e, precisamente por não coincidir com o sentido de R1, demarcaria a concretização da simulação.

O direito, portanto, reconhece que o negócio simulado sujeita-se a uma dupla valoração – não duas valorações realizadas pelos contraentes, mas uma de autoria destes e outra imputável aos terceiros – e, ao aludir à inverdade do negócio jurídico, assume esta dialética hermenêutica como essência da simulação.

No documento A simulação no código civil (páginas 99-105)