• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4: NUMISMÁTICA 164 

4.1 URSTAAT: DENTRO E FORA 165 

4.1.2 A dobra exterior: razão – raiz – ciência 174 

A relação de exterioridade da máquina de guerra só pode ser entendida quando a forma-Estado está em pleno funcionamento, uma vez que não há relação temporal ou mesmo espacial de oposição ou desenvolvimento. É que também as linhas de fuga não param de se insinuar como devir revolucionário do socius. E como se viu, são elas que são primeiras em todo agenciamento coletivo.

Não se deve entender essa primazia das linhas de fuga cronologicamente, mas tampouco no sentido de uma eterna generalidade. É, antes, o fato e o direito do intempestivo; um tempo não pulsado, uma hecceidade como um vento que se levanta, uma meia-noite, um meio-dia. Pois as reterritorializações se fazem ao mesmo tempo: monetária, sobre novos circuitos; rural, sobre novos modos de exploração; urbana, sobre novas funções etc. É quando se faz uma acumulação de todas essas reterritorializações, que se destaca, então, uma “classe” que dela se beneficia particularmente, capaz de homogeneizá-la e sobrecodificar todos seus segmentos. Em última instância, seria preciso distinguir os movimentos de massas, de toda natureza, com seus respectivos coeficientes de velocidade, e as estabilizações de classes, com seus segmentos distribuídos na reterritorialização de conjunto – a mesma coisa agindo como massa e como classe, mas sobre duas linhas diferentes emaranhadas, com contornos que não coincidem414.

Há mais uma vez pressuposição recíproca no que concerne também às relações de forças dos jogos de poder e as formas que ensejam. Por isso é que se vai encontrar já desde sempre esta captura do número enquanto métrica no âmago do agenciamento despótico.

De outro lado, as relações com o que constitui sua própria exterioridade no que concerne à forma-Estado já estão presentes desde sempre, operando uma forma de apreensão do mundo que se constitui em saberes que lhes são correspondentes. São estes estratos que dão testemunho de uma imagem do pensamento que conjura a diferença já

       414

no nível matemático e científico no momento mesmo da constituição destes saberes. É no mesmo lance em que se constitui o plano de organização, que nele se vê operar a territorialização lógica, a geometria que institui a polis e todas suas leis.

Mas se a potência numerante já está aí presente, deve ela ser submetida aos mecanismos de extração de sua função nômade (desterritorializante), conjurando-se a máquina de guerra nos aparelhos de captura do Estado. É a tese contratual que opera estas extrações de poder, desde a política aristotélica, uma vez que está sempre submetida a finalidades que inserem a transcendência no plano de organização separando-se os corpos de suas potências.

E é bem por isso que toda a doutrina dos juízos está em consonância com esta dívida infinita, da qual nos fala Nietzsche. É na mesma operação que surge a forma- Estado e a analogia como senso comum no juízo.

Os elementos de uma doutrina do juízo supõem que os deuses concedam

lotes aos homens, e que os homens, segundo seus lotes, sejam

apropriados para tal ou qual forma, pra tal ou qual fim orgânico. A qual forma meu lote me destina? Mas também: será que meu lote corresponde à forma que eu almejo? Eis o essencial do juízo: a existência recortada em lotes, os afectos distribuídos em lotes são referidos a formas superiores (...). A doutrina do juízo, no seu início, necessita do juízo equivocado do homem tanto quanto do juízo formal de Deus. Uma última bifurcação se produz com o cristianismo: não há mais lotes, pois são nossos juízos que compõem nosso único lote, e tampouco há forma, pois é o juízo de Deus que constitui a forma infinita. No limite, lotear-se a si mesmo e punir-se a si mesmo tornam-se as características do novo juízo ou do trágico moderno. Há somente um juízo, e todo juízo incide sobre um juízo415.

Se, como se viu, a forma-Estado se beneficiará de uma imagem do pensamento que remete ao Um como fundação, tal somente é possível pela operação da extração de potência. Ora, em matemática, é justamente a extração de raiz que possibilita esta despotenciação. É uma operação curiosa do pensamento que coloca no fundamento a extração!

Daí todo o caminho do negativo (inclusive a dialética, como visto), que restitui ao senso comum e ao bom senso seu status científico. Mesmo a política como ciência só é capaz de operar sobre tais bases, tendo-se sempre dificuldade em pensar a diferença como potência e como afirmação. Disso resulta todo o Direito que arboriza seus institutos cuja supremacia está de alto a baixo atravessada pela justa medida como forma eminente da própria justiça.

       415

Percebe-se que é esta tendência da forma-Estado em fazer da representação sua imagem do pensamento, uma vez que a captura destitui o pensamento de suas intensidades moleculares, ao mesmo tempo em que institui o hilemorfismo como modelo atual ao qual toda diferença deve ser aprisionada no conceito que só lhe permite ser pensada na forma da oposição.

A dobre molar tem duas consequências imediatas para o pensamento: o cancelamente de todas as intensidades no pensamento, e o estabelecimento do hilemorfismo na imagem do pensamento Estado. Enquanto as multiplicidades do pensamento são convertidas de contínuas em descontínuas, do ordinal em métricas, toda intensidade no pensamento é anulada, heterogeneidades se tornam homogêneas, e pensar se torna um sistema fechado onde pensar opera próximo-do- equilíbrio e uma regulação homeostática. Ademais, com o fechamento do virtual e das modalidades intensivas, o pensamento-Estado é capturado num hilemorfismo no qual o virtual e as matérias intensivas do pensamento são consideradas passivas, e a imagem do pensamento- Estado não pode pensar a imanência, as intensidades, a diferença em si mesma, ou as multiplicidades contínuas, só pode pensar a transcendência, a unidade e a identidade do mesmo. As consequências que se seguem à anulação das intensidades no hilemorfismo na imagem do pensamento-Estado é que ambos o virtual e o intensivo problemático, são a imposição analítica do plano de organização ao problema como aplicação de uma grade ao conjunto dos fatos. 416

Somente dentro dos quadros da ciência régia é que tais condições de possibilidade se efetuam num sistema de referência que é não mais o dos conceitos, mas o das funções. “Uma função é uma Desacelerada417”. É por isso que a forma-Estado coaduna com esta ciência que tende à gravidade, onde o pensamento já está territorializado no espaço estriado das funções que desaceleram o caos no plano de organização traçando coordenadas, que nada mais são que sistemas de sujeição das velocidades infinitas do caos.

As análises de Foucault quanto ao problema da disciplina e todos os estriamentos necessários a que pudesse se tornar um dispositivo universalizado de manutenção do poder são ainda insuperáveis. É neste sentido que se pode falar em captura dos

       416

“The molar fold has two immediate consequences for thought: the cancelling of all intensities in thinking, and the stablishment of a hylomorphism in the State image of thought. As the multiplicities of thinking are converted from continuous to discontinuous, from ordinal to metric, all intensity in thinking is cancelled out, heterogeneities become homogenous, and thought becomes a closed system where thought operates near-to- equilibrium and a homeostatic regulation. In addition, with the closing off of the virtual and intensive modalities, State thought is caught in a hylomorphism in which the virtual and intensive matters of thinking are considered passive, and the State image of thought cannot think immanence, intensities, difference itself, or continuous multiplicities, and can only think transcendence, unities and identity as the same. The further consequence of cancelling intensities and hylomorphism in the State image of thought is that both the virtual and intensive problem being the analytical imposition of the plane of organisation to the problem as the application of the grid to a set of facts”. MURRAY, Jamie. Deleuze & Guattari: emergent Law. Nomikoi:

critical legal thinkers. Oxon (UK): Routledge, 2013. p. 45.

417

saberes em que o visível e o enunciável serão tomados como matéria de exercício desse estriamento fazendo surgir as fábricas, hospitais, prisões, escolas em que já não se é mais possível determinar em que consiste um espaço fechado ou um espaço aberto. Pode parecer paradoxal que este fechamento tenda a fazer desaparecer estas distinções, mas é justamente esta a eficácia do poder disciplinar, ou seja, internalizar seu exercício em cada um dos sujeitos que se tornam função do próprio poder e de seu exercício. Já não se sabe mais se se está na fábrica ou na prisão, se é seu pai, o médico ou seu chefe quem está ordenando...

É no apagamento dessas fronteiras que também se vê o nascimento de um exercício do poder totalmente inaugural, uma vez que fruto desses mesmos agenciamentos territoriais que a forma-Estado em pressuposição recíproca com os saberes, constitui como formas de conteúdo e de expressão.

Dito de outro modo, não é possível afirmar quem depende de quem, mas é no mesmo lance que estas formas de conteúdo e de expressão verão seu nascimento recíproco agora em seu novo estatuto seja de ciência política, seja de ciência social, ou ainda ciência econômica. Quer isso dizer que a forma-Estado dá testemunho, em alguns de seus agenciamentos, do surgimento de saberes organizados e hierarquizados como formas de expressão das relações de forças. Daí também sua tendência à intraconsistência no que concerne aos saberes, instituindo-se as ciências régias como forma daquilo que expressa.

Ora, tais ciências operarão funções também de estriamento dos saberes, conjurando as potências nômades daquilo que vai estabelecer como seu território de conhecimento. É este movimento de demarcação que faz surgir a máquina despótica e o chamado Estado moderno (que em nada mudou neste sentido) e, cuja tendência, somente agora se vê tomada por novas desterritorializações; mas, como se verá a seguir, mais pelas questões econômicas desta mesma ciência régia que pelos graus de desterritorialização de uma efetiva máquina de guerra nômade.

É que a imagem do pensamento da forma-Estado também já nasce toda pronta, como modelo de interpretação transcendente a que os fatos devem se subsumir. É a chegada do significante despótico que institui a Lei do um, no espaço pensado como métrica em que todas as relações de força, inclusive as cósmicas, devem se achar sujeitadas como objeto científico, como saber oficial. Mas, quem pode aprisionar o Acontecimento? Quem pode legislar sobre o Acaso? Quem pode submeter a singularidade do devir revolucionário às constâncias do bem comum?

São os agenciamentos de uma máquina abstrata plena de transversalidades que mantêm a abertura criativa do eterno retorno da diferença no plano

imanente de uma caosmosgênese infinita. Por isso, por mais que a forma-Estado mantenha sua tendência ao estriamento, a potência numerante do espaço liso subtende no movimento de desterritorialização de que a Terra dá testemunho nos fluxos, abalos, desequilíbrios, em suma, na afirmação da diferença qua diferença!

Se num regime selvagem vamos encontrar as linhagens como formações características dos agenciamentos das relações de forças, no estrato despótico é o território que constitui a sobrecodificação instituinte da forma-Estado por captura das linhas num fechamento espacial do numérico das grandezas métricas. Mas há ainda um outro regime dito civilizado, que embora já esteja nas condições do número numerante tende a conjurá-lo do interior de suas relações que é propriamente o regime anômalo do Capital.

O ponto não deve sair para passear.

Documentos relacionados